Este é o segundo livro da Opuntia lançado na última Feira Laica (o primeiro é este).
De Ilan Manouach já havíamos dado conta do seu último pequeno projecto/catálogo, e da sua participação na D&I, enquanto esperamos pelo seu novo livro de maior fôlego, Frag e ainda um outro projecto em colaboração de que daremos conta no seu tempo devido. Mas no centro da sua intempestiva produção, à margem das linguagens mais contornadas e integráveis em territórios mais balizáveis, Manouach vai participando em publicações colectivas, pequenos trabalhos e zines. Esta é a sua participação na Opuntia. Aparentemente, trata-se de uma colecção de desenhos sem quaisquer ligações de maior entre si, quer dizer, ligações estilísticas ou temáticas ou mesmo narrativas. Uma série de desenhos, não uma sequência. Essa leitura não está errada, de modo algum. Uma sua descrição objectiva seria assim satisfatória. Todavia, há algo mais sob essa superfície, mesmo que essa seja uma superfície difícil de romper e o oceano que ela oculta seja intransponível.
Bastas vezes repetimos a ideia de que não cremos numa dissolução entre uma forma e um conteúdo numa qualquer obra de arte (que se digne desse nome). Se em termos analíticos é realmente possível uma aproximação, titubeante, passo a passo, meio-medrosa - e como convém em certos círculos, como no académico tout court, naturalmente – agora sobre o modo como a apresentação formal é cumprida, agora discutindo os seus temas, matérias, conteúdos, é apenas quando se absorve o sentido holístico da obra é que ela se torna rediviva: ela vive num momento da criação, atravessa o limbo da transposição para o mundo da leitura/contemplação/auscultação/assistência, enfim, fruição, e é aí que ganha vida novamente, ou mesmo cumpre a sua prevista vida. E ao longo das leituras, do tempo, dos confrontos, vai ganhando e reformulando essa vida.
De acordo com o George Steiner de Presenças Reais, nas obras de arte não existe propriamente um movimento cumulativo, de crescendo, dos elementos constitutivos e analisáveis (parcialmente)– digamos, dos fonemas e das frases, das linhas e das manchas – até se atingir a toda a obra. isto é, não há uma ligeira e mapeável mudança de graus, mas uma súbita, inanalisável mudança de natureza, ou na palavras do filósofo citado, o “fosso” entre a análise e o “processo de compreensão”. Fala ele ainda da “incomensurabilidade do semântico”.
A vara do açúcar da meia noite e nos bordos dos peixes é uma dessas obras de arte deste nosso pequeno território invisível no concerto das artes que transporta em si essa incomensurabilidade de um modo tal que, não obstante a sua própria natureza, dá a ver essa invisibilidade. É como um branco intensivamente visível que sublinhasse uma ausência. Não é que haja uma ausência de sentido, mas antes a ausência de uma capacidade em fechar esse sentido.
Ainda segundo o mesmo autor, Steiner, antes das crises acarreadas pelo advento da Modernidade, e da ideia de que o racionalismo tudo explicaria e todas as sombras dissiparia, “o Logos e o cosmos encontravam-se”. Isto é, havia uma qualquer correspondência quase directa entre a palavra que nomeia e o objecto que nomeava. Depois a linguagem começou a imiscuir-se na realidade como entidade independente, passa a tudo discernir e explicar (“tirar as pregas”, tornar o pano liso, visível): “A viagem faz-se na e através da linguagem”. Ilan Manouach parece, contínua e cumulativamente, atravessar ou recuar esse filtro da linguagem para atingir um espaço semântico em que essas correspondências são novamente consolidadas. Em termos históricos, culturais, é impossível fazê-lo de uma maneira inocente, sem que passe pelas ideias pelas quais fomos treinados, sem usar a linguagem como instrumentos de esclarecimento, mesmo quando metafórico (que mais do que um escape, é uma elucidação). Por isso o autor grego fá-lo através de uma desconstrução da linguagem em primeiro lugar, sendo o título o modo extratextual pelo qual nos aproximamos em primeiro lugar ao livro.
Na capa, o que se lê é “AAAOCCRA/EAOENSODS/OPIE”. No interior da capa, vemos uma variação do desenho, e outras letras desconexas, algumas tapadas pela tinta. Ao virarmos para a segunda página, deparar-nos-emos com um segundo título, que lê “VRDAUAD/MINTEOBRO/DSEXS”. Só olhando a ficha técnica, a vermelho, entendemos que todas essas letras se combinarão, nas posições exactas que têm, para soletrar A vara do açúcar da meia noite e nos bordos dos peixes. O título é em português mas há algo que não funciona, não faz sentido, ou pelo menos um sentido no qual possamos todos concordar e compreender. Aí começa um primeiro processo de desconstrução, se não o segundo, uma vez que se trata de um trocadilho ou “tradução selvagem”, que ronda em torno de uma ideia obscena e divertida e que recordará o jogo de Duchamp em L.H.O.O.Q.
O que se segue é a série de desenhos de vários objectos, paisagens, rostos, animais, em variadas técnicas de desenho, de cor, de reprodução, ou variações, como as do “rochedo-nuvem” da capa (reproduzido acima). Existem corpos humanos, banheiras, corpos em banheiras, mas nenhuma das personagens parece repetir-se, nenhuma delas para estabelecer qualquer tipo de contacto entre si, desse modo mais vulgar que a banda desenhada estabelece. Isso não quer dizer que não exista contacto. No centro da publicação, há um desenho (aqui reproduzido), a cores, de uma pernas saindo de uma banheira. Esse desenho está reproduzido num papel transparente, e permite ver os outros desenhos sob essa folha, de um lado um homem (?) com um pano-máscara sobre o rosto, do outro uma mulher sorrindo e fazendo uma festa na queixada do que parece um tapir. O tipo de contacto que essas imagens fazem (cuja reprodução aqui, apesar de má qualidade, dá conta) é análogo ao contacto que é transportado para o resto das imagens: existem linhas ou manchas ou cores ou figuras que poderão parecer ecoar umas nas outras, num diálogo surdo mas directo, que as comprimisse não só no espaço em que se encerram – o livro – mas num qualquer mundo em que o sentido que encerram é total. O oceano a que se aludiu acima. É preciso ir navegando à bolina com Manouach, contra os ventos de um sentido mais literal e imediato, tenta-se (talvez falhando, talvez seguindo-o) acompanhar o movimento de ziguezague que escapa a essa influência de normalização. Esse acompanhamento, como é natural, deixa-nos um pouco mareados, e só depois do fim da viagem é que nos apercebemos de como se conjugam os seus elementos, atravessando o fosso, para nos ofertar a ideia da sua incomensurabilidade semântica. Mesmo que a linguagem verbal falhe em a transpor e explicar.
(Apetece usar a palavra inglesa "awesome", mas não como um surfista da moda, não, no verdadeiro sentido da palavra, que está cheio e traz assombro, maravilha, e até temor. Que nos ultrapassa, um estranho sublime que nos cabe entre as mãos).
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