Alfonso Zapico cria esta história num tempo em que já não se coloca a questão da dúvida da possibilidade da banda desenhada retratar e dedicar-se a temas controversos, lamacentos e moral e politicamente dúbios como o da questão da Jerusalém dividida, e das suas imeditas origens e consequências. Há todo um caminho de convergência já cumprido por obras de arte em torno de temas análogos, desde os filmes O Pianista de Szpilman/Polanski e Munich de Spielberg a um batalhão inteiro de livros (Arendt, Steiner, Levi como marcos e estrelas centrais), mas passando igualmente pela banda desenhada: Spiegelman, Sacco, Sfar, Squarzoni, o colectivo Actus Tragicus, Katin... Numa ocasião em que se discutiu a obra Palestina de Joe Sacco, as discussões mais vivas desviavam-se de uma proximidade exclusiva dos livros em si para nos perdermos nos labirínticos e pedregosos meandros da dita “questão palestiniana”. É impossível não querer tomar partido, é impossível não procurar um esforço de equilíbrio, é impossível a serenidade absoluta. A ficção, e a mormente a banda desenhada (por empregar um meio ainda confundido com o seu todo, e por obrigar a uma proximidade estranhamente familiar da parte do leitor), que passe de um modo ou de outro por estes temas criará sempre um desconforto profundo. Não é propriamente uma distracção de entretenimento que aí se encontra, mesmo que não se a buscasse desde logo. E ou há uma colagem, simpática, ao que se desvela no livro, ou uma aversão, antipática, ao proselitismo político que nos impõe.
Preferimos acreditar que é possível atravessar Café Budapest com alguma neutralidade (ligeiramente inclinada para um lado), e acreditar igualmente que o autor pretende ser neutro para com uma questão histórica, política, económica e, em última instância, religiosa, que de tão longa acumula mais zonas cinzentas e de dubiedade do que de claras distinções de “bons” e “maus” e ainda de “soluções”.
Café Budapest acompanha o jovem húngaro, Yechezkel, um virtuoso violonista, sobrevivente da II Guerra Mundial, e a sua mãe, sobrevivente de Birkenau, na viagem que os leva a Tel-Aviv para se juntarem ao tio Yosef, sobrevivente das lutas sociais do advento da República Soviética. Mas estas três sobrevidas serão aproveitadas de modos bem diferentes, algumas delas mais sofridas que as outras. O jovem Chaskel (diminutivo familiar) descobrirá aí, no café do seu tio, que é possível trabalhar e conviver com goyim e até com árabes, o que o surpreende muito. Mas essa surpresa de sobrevivência e convivência aumentará ao longo do tempo, quando ele próprio cria afinidades com um médico, Hassan, que toca violoncelo e, mais, quando se enamora, apaixona, envolve e chega mesmo a unir a sua vida a uma jovem muçulmana, árabe, palestiniana, Yaiza. Estas relações não são construídas numa curva ascendente suave, mas ante através de sacões, recuos, dúvidas, sombras, medos, e são esse o sal que tempera a melodia humana que Zapico vai fazendo discorrer ao longo das mais de 150 pranchas deste livro.
Todos esses elementos que interrompem o que poderia se uma simples curva desenhada pelo amor provêem de todas as direcções que levaram ao aparecimento de um novo Estado, o de Israel, numa terra em que, não obstante a vontade uns, tinha já outras pessoas a lá viver com vontades próprias. A série Le Chat du Rabbin, de Joann Sfar, é um exemplo de uma banda desenhada que quer mostrar os espaços de aliança e amizade existentes entre um espaço partilhado por religiões diferentes. Palestina, de Joe Sacco, quer dar o retrato da face da Intifada, dos cansados de uma guerra sem quartel e à qual respondem com outra guerra. Café Budapest quer retratar a crux do momento de viragem. Os precisos momentos em que de uma resolução votada nas Nações Unidas, passa a dividir-se aquilo que já existia unido. Uma das personagens do livro, Hassan, emprega um símile forte: “Imagina dois irmãos que vivem na mesma casa, cada um com o seu quarto e que continuam convivendo: isso, sim, é partilha. Mas se andam de quarto em quarto arrancando a pele um ao outro às dentadas e sujando as paredes com o seu sangue, isso não é uma partilha, é a barbárie!”. E são os primeiros passos dessa barbárie, no momento em que um dia para o outro vizinhos se deixam de cumprimentar e a trocar acenos para passarem a sentir ódio, que enquadram a vida de Chaskel e os seus.
