É sobre o signo de Lemos e Leone e da Laica que damos conta de um grupo de publicações, de fanzines, capturadas ao largo da Bedeteca na última Feira Laica. Esta última – a que podemos dar o nome, mesmo que provisoriamente, de “colectivo” - caminha a passos lentos mas seguros para se vir a tornar um certame de importância no que diz respeito a publicações independentes que envolvam autores da banda desenhada e da ilustração. Alguns dos mais regulares contribuintes para este círculo criativo produz trabalho com a intenção de o tornar público nesse momento, quer através de lançamentos quer através das exposições usualmente associadas ao evento. Apesar da consciente e sobejamente discutida “crise” – geral, mas que se faz sentir de um modo particular e estruturante no mundo editorial desta área -, acaba-se por notar na existência da Laica, e de outros encontros similares, como os promovidos no Porto (A Mula, Maus Hábitos), a concentração de pessoas que a anulam ou invertem através das suas criações e acções. Uma vez que se desprendem de condições de produção, de distribuição e de venda com intuitos estritamente comerciais, isto é, pautados pelas mais estritas regras do comercialismo (pois a vertente económica nunca deixa de desaparecer), todas estas publicações surgem assim como, a um só tempo, pequenos gestos de subversão económica, de liberdade artística, de vontade indómita. (Mais)
Falaremos de algumas das publicações lançadas na Laica com maior desenvoltura noutro local, não desejando criar uma espécie de hierarquia indiscutível, mas querendo apenas permitir um maior espaço de destaque àquelas que tentam explorar alguns caminhos mais conscientes e sólidos no que diz respeito ao seu papel: assim, as publicações da Opuntia, o Cabeça de Ferro e a publicação da Mesinha de Cabeceira que reúne os trabalhos de Marcos Farrajota. Neste post, centraremos uma atenção breve a algumas outras publicações disponíveis no local.
1. Post Shit. Jucifer (Crime Creme). Após a exposição Quadradinhos. Histórias Postadas, alguns dos autores expressaram o desejo de vir a publicar os seus trabalhos expostos, em Post-its, numa fórmula mais convencional. Carlos Páscoa publicou a sua na Venham + 5 no. 5. Agora, Jucifer publica o seu, na forma deste Post Shit. Apesar do título derisório, a artista foi a artista de banda desenhada que mais aproveitou a fórmula livre da exposição mencionada para criar um trabalho plasmado a essa forma. Isto é, em vez de apresentar uma história convencional de banda desenhada (no que diz respeito a distribuição de personagens/acções, unidade de espaço e tempo, linearidade narrativa, etc.), aproveitou a virtual comutabilidade espacial e actante dos papéis autocolantes para montar não uma diegese fechada mas uma narrativa fantasmática. Isto é, a partir de cada uma das imagens, que pode ser entendida como uma cristalização ou símbolo, o espectador procedia a uma montagem livre, movida pela pulsão momentânea e reversível, e chegaria a um todo significativo, ainda que fugaz. A sua edição em formato de livro encurta essa liberdade, e talvez se tivesse o formato de uma caixinha com cada vinheta em separado tivesse seguido mais de perto essa primeira força, mas seguramente que se deve a impedimentos formais e económicos. Em todo o caso, é essa primeira informação que deve imperar sobre a fruição deste livro (cuja atitude auto-escarnecedora impede de acrescentar estas pistas), para que dele se solte essa liberdade de leitura: a constância de personagens (adivinhadas), de símbolos, de espaços (um hospital, uma sala de aula, um local de exercícios de guerra) levam a essa ideia de uma trama que os une a todos, ainda que não possamos fechar toda a sua fronteira ficcional.
