Estou em crer que Ludovic Debeurme se encontra num caminho, raro de encontrar, que é aberto pelo próprio artista e com ele se confunde. Isto não tem nada a ver com o que comummente se chama de “originalidade”, se bem que essa palavra tenha sido desprovida do seu verdadeiro valor e peso, para passar a alimentar as mais superficiais impressões do momento e entusiasmos fugazes. O que quero dizer é que Debeurme tem vindo a explorar, com cada livro seu, um afastamento progressivo das narrativas naturalistas (Lucille ainda pertencerá a esse território), para entrar num outro campo, cada vez mais onírico, se bem que Le Grand Autre instaure, no seio desse novo campo, uma narrativa organizada (ligeiramente diferente de Mes ailles d’homme).
Este livro segue a vida de Louis. Apeteceria dizer ver aqui o Bildungsroman, mas essa palavra parece dar conta de uma evolução que tem a ver com a maturidade e o crescimento em relação à sociedade em que o protagonista se inscreve, quando na verdade o que aqui ocorre é uma fuga e transmutação. Começamos com um adulto, que depois descobriremos ser Louis, olhando o mar e falando-nos de um pacto antigo. O resto da narrativa é uma longa analepse que dá conta dessa troca e das suas consequências. Louis é uma criança com uma prótese de perna que um dia mergulha fundo na água e quase morre, enleado nas algas. Uma estranha criatura, primeiro contacto com o maravilhoso, faz um pacto, libertando-o em troca dos olhos sãos de Louis pelos dela, que são capazes de “ver o interior”. Quando Louis emerge, está estrábico. Se não usar os olhos que lhe corrigem a vista, Louis vê algo de muito diferente da vigília dos demais: vê monstros, figuras terríveis, signos ocultos, como se a “razão” fosse afinal o sonho de uma visão clara que nos impedisse dessas camadas tenebrosas. Ao princípio, pensamos que todo o fantástico do livro ocorre somente através da percepção “outra” de Louis. Há casos em que Célia também parece confrontada com criaturas fantásticas, mas nada nos é indicado sobre a “realidade” desses eventos, no seio da narrativa. Só aos poucos se revela que as visões de Célia são “em sonho”, e as de Louis “verdadeiras”, lançando-nos então para o território do maravilhoso. (veja-se esta imagem de Louis no oftalmologista, interpretando, visualmente, o que vê nas letras)
Por várias razões, Louis não é popular entre os colegas da escola. A única pessoa que parece aproximar-se dele é Célia, uma das miúdas góticas da escola. Célia tem uma sensibilidade profunda, que partilha afinidades com a de Louis e que a faz perceber uma verdade: Louis é o mais “gótico” de todos, não sendo uma questão de moda superficial, mas de uma funda entrega às trevas da razão dita acima. Louis acabará por se afastar do mundo “social” (estamos no primeiro terço do livro) para chegar “ao outro lado do espelho”.
Coleccionar, indicando, as fontes de uma obra não leva a lado nenhum a não ser talvez para demonstrar que o leitor (crítico ou não) as conhece e usa assim do seu tempo de antena para aferir conhecimentos. Mas a revelação das afinidades apenas ganha um valor mais substancial se se colocarem as duas obras, a “fonte” e a presente, num diálogo pertinente. A identificação de temas, tons, elementos, estratégias narrativas é relativamente fácil e clara neste livro de Debeurme. Há toda uma tradição sobre personagens crianças ou adultas que atravessam um qualquer limite para além do qual se ergue um outro país absolutamente diferente do seu, não em grau, mas em natureza. Uma das obras dessa tradição é As Viagens de Gulliver de Jonathan Swift. Louis, tal como Lemuel Gulliver, depois de entrar na floresta associa-se sucessivamente com três reinos, o dos insectos, o dos pássaros e o dos ratos (se bem que com os últimos se mantêm uma certa tensão antagónica), visto por todos como uma espécie de monarca, de membro da família superno, protector extraordinário. Há aqui uma inversão em relação a Gulliver; pois se este era desejado por ser diferente, exótico, totalmente estranho e termo de comparação das sociedades que, por ele, entravam em choque (a Inglaterra contrastada com Laputa, Brobdingnag, Lilliput, etc.), Louis é visto como pertencente ao mesmo, ainda que diferenciado por esta ou aquela razão. O tema da visão alterar-se conforme o desejo é, então, uma constante. (aqui, Louis na glória de rei dos pássaros)
Aliás, poderíamos mesmo dizer que “visão” e “desejo” são as personagens oculta de Le Grand Autre. Algumas pistas para isso são explícitas, outra menos. Vejamos as primeiras. Um dos capítulos é intitulado “objet petit a”. Este é, como se sabe, um conceito do psicanalista Jacques Lacan. Nesse capítulo, observamos duas acções principais: Louis a quebrar a perna a um boneco (que se parece com um Super-homem ou um G.I. Joe) e depois a atirá-lo de uma falésia abaixo, e o aparecimento de Célia, a rapariga gótica. O conceito de Lacan diz respeito a um objecto de desejo que “faz falta”, ou “produz a falta”, uma falta ou falha que o sujeito deseja preencher e coloca assim em movimento o próprio movimento do desejo. Tudo isto é muito claro em Debeurme, ainda que tenha a pátina da aparente falta de lógica dos sonhos (de que falaremos adiante). Mesmo no fim desse episódio, quando uma gaivota “veste” a cabeça oca do boneco, que se havia separado, entendemos aí, mesmo que ligeiramente evasivo, um sentido ilustrativo das teorias psicanalíticas de Lacan.
