Duas mangás sob o signo do vermelho. 2.
Este outro livro tem uma natureza totalmente díspar em relação ao anterior. Se irmandades estabelece no seio da produção japonesa, será com Jun Hatanaka ou Shigeru Mizuki, ou alguns trabalhos curtos de Kazuichi Hanawa. Em relação aos primeiros, há o mesmo gosto pela revisitação de um tempo nostálgico, de um Japão que ia, se não desaparecendo, pelo menos se tornando mais diáfano, sob a luz fria da modernização, mas onde ainda havia algum espaço de sobrevivência para certas tradições, uma vivência mais campesina e mais coesa, mesmo que isso signifique um sentido de humor mais rude, baixo-ventre, enfim relacionado com o modo como se trabalhava, vivia e descomprimia. As afinidades com Mizuki prendem-se com a presença do fantástico ou do maravilhoso local, com as suas lendas, criaturas, fantasmas, ilusões. Mas sobretudo, com a despedida dos yokai (as criaturas) do mundo dos humanos (nesse sentido, seria curioso um estudo comparativo com as histórias de Gaiman e outros autores, para as tradições britânicas e/ou ocidentais), demonstrando-se a perda irreparável de outras dimensões com a chegada do mundo dito racional. O próprio traço de Katsumata é bem mais límpido e arredondado do que o de Hayashi (se exceptuarmos as intervenções dos “bonecos” da animação e a minimalização dos protagonistas), permitindo uma natureza mais próxima da mangá mais comercial, com desenhos mais suaves e “giros”, com o tipo de movimento, humor e tipificadas estratégias da mangá mais famosa... (Mais)
Neige Rouge é na verdade uma antologia que reúne 10 bandas desenhadas curtas, criadas entre 1976 e 1980, e uma de 1985, e ainda um grupo de quatro curtos textos ilustrados de memórias da infância rural do autor. Diferentemente de Ryota du Mandala, de Hatanaka, não há aqui uma presença de qualquer personagem que una as histórias numa qualquer unidade espácio-temporal e que, ao mesmo tempo, nos ajude a estabelecer relações (in)directas com a vida do autor. Todavia, há como que um ambiente sempre presente em todas as histórias que - de acordo com as notas dos tradutores e editores –, apesar de se desenrolarem em momentos diferentes na história do Japão, acabam por se unir numa ideia coesa, a da tal sobrevivência de um modo de levar a vida avante. Parecem mesmo histórias que se contam em torno da lareira ou fogueira, ou numa noite passada nas casas de saunas, entre viajantes, troca por troca. Até mesmo a linguagem verbal parece jogar um papel importante nesse domínio, uma vez que Katsumata utiliza o dialecto ou a sonoridade dos falares locais do Japão, como nos vamos apercebendo pelas anotações dos tradutores; a sua tradução por estratégias do patois francês é uma opção que pretende devolver esse desequilíbrio original, mas poder-se-á tornar um obstáculo para leitores que não entendam esse francês.
Neige Rouge (“neve vermelha”) é o título de uma das histórias. O seu título, assim como o do livro de Hayashi, poderá fazer recorda alguns leitores do Red Flowers, de Tsuge, figura tutelar da mangá de autor no Japão, a partir dos anos 60, e cuja influência é decisiva em praticamente todos os autores que se lhe seguiram. Essa informação é mesmo corroborada pelos editores deste livro. O que Katsumata deve a Tsuge é claro, assumido e afirmado. A história, aqui, centra-se na relação entre um jovem homem que trabalha na indústria artesanal do saké e uma rapariga que lhe vai pedindo o favor de lhe arranjar uma ou duas garrafas. Pelo meio, intervém o facto de ele ter ido a um bordel e as lendas locais da ogresa da montanha e a mulher das neves. A “neve vermelha” é algo que apenas ocorre uma vez cada cem anos. no fim da história, dar-se-á um evento entre os dois protagonistas que inflecte novamente a narrativa para o sexo, e o título ganha uma outra perspectiva. Tal como em Tsuge e, ainda que obliquamente, em Hayashi, o vermelho é associado a ritmos naturais, inclusive aqueles do corpo da mulher, e, assim, também os da sua sexualidade, liberdade, peso físico, e o modo como isso, a um só tempo, parece afastar os homens (por medos, ignorâncias, ideias de impureza, de misticismos que não nos pertencem) e os excitar e os atrair (a promessa de uma relação “sem fruto”, o mergulho numa dimensão mais bestial do humano, o entregar-se ao poder da mulher).
No final da fruição de todas estas histórias, há como que uma convergência para um sentimento de uma alegria, “breve”, para o dizer como Virgílio Ferreira, ou “triste”, como Shakespeare. “Sweet sorrow”, é, na verdade, uma maneira de entender “saudade”, que é precisamente o sentimento que se parece espelhar nestas histórias: um olhar para trás, para algo que se deixou atrás, mas ainda assim sobrevive, nas formas destas ficções (que entendemos ter muito de real e herdado da memória), e por sobreviver, ainda existindo numa forma de vida, nada estranha...
Esta obra é a preto-e-branco, ainda que a tinta desta edição seja azul. Um azul-escuro mas suave, com alguns intervenções de manchas completas, de tramas, padrões complexos, riscos, que permite também um outro tipo de flutuação (mas muito diferente do de Hayashi) entre a simplicidade, por um lado, e a criação de pormenores realistas, conta os quais jogas as figuras. Sendo uma banda desenhada de um cariz mais universal em relação aos seus leitores (apesar da moral sexual possa fazer-nos pensar o contrário), tem estratégias visuais de uma maior candura, aceitabilidade, rapidez de entendimento, bem diversa da estranheza provocada pelas obras de Hayashi, ou de Tsuge, ou de Suzuki, etc., as quais são mais exigentes na reconstrução poética da parte dos leitores – e, por isso, mais merecedoras, quiçá, de uma atenção acima da da leitura comum. E que não nos engane esse aspecto ingénuo, pois as referências culturais são subtis e atentas, quer as que dizem respeito às tradições locais, a personagens específicas, quer à penetração leve que a cultura erudita tem nestas histórias. E a atenção para com os ambientes em redor das histórias é marcado, como o é de costume nas mangás mais interessantes: pequenas vinhetas isoladas que servem para marcar um compasso ou uma mudança de focalização, e que mostram um pormenor da vila, da actividade da aldeia, ou então que se espraiam na representação do mundo natural que serve de espaço a estas narrativas, como esta página, uma “abertura” no seu sentido musical a Illusion.
Mais, é essa mesma candura e capacidade de retratar uma sociedade em transição, a proverbial manutenção das tradições no advento da modernidade, que Neige Rouge se torna um bom título na continuação da criação de uma mais ampla consideração da mangá ente nós. Também Red Colored Elegy preenche essa função (se “função” houver ou se nos for permitido encerrá-la nela), para um tempo em que essa modernidade já havia sido instalada, mas a promessa da sua abertura política, social e cultural foi gorada.
Quer uma quer outra, nos seus pretos-e-brancos, revelam sob essa diáfana patina o fluxo, e vermelho, vivo das vidas dos autores.
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