2. Ópera de Sabão. Robô Maria (Desejos e Espelhos). Ópera de sabão é, como se adivinha, a tradução literal da expressão americana para as telenovelas. É esse o universo do qual é pescado e reaproveitado o material que compõem este zine: resumos de telenovelas de uma miríade de revistas especializadas, cortados e permutáveis entre si como se se tratassem de módulos, uma espécie de cut-up que prova as características tipificadas e massivas deste género de ficção. A inclusão de um excerto de um texto de Nilda Jacks, de estudos da recepção, dá um mote académico de análise desta matéria, mas o tom geral do zine é o parodístico: que Jorge tenha trocado Ana por Paula ou Madalena por Rita é indiferente, e pouco importa se é Susana ou Laura a verdadeira mãe de Gustavo, o que importa é que essas transformações de dão no final de um qualquer episódio e obriga os telespectadores a ficarem presos para o próximo. O zine é ainda pontilhado com recortes de publicidades de produtos variados espanhóis, ilustrações roubadas e originais, comentários rabiscados ao lado que explicitam o gesto. Nas palavras da autora, Robô Maria é um “pseudónimo no mundo dos bordados subversivos”, que é como quem diz, uma Crónica Feminina de Combate, minando o próprio território que parece ter sido criado para fechar as mulheres nele. Há quem não entre, e há quem entre para o derrubar à força do riso.
3. Pixa de Cão. Anónimo. No seguimento de uma tradição que, se não inaugurada, pelo menos atingiu um cume com a Zundap, mas seguida por muitas publicações, esta experiência, que possivelmente não se repetirá, é monotemática. A saber, os mictórios, instituição popular e necessária no reino dos homens, bem diferente, em natureza, não em grau, dos lavabos para senhoras. É toda uma cultura associada, com os seus ritos, regras inefáveis, e implicações profundas Nestas poucas páginas, um punhado de imagens, colagens, textos e desenhos desenham um perfil simples mas contundente de tudo o que poderá o mictório implicar na vida que os experiencia. A “pixa de cão” centra-se nos nós que elas dão, como se vê na capa, talvez símbolo dos nós mostrados na própria publicação.
4. Fantôme Galicia. Miguel Carneiro, Marco Mendes e André Lemos (Xornadas Galegas Edições!). Esta publicação não é novidade da Feira Laica, mas nela fez a estreia em solo português. Por ocasião da participação dos Gajos da Mula, com André Lemos, nas Proxecto-Edición na Galiza em 2006, os três artistas criaram esta série de cadáveres esquisitos e bandas desenhadas não menos esquisitas. O humor doentio, a perversidade gráfica, o fugir com o lápis para a verdade, o abuso da tinta-da-china, o crescimento orgânico e desregrado das criaturas aqui oferecidas, a intervenção intempestiva das personagens de cada um dos autores envolvidos (o Sr. Pinhão de Carneiro, o avatar autobiográfico de Mendes, os fantasmas verborreicos de Lemos), transforma esta publicação numa espécie de plataforma de exorcismo – ou pelo contrário, de um inorcismo – das costumeiras pulsões de cada um, assanhadas e espelhadas umas nas outras de uns e outros, numa mescla que, para ir contra uma das personagens, não é carne nem é peixe, mas é carne e peixe.
5. Alçapão no. 2. AAVV (Ordem dos Arquitectos/S.R.S. - Portalegre). Passados dois anos do primeiro número, o segundo continua na sua senda livre de discursos em torno da arquitectura, mais ou menos politizados, mais ou menos poéticos, mais ou menos crónicos. Mais do que um pensamento académico ou policial-jornalístico, reúne-se aqui uma série de vozes que faz um retrato social e subjectivo, e por isso mais vincado, do estado da arquitectura e das atitudes com, para com e pela arquitectura no nosso país. Ilustrando cada texto, cada página, contribuindo com bandas desenhadas ou ilustrações, está uma dezena de autores munidos com os seus instrumentos imprecisos para tornar mais enraizadas as ideias precisas que nascem da leitura e confronto com a Alçapão. Um destaque especial merecerá a banda desenhada de oito páginas escrita por Luís Henriques e desenhada por João Sequeira (o qual aproveita para se auto-citar de modo subtil), Tudo o que é sólido dissolve-se no ar (baseado seguramente no livro de Marshall Berman, que por sua vez cita essa famosa frase de Marx), tratando da inevitável dissolução provocada pela modernidade do capitalismo sobre tudo, inclusive a própria terra. Um conto moral que pretende contrariar o que se verifica, e esperemos levado como aviso e modelo.
