Estes quatro fanzines são todos editados pela mesma casa, sendo todos da colecção “33/2”, de um mesmo formato, sob os auspícios de Guillaume Soutlages e amigos, projecto agora descontinuado mas que viverá seguramente sob outras máscaras. Os trabalhos de cada um destes fanzines percorre um estilo e uma estratégia muito diferentes, mas julgamos ser possível encontrar algumas características comuns que fazem adivinhar uma comunidade de, pelo menos, uma vontade. A desconstrução dos corpos humanos (e outros) é uma constante, assim como a exploração das várias violências possíveis de exercer na cidade dos homens, uma permanente angústia sob o peso de um inimigo não-identificável, a utiliazção da linguagem com um fim ora irónico (apropriando-se do jargão publicitário, por exemplo) ora melancólico (uma poesia simples, de uma enunciação de uma perda, um desvio, uma distância), e a implícita crítica à normalidade expectável pela sociedade. Cada um, como dissemos, de modos distintos, acabam por querer fazer convergir nessa direcção comum os seus gestos.
Vague à larmes. Noémie Barsolle. Apesar deste ser o volume, dos quatro, que podemos afirmar mais narrativo, sem grandes titubeações, não estamos porém próximos a uma história absolutamente linear. Entendemos existir uma personagem principal, uma mulher, que sofre os ataques de uma outra personagem, e que esse ataque se desdobra ou faz sentir de múltiplas maneiras, mas todas descritíveis como as da dissolução do corpo. O rompimento dessa violência pode vir de fora (arrancar o coração, excreções fisiológicas, abertura do crânio) mas também interior (súbitos desejos, um peso insuportável da memória) ou em comportamentos abjectos (a queda num consumismo desenfreado, de álcool, de comércio). Pequena parábola da condição feminina, enformada pela e presa numa “onda de lágrimas”? Ideia circular esta, a de chorar a própria onda que nos transportará e, por isso, nos faz chorar. A limpeza, o enxugamento é, sempre, impossível.
Happy End. Samuel Mann. Depois de um pequeno texto (poema) introdutório, segue-se uma procissão de personagens díspares, todas elas sofrendo violências indizíveis, algumas delas com nome – o sado-masoquismo, a conformação, o desporto, a uniformização – outras novas – cabeças desaparecidas, monstros que saem do interior do corpo, escoriações a céu aberto, deformações únicas. Muitas destas personagens ostentam sorrisos exagerados, como se não notassem, ou quisessem disfarçar, ou não se apercebessem mesmo todas essas violências em seu torno e até mesmo dentro de si. Há mesmo um casal que se beija, alheio ao vórtice que os consome e às restantes personagens. Este vórtice surge, estilizado, noutras páginas, mormente na do centro, adivinhando-se assim um exercício curioso e circunscrito ao livro de tressage, uma união dos motivos visuais de um livro que, mesmo nesta instância, nos aproxima de uma qualquer ideia de narrativa, de princípio organizador. O título promete que, seja qual for o caminho percorrido, o fim está garantido.
L'École de la terreur. Maji Monoï. Também neste livrinho o título ajuda a construir um fundamento no qual colocamos cada uma das imagens do seu interior, que parecem ser autónomas. Numa primeira sequência, claríssima, numa apresentação icónica e como que retirada de um manual de instruções, vemos alguém a pelar uma batata, e depois a integrar nela teclas de uma calculadora. Depois corpos humanos em diagrama, preenchidos no interior por batatas-bactérias. Surge a primeira instrução: “Escolha. Depois valide”. Então dá-se início a uma sequência aparentemente ilógica de imagens, algumas com graus de associação débeis mas seguros, outras trazendo à tona todo o estranhamento possível. Famílias felizes em frente ao televisor, dedos cortados como batatas em palito, uma catástrofe de uma multidão numas escadas rolantes, a pulseira electrónica de um criminoso ligada à central da polícia e a promessa de “tolerância zero”. Que escola é esta? A de toda a França contemporânea? A das nossas cidades modernas? Aquela onde somos treinados até ao ponto de julgar estes comportamentos abjectos, estas aberrações, como parte normal e integrada nas nossas vidas? A contabilidade do tempo humano absolutamente regrada pela máquina, seja esta evidentemente policial ou mais abstractamente “natural”, “feliz”, é, ou parece-nos ser, o mote deste livro. O terror não está na representação, mas no que fica depois da sua digestão.
Litiére. Guillaume Soutlages. Curiosamente, este é um livro nostálgico, funéreo, dedicado a Miette, “esteja ela onde estiver”. Talvez seja uma gata perdida, ou morta. Deste gesto, Soutlages apresenta variações sobre cuidados a ter com os animais de estimação, apropriando-se de material publicitário ou manuais de instruções, desenhos que parecem ter sido “ao vivo” frente a uma panóplia de animais, corpos deformados que parecem ter saído de uma enciclopédia médica medieval, medalhões com close-ups a acções sobre corpos mas inidentificáveis, e ainda pequenos textos que parecem lidar com uma qualquer angústia e a consequente esperança, mas sobre algo que nunca é finalmente identificável. O que fica? Uma “liteira” literal, um espaço de imundície e coisas deixadas para trás, como se se tratasse de um pequeno e rápido luto, sem quaisquer necessidades de narrativizar essa perda ou de impor maior significado onde o próprio ser é suficiente.
blublu
ResponderEliminarJá conhecia o trabalho do (da?) Blu, sobretudo os vídeos incríveis, que aconselho a todos verem.
ResponderEliminarSe conhecerem mais informações, deixem aqui nos comentários, se faz favor.
Obrigado, merdinhas.
Pedro