Não obstante, é algo perigoso talvez seguir uma leitura de Le Grand Autre à luz dessas teorias – mesmo que na sua produção isso tenha sido decisivo. Seria uma aplicação redutora que não daria espaço ao intervalo de liberdade criado por toda a obra, intervalo que ganha um menor ou maior alcance conforme os casos, depois de se tornar independente do seu autor. E transformar-se-ia num exercício de psico-biografia aplicada à banda desenhada que só não nos interessa como nos parece votada ao fracasso desde logo. Fiquemos, então, pela simples menção de que esses temas lacanianos se mantêm nalguns momentos do livro (um outro episódio chama-se “Da comida como dificuldade de re-se-voir”, isto é, um trocadilho entre “reservar” e “ver-se de novo”; também poderíamos dizer ser derridaniano, talvez).
As aproximações possíveis no seio da banda desenhada seriam a dois autores norte-americanos, e até mesmo pelo estilo gráfico de Debeurme (contornos bem definidos das personagens, um equilíbrio significativo entre desenhos simples e vago e outros plenos de pormenor). Por um lado pensamos em Charles Burns, com Black Hole, mas ao passo que esta é uma alegoria em torno de epidemias e suas repercussões sociais (o HIV, como exemplo máximo), Le Grand Autre trata de algo muito mais pessoal, centrado em Louis. No entanto, esta aproximação é algo superficial... Um segundo termo de comparação será Like a Velvet Glove cast in Iron, de Daniel Clowes pelo seu carácter de invasão da lógica onírica num universo diegético aparentemente naturalista, empírico. Jamais afirmarei tratar-se de surrealismo, o que além de ser redutor é pura e simplesmente falso, mal aplicado. Falar-se-á de aspectos que parecem intrínsecos ao sonho, mas o sonho não é um sinónimo nem um exclusivo do surrealismo, o qual é um movimento muito específico da história da arte, com os seus mecanismos próprios e técnicas específicas, que não se verificam nestas duas obras de banda desenhada (aliás, poder-se-ia argumentar mesmo que as premissas do surrealismo dissipam-se no momento em que são integradas num projecto narrativo; vide Max Ernst e os seus romans-collage). Se algo próximo a essa ideia ocorre em Le Grand Autre, temos aqui então uma Traumgeschichte, isto é, uma história em que os elementos de um sonho invadem aqueles que seriam os do acto da vigília. Max Klinger, com A Luva, de 1881, foi um dos percursores deste tipo de aproximação das narrativas em imagens ao material onírico na idade moderna. O sonho revela velando, e nele há ainda a possibilidade de ver, ainda que o grau de verdade seja inalcançável, não é sequer pensável. E é essa integração e encobrimento-para-revelar que nos fará aproximar da questão da visão.
Paul Valéry, em Analecta, citado por Walter Benjamin em “Sobre alguns motivos em Baudelaire”, diz o seguinte: “Quando digo: estou a ver aquilo ali, isso não significa que tenha sido estabelecida uma equação entre mim e a coisa... mas no sonho está presente uma equação. As coisas que eu vejo vêem-me, tal como as vejo a elas”. Benjamin citara-o porque sabia que Valéry era um atento leitor de Baudelaire, em cujo famoso poema, "Correspondências" (em As Flores do Mal), a característica mais marcante do “bosque de símbolos” é o facto de ter a capacidade de lançar “íntimos olhares” sobre quem os atravessa.
