Ao contrário das grandes editoras que rapidamente descobrem qual o nível de homeostase em que desejam ficar – a que se dizem obrigadas pelas “leis do mercado”, a “fixação de públicos”, as “responsabilidades sociais” – e de que na esfera da banda desenhada e ilustração em Portugal se pautam sobretudo pela mediocridade (no seu sentido exacto, algo feito a meio), é sobretudo em alguns dos projectos das esferas ditas alternativas, independentes ou seja o nome que se lhes desejar dar que se encontram crescimentos exponenciais a cada um dos seus gestos editoriais. A Imprensa Canalha, sob o comando de José Feitor, é um desses exemplos. Creio numa democracia e numa acessibilidade e numa necessidade de apreciar todas as esferas e todos os níveis de produção e proficiência da banda desenhada. Noutras palavras, “cada macaco no seu galho”, e existem tantos bons exemplos de produção mainstream como de esferas menos comuns. Todavia, apenas de vez em quando surgem publicações que podem, e devem, ser cobertas por um entusiasmo visível. Cabeça de Ferro é um projecto que irradia desse entusiasmo e, em todo ele, até mesmo enquanto objecto-livro, merece o nome de soberbo.
Cabeça de Ferro é um livro que reúne o trabalho de dezasseis ilustradores e criadores de banda desenhada que respondem ao desafio de Feitor em ilustrar, da forma mais livre e aberta possível, a ideia da Revolução Industrial. Alguns contribuem com apenas um ou dois desenhos (Richard Câmara, Joana Rosa Bragança, Júlio Dolbeth, Pedro Burgos, José Cardoso, João Maio Pinto, Pedro Lourenço, Rui Vitorino Santos, Rosa Baptista), outros com uma série deles, mas individualizados e não organizados sob algum princípio (Filipe Abranches, André Lemos, Bruno Borges, e o próprio José Feitor) mas com exemplos de excepção (em termos materialistas): Luís Henriques com um corpo de duas unidades irmanadas (uma grua a vapor e uma carruagem de carregamento sobre carris, intituladas com títulos e versos de uma cultura espiritualista, desenhos sujos de carvão, quer o representado quer o do próprio desenho: o que se imiscuiu no quê? A cultura sobrevivendo na vida maquinal, ou as máquinas evolando-se graças à força dessas frases? Ou as frases tornando-se fórmulas empacotáveis pela indústria?), Jucifer com uma banda desenhada curiosamente equilibrando um desenho e narrativa claros como um sentido hermético e o Dr. Orango com uma história sobre o automobilismo contada sob dois caminhos paralelos, um com silhuetas das ruas que foram sendo paulatinamente invadidas pelos automóveis, espalhando um caos muito particular e a possibilidade do acidente, o outro com desenhos mais estilizados visitando as várias facetas da indústria automóvel no que têm de mais avançado e ridículo, de nostálgico e de apocalíptico.
Tal como o texto introdutório do arqueólogo Luís Luís - que prima menos por uma aproximação historicamente engravatada e mais por um entendimento mítico do advento da tecnologia (no sentido de mito como uma história capaz de criar imagens sugestivas de uma verdade para além das dos meros factos) – implica, a Revolução Industrial não apenas teve um papel de alteração das condições sócio-económicas e políticas sobre os países em que se sentiu (e graças ao poder desses países, sobre a dita civilização global), mas “uma alteração radical da vida humana”, cujos frutos são sobretudo a grande submissão a toda a cultura electrónica em todos os seus avatares. O facto de estarem a ler estas linhas neste blog são parte integrante desse imenso fenómeno, em tudo o que ele tem de distância e de aproximação.
Os autores convidados tentam responder as essas mesmas questões de modos muito diversos, em termos de tons, humores ou matérias. Há um desenho de Pedro Lourenço que representa uma respigadeira colhendo umas plantas, observada por um coelho. Sobre as costas dobradas dela ergue-se uma plataforma industrial e os longos pescoços de guindastes. Qual dos elementos impera aqui? Será o peso da indústria que a faz vergar as costas, ou será ela o rochedo necessário para sustentar a fábrica? Ou serão antes ambos os elementos parte de um todo indissociável? Estas ambiguidades e cruzamentos de esferas que se julgariam antagónicas são repetidamente visitados pelos artistas aqui agrupados. Muitos deles mostram fases e processos das chamadas indústrias de transformação, mas nalguns casos não se percebe muito bem o que é transformado em quê – como nos casos de alguns desenhos de André Lemos e Rosa Baptista – e uma ciborguização incipiente ou o assalto das máquinas ao corpo humano (ou o corpo bestializado pela indústria) é patente em muitos dos desenhos. Desde a intricada colagem gráfica de Richard Câmara que preserva os rostos dos animais no gesto mais comodificador da indústria às mínimas construções de Bruno Borges que dão conta da redução ad absurdum possibilitada cada vez mais pelas novas tecnologias (vejam-se as febres cíclicas, ilustradas pelo mais recente iPhone e a prevista dependência existencial que Kirby desenhou entre os seus “novos deuses” e a “mother box”), a experiência total da leitura (há um texto composto por estes desenhos, estas ideias) de Cabeça de Ferro leva a esse balanço entre dois pólos que, no fundo, estão presos ao mesmo espaço: aquele das condições de possibilidade do mundo maquínico, industrial, modernizado, enfim, de ferro.
Tal qual o projecto de que falámos anteriormente de Turley, Abranches e Mocho, este livro vem acompanhado ainda de uma “Amálgama Sonora industrial”, um CD de colagens sonoras (algumas delas de outras colagens sonoras anteriores), de Filipe Leote (e um remix de Distimia) que deve acompanhar a fruição do livro. De um modo claro, os fantasmas que observaram os gestos dos artistas nos seus desenhos impera por sobre as escolhas dos elementos captados por Leote e o modo de ele os juntar num contínuo.
Tratar-se-á de uma tendência, moda, afinidade? De uma mera coincidência? De um espírito comum em querer estabelecer intertextualidades e cruzamentos entre artistas e vontades? Não haverá apenas uma resposta, e nenhuma delas certamente final. Mas o seu cotejamento leva-nos a poder indicar uma leitura. se nesse projecto debatido havia uma preocupação em ancorar cada desenho e cada canção nos poemas de Turley, criando-se assim um ciclo de unidades que compõem um quadro final, aqui trata-se antes de um contínuo que deseja fazer antes fazer emergir uma ambiência, como uma neblina subrepticiamente surgindo. A sua maior fragmentação de elementos – um maior número de desenhos e de participantes, logo de individualidades, mas também de aspectos comuns – leva a um ritmo maior e, por isso, de uma fluidez diferente.
José Feitor consegue mostrar aqui – o que se adivinhava de projectos anteriores, e de outros que se anunciam – as suas capacidades de maestro harmonizador. O tema não serve como mera desculpa de agregação, mas como semente organizadora, maquínica, orgânica, de convergência de todos estes artistas num propósito que, mesmo que o não tenha sido de partida, é, na chegada, comum .
Nota: sem apelo desta feita, remeto a quem deseje ver imagens do interior deste livro a clicar os links ou a visitar o blog oficial do livro. Todas as imagens procedem de lá, ou dos blogs dos artistas, excepto a da capa, feita da cópia adquirida.
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