Recordar-se-ão (ou poderão visitar) um post anterior em que falei de experiências que traziam a linguagem da música para a das narrativas ou dos núcleos significativos de imagens. A experiência mais antiga que conheço desta natureza – sempre uma natureza ainda mais compósita que a da banda desenhada e extremamente múltipla, pois faz convergir numa só apreciação durações diferentes e até contraditórias, fruições paradoxais dos seus elementos distinto, e veículos que parecem não poder concorrer num mesmo ritmo – são as Cantigas de Santa Maria, pelo menos seguramente editadas (no sentido contemporâneo e anglófono da palavra) por el-rei Alfonso X, o Sábio, dos reinos de Castela e Leão, lá para o século XIII, e em galego-português: nesse códice (de que existem algumas versões díspares), coleccionam-se várias composições poéticas e musicadas dedicadas à Virgem Maria, e aos seus milagres, canções que se apresentam, portanto, numa dimensão textual e numa dimensão musical (na notação do tempo). Mas para além disso, o que torna esse(s) tomo(s) único – mesmo hoje – é que era acompanhado por iluminuras de uma proximidade às acções e aos textos das canções assombrosa: as páginas eram compostas por uma série de vinhetas organizadas regularmente e consecutivamente, expondo a acção descrita na canção como se de uma banda desenhada moderna se tratasse (ou prevendo-a? ou sendo-a já?), com um espaço reservado a uma citação do texto. Mas o mais importante era a relação implicada que tinha a letra da canção, a sua melodia, e as imagens narrativas, compondo um todo o qual, ainda que decomponível, criava de facto um todo apreciável holisticamente.
Variadíssimas experiências existirão mais ou menos próximas, mais ou menos análogas a essa como as indicadas no post indicado acima. Penso que Long Knives through the Grapevine é uma dessas experiências. Apesar de o nome não se encontrar na capa, nem no título deste artigo, tudo começa e é conduzido por André Lemos, editor dos Opuntia Books. A descoberta deste obscuro mas real poeta norte-americano, Les D. Turley, é dele, a vontade de com ele desenhar também (podem mesmo descobrir alguns dos desenhos feitos por Lemos sob o som dos versos de Turley: procurem nos arquivos entre Junho e Agosto de 2006, ou escrevendo “Turley” na busca interna ao seu blog). Depois, seguiram-se os convites, divididos mas a convergir, a Filipe Abranches para que produzisse os desenhos, e a Miguel Mocho, aqui na vertente de músico multi-facetado mas unificado na excelência, que produzisse um domínio musical. O resultado é este objecto: oito poemas de Turley não original inglês e em traduções portuguesas (de Marta Elias), com oito desenhos de Abranches e um CD com oito faixas de Mocho.
A leitura, observação e auscultação é facultativa e, na verdade, em termos físicos, jamais pode ser simultânea, mas o cumpri-la, voltando atrás, lendo os poemas à medida que Mocho os canta, ou escutando a canção ao mesmo tempo que se percorrem as linhas frenéticas dos desenhos de Abranches, ou saltando de um verso para o texto, é obrigatória. Os poemas de Turley são de 1968, e um especialista saberá identificá-lo, ou integrá-lo melhor, seguramente, mas creio que caem fora daquele contínuo estilo bombástico e musculado que começou em Whitman e que continuou com a beat generation. São todos composições curtas, de verso branco, espaçado, falsamente coloquial, com um equilíbrio muito particular entre o que parecem ser frases absolutamente diárias e metáforas (como todas as felizes, na poesia) inesperadas – “Feeling better/like a recently pumped up tire”). Se há resquícios de algum deus a quem Turley se entrega, é muito menor que os menores do costume (“Pray thee O Lord of triangles”). Alguns são mesmo auto-sarcásticos, o que o coloca próximo de Bukowski:
“Today, when thinking hard
about
my life achievements
I babbled to myself
Dumb
Binaire
Cerebral
Journal
Sweet
Word
Political
Vascular
I thought it was a
pretty good description
of past events
of past failures
and past
poetry.”
As canções, com muitos dos elementos mais imediatamente discerníveis da música norte-americana (blues, folk, rock, bluegrass, Tom Waits, uma voz de bourbon, e até uma drinking lullaby: “Dumbness”), decompostos para encaixarem em aproximações de música independente e até experimental (noise, ambiente, lynchiana e até um aroma de drum’n’bass), são uma tradução correctíssima do espírito dessa poesia descomprometida para com as fórmulas, mas capaz de identificar a épica nos cantos mais hodiernos do que rodeia os dias: “Bang, slap and even a/ crying squirrel”.
As imagens de Filipe Abranches seguem o método de trabalho que o tem ocupado nos últimos tempos, uma certa soltura, como se costuma dizer, magistralmente atingida somente por quem atravessou uma estrita disciplina anterior. São desenhos directos, sem uma planificação dolorosa, e que seguem mais uma intenção de quem sabe que a memória de um bom desenho é anterior ao desenho mesmo, e que reside no pulso e no seu domínio. As ilustrações têm um certo peso em relação aos textos, na medida em que as figuras coincidem num ou outro elemento com o que surge textualmente nos poemas. São como que âncoras. Delas surge a interpretação de Abranches sobre os poemas, num ou noutro caso com maior distância, neste outro com maior proximidade (a imagem escolhida ilustra o poema acima citado na íntegra). A continuidade das vinhas do título por todos os desenhos leva a uma segunda leitura do mesmo, pensando que as “facas” possam ser interpretadas então como o instrumento de Filipe Abranches, se não mesmo o seu gesto, como se a linha, mais do que se inscrever, cortassem um espaço que lhes fosse próprio, independente, para melhor dialogar com tudo o resto.
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