Aqui encontramos modos mais interessantes de colocar o nosso pensamento em consonância com a respiração própria da obra. Mas há ainda uma outra contribuição possível dos lados da filosofia. Maurice Blanchot tem um pequeno texto, em L’Entretien Infini, chamado “Parler, ce n’est pas voir”. Estarei aqui a exercer uma violência tremenda em querer reduzir o profundíssimo pensamento de Blanchot numa mera fórmula qualquer, aplicável à interpretação do acto criativo de Debeurme, mas isso é feito crendo que há aqui uma possibilidade de aproximação, se bem que nunca final ou cabal.
Podemos a qualquer momento esquecer uma palavra. Mas esquecer uma palavra é revelar que se podem esquecer todas as palavras. A palavra surge assim como um perigo, a de vir a permitir a destruição de toda a memória. Mas porque é que há esse perigo? Porque palavra corta a ligação possível com as coisas, permitida pelo olhar, o qual aproxima tudo, por mais longe que esteja. O olhar é sempre uma aproximação. A palavra, afastamento. Mas é como se fosse um desvio do visível sem nos levar ao invisível. É um “fora” da ideia mesmo de visibilidade. Reforçando essa ideia do corte perpetrado pela palavra, precisa-se no texto de Blanchot que o acto de escrever não é tornar visível a palavra mas sim a de continuar a assegurar esse corte (e que se note as origens comuns entre escrita e a incisão cirúrgica, pela comum raiz do estilete). Isto é muito poderoso e levanta questões profundas que nos deveria fazer evitar respostas fáceis, como a fórmula empregue, sobre um escritor qualquer, de que “é muito visual”, por exemplo. No que diz respeito à banda desenhada, é um princípio de problemáticas muito complicadas: sendo a banda desenhada um espaço de encontro entre a visão e a palavra, torna-se, sob a égide de Blanchot, num espaço paradoxal por excelência.
Há uma relação directa permitida pela distância que se faz entre o objecto e o olhar, sendo essa mesma distância, sob a luz, sinal desse contacto. A palavra quer transcender isso, quer como alforriar o olhar das limitações do olhar e, ao fazê-lo, provoca a possibilidade de todas as perversões, trocas de palavras, jogos, e a instituição do erro. Mesmo na escuridão a ideia de luz mantêm-se vivace, logo, possível, logo ainda se está no domínio do olhar. Na palavra, estamos fora desse domínio. Na continuidade do seu texto, e passando por Heraclito, referindo aquilo que o filósofo antigo disse da palavra do oráculo, Blanchot cita como esta palavra não expõe nem esconde, indica, isto é, é também ela uma forma de escrita.
Falar não é ver. E desenhar, será uma forma de ver, de dar a ver, detornar visível, ou é antes uma forma de escrita neste sentido específico, de que é algo que fica “fora” da visibilidade? Não sou capaz de providenciar uma resposta cabal, nem sei se ela é possível (talvez, convido-vos a isso). Todavia, é como se fosse uma resposta tentativa aquilo que Debeurme ensaia neste livro, ainda que a coloque no interior e ao serviço de uma história de crescimento e redenção, de perdição interior (a herança dos olhos perscrutantes da visão “outra”) e salvação pelo desejo e o amor. É quando Louis assimila totalmente a sua capacidade especial da visão que se torna autónomo, forte, mesmo que o preço seja afastar-se da cidade dos humanos. E é quando ele abdica dela (pelo menos parcialmente, pois um outro aspecto de Le Grand Autre é que mesmo nas trocas absolutas e nos objectos perdidos, há sempre vestígios deixados atrás, que poderão ou não despontar a glórias passadas ou a toda a sua potencialidade) que ganha outras possibilidades de liberdade.
Nota: agradecimentos a Nuno Cruz pelo alento para procurar este livro.
Caro Pedro
ResponderEliminarFoi um prazer. Confesso que estava muitíssimo curioso em relação ao teu texto. E gostei muito de ler que “visão e desejo são as personagens oculta de Le Grand Autre". Não podia estar mais de acordo. Parafraseando Merleau-Ponty: "voir c'est avoir à distance". A mais bela e pungente definição que conheço do que é desenhar.
um abraço,
Nuno Cruz