Uma vez que é esta a personagem principal, há uma focalização que inevitavelmente apresenta um grau de proximidade e simpatia maior para o lado judeu, ao qual se tornava possível retornar à terra à tanto tempo perdida. Mas como se afirmou anteriormente, as alianças e aprendizagem de Chaskel junto aos árabes e ingleses reequilibra essa simpatia, tenta minimizar o eventual sectarismo, pacifica através do doce açúcar do amor (mesmo que ficcional) a barbárie que tudo fecha. O objectivo não é tomar um partido, por assim dizer, nem apresentar a história, nem explicar ou contextualizar nada, mas antes iluminar com essa luz da guerra as vidas ficcionais destas personagens.
Como explica o prólogo de José Cuervo, este é o primeiro livro do asturiense Zapico a ser directamente apresentado aos leitores espanhóis (e agora, por aqui, portugueses), mas o autor teve experiências anteriores quer no mercado editorial e jornalístico quer no francófono, com La guerre du professeur Bertenev. Em comum aos dois livros está um interesse nas fronteiras entre os conflitos (esse outro livro passa-se na Guerra da Crimeia), quer aquelas que se salpicam de sangue quer aquelas que descansam à sombra de alianças improváveis mas férreas. As duas imagens-bandeira que se escolheram para este post mostram como o autor opta tanto por mostrar através de pranchas livres, de figurações curvilíneas, sem separação de espaços e personagens, as associações possíveis de uma comunidade livre (pela harmonia da música, da amizade, onde ambos os personagens, de olho fechados, se olham profundamente um no outro) como opta pela união no chão da morte, e a quadrangular e militar divisão entre cada uma das facções sanguinárias e fundamentalistas e odiendas e fanáticas (mesmo de olhos bem abertos, não vêem nada além do ódio e da sua satisfação). Os seus desenhos estilizados inscrevem-nos nesta linha leve da banda desenhada franco-belga contemporânea que procura criar grandes narrativas desta arte: falou-se de Sfar, pensamos igualmente em Blain, Guibert... Nalguns momentos, as passagens entre estados emocionais é demasiado rápida (como nesta prancha em que a alegria entre Chaskel e Yaiza dá subitamente lugar ao medo pelos acontecimentos em seu torno), mas podemos enventualmente aceitar essa rapidez, essa falta de intervalos maiores como a força das circunstâncias que chocalha as emoções de todos de um modo acelerado, violento, mesmo que apenas dentro das almas de cada uma das personagens. Jamais tempo acesso directo aos pensamentos das personagens (através de legendas ou balões), mas as acções a que se entregam, os diálogos, atitudes e até mesmo a figuração dos corpos é eloquente o suficiente para que possamos entender essas flutuações. São legíveis.
Apesar de não o citar directamente, Cuervo parece seguir a lição de Lyotard a propósito do advento do pós-modernismo, no qual se inscreveria este livro, como uma ultrapassagem das grandes (meta) narrativas. A escolha da representação de Zapico recai não sobre os grandes acontecimentos geopolíticos que servem de paisagem (não apenas de fundo como estruturante) às suas personagens mas sobre as vidas destas, as quais querem “viver a única vida de que se dispõe colocando a igualdade humana sobre as diferenças culturais”. Todavia, comos e aventou atrás, com essas “vidas humanas” procuram-se compor narrativas grandes, em termos de género diegético, na banda desenhada.
Mas, no fundo, o peso dessas diferenças, quando destemperadas pelo ferro e o fogo da guerra, são mais fortes e, ainda que não lancem estas personagens numa irreversível tragédia, força-as a pequenas crises, momentos de indecisão e a uma fuga final que resolve a questão premente da sobrevivência ainda que não a da existência, mais profunda.
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