6. Gente Cega e Bad Records are Bad Records. AAVV (Hülülülü). Se entendo bem, trata-se de um grupo de amigos, estudantes, alguns deles de banda desenhada e ilustração. Este talvez seja o primeiro gesto publicado, cuja realização denota mais uma alegria e experiência do que uma prova acabada de um encontro qualquer com a linguagem desejada. O primeiro reúne, como indica o título, desenhos cegos (sem olhar para o papel, apenas para o modelo) de Ana Borges – retratos de rostos e a corpo inteiro, objectos vários, a mão esquerda, todos de contornos abertos, como se prometessem vir a fechar-se mais tarde, ou a deixar-se abertos para os próximos passos. O segundo (cuja capa abre o presente post) foi desenhado na “noite de 5 para 6 de Junho de 2008” por Mdonada, Braulio, Ricardo, Marcos e Margarida, com desenhos soltos, vinhetas que levam a pensar numa história maior, possivelmente auto-retratos e comentários sociais que fazem pensar numa boa dose de crítica humorística: “I ♥Lisboa (sometimes)”. O amor é intermitente, como diz António Pocinho. Os rostos e a linguagem dos zines também. Não é por acaso.
7. L’Usine Nouvelle. Guillaume Soulatges (Stratégie Alimentaire). Não sendo esta também uma novidade, é porém um dos últimos zines de Soulatges, artista e editor da Stratégie Alimentaire, que havia editado Weekend, um colectivo no qual participou André Lemos. A convite deste último, com o qual prepara uma nova publicação em Portugal, o artista passou por Lisboa e disponibilizou ao público local alguns dos seus trabalhos e de amigos, quer auto-editados quer da S.A. quer ainda da Le Dernier Cri, por exemplo. L’Usine Nouvelle é uma revista de formato A4 em que apresenta os seus desenhos, feitos de contornos suaves e preenchidos a pontilhado, de pessoas de rostos distorcidos como se tivesse atravessado um qualquer acidente (congénito ou não, sempre terrível). O livro está dividido em três secções, intituladas (“La chambre froide”, “Les mauvaises mères” e “Les peres absents”) que fará pensar em séries temáticas, mas ao mesmo tempo obriga-nos a um movimento de leitura que procura e chega mesmo a impor uma qualquer lógica quase palpável na sua organização e relação, uma narrativa de uma infelicidade humana insuportável. Um “apêndice” final, de pequenos textos e pequenas ilustrações, faz com que o leitor repese e repense o que ficou atrás, e una tudo sob o domínio de uma crítica social e política, ao peso incomensurável do trabalho fabril sobre a vida (e a morte) das pessoas que nele se têm de envolver e mergulhar. Se nalguns aspectos – formais, sobretudo – poderá recordar alguns dos últimos trabalhos de Martin Vaughn-James, a matéria com que trabalha é mais evasiva, e não por isso menos angustiosa.
8. Tomorrow the Chinese will deliver the pandas. Marco Mendes (Plana). Last but not the least, at all, um livro que, mais uma vez, não tendo sido lançado oficialmente na Feira Laica, faz aí uma sua estreia quiçá mais pública da que teve no Porto. Esta publicação em formato comic book de 32 páginas reúne trabalhos que já haviam sido publicados anteriormente, nos vários fanzines do colectivo d’A Mula, em Carlitos ou no blog do autor. Porém, a novidade ou grau de diferença está no facto de serem versões em inglês, de modo a tornar o seu trabalho bem mais acessível a um público mais internacional e maior. É também uma boa oportunidade de descobrir alguns trabalhos que estão menos acessíveis por razões claras. Alguns dos trabalhos perderam alguma da sua legibilidade pela alteração de formato, as ilustrações a página inteira a sua força, e algumas das estratégias de paginação não foram das mais felizes, mas em todo o caso, é um “cartão de visita” nada displicente e que se espera vir a ser a plataforma para que Mendes seja mais lido. Pekar receberá um exemplar em casa, espero.
Nota: agradecimentos a todos os autores dos zines, pelas ofertas, descontos ou trocas de impressões e ideias. A pedido das famílias (sim, Richard, é toda uma família), aqui estão imagens das publicações, uma de cada, pela ordem citada no texto. Fruam, fruam.
... queremos ver bonecos... queremos ver pelo menos (repito: "pelo menos") 1 página do interior destas e de todas as outras publicações de que vás falando no teu muito estimado blog... não queremos desculpas, só queremos ver o miolo... ;)
ResponderEliminarAbraços
Richard