
Há uma adivinha anedótica muito conhecida na língua inglesa e bastante antiga: “o que é preto-e-branco e vermelho a toda a volta?”. A resposta é “os jornais”, e a razão é sobretudo sentida por se pensar naqueles jornais sensacionalistas – os “tablóides” – que apostam nas mais básicas e por vezes abjectas emoções do ser humano, a sua curiosidade mórbida e indiscreta, um abusivo interesse pelo denominador mais baixo... O sangue dos crimes passionais ou violentos que “pintam” os jornais.
Os dois livros de banda desenhada japonesa que discutiremos de seguida são a preto-e-branco e têm vermelho toda a volta (*). Porém, não poderiam estar mais longe dessa atitude mesquinha e débil que se adivinha na adivinha dos jornais... O seu preto-e-branco não suja as mãos e explorado de um modo tentado e pensado em todas as suas dimensões. E o vermelho surge antes como uma metáfora poderosa das emoções suscitadas e retratadas, e não um efectivo derrame passional. (Mais)
O vermelho é, no Japão, uma cor auspiciosa e os símbolos relacionados com as cores são levados mais a sério do que nas nossas sociedades, cínicas, afastadas e desconfiadas de certas tradições, cegas a outras que teimam em se manter... Repare-se como o vermelho é a cor do sol que está no centro da bandeira desse país. Isso não quer dizer que não esteja igualmente associada também a emoções fortes, ao rubor dos rostos, ao sangue que pode correr... Há, em ambos os livros, emoções, digamos, à flor da pele, mas em que a sua expressão não se dá de um modo directo, bombástico, cru, mas antes desfila à nossa frente com um ritmo que parece ser contraditório em relação à sua força.
O primeiro livro é de Seiichi Hayashi, criado entre 1970 e 1971. Está muito próximo da criação do underground da sua época. Poderíamos dizer que faz parte daquela tradição que responderia pelo nome de gekiga, mas os seus elementos e ambiente, mais poético, menos centrado numa narrativa linear e coesa, colocá-lo-á junto à obra de Suzuki ou de Abe. O título original utiliza a transcrição do inglês “elegy”, pelo que revela o interesse do autor em se afastar das tradições japonesas. Se o fizesse, procuraria uma palavra que correspondesse às formas poéticas autóctones, e esta palavra parece indicar um interesse pelo estranhamento que permite a mistura de referências culturais (toda a obra está semeada delas). Ambas as informações colocam Hayashi portanto no centro de um grupo de artistas que procuravam fabricar uma nova tradição no interior da mangá moderna. O reino de maior importância para este livro é a elipse: estas são vincadas em termos narrativos e visuais no curso de toda a obra, fazendo com que este livro seja mais cheio de “não-ditos” do que de afirmações e formações concretas e decididas. Há um momento, já no fim do arco da relação dos protagonistas, um jovem artista que trabalha em animação mas sem grande fortuna, Ichiro, e a também artista Sachiko, que prefere manter-se ao lado do seu amante em vez de procurar uma saída mais comum e socialmente segura (os casamentos arranjados), há um momento, dizíamos, em que Ichiro, num tremendo desejo de esquecer essa paixão e fonte de confusão, repete incessantemente, “tenho de desenhar”. E, na verdade, Red Colored Elegy parece estar antes sob o signo do desenho, da pulsão de deixar uma inscrição no papel do que sob o desígnio de uma mais estruturada razão de narrativizar. Criam-se os desenhos e é nos seus intervalos que vai fluindo o mel do seu sentido último, não verbalizável.
O trabalho na indústria da animação do autor torna-se não apenas um elemento a ser integrado na história, como parte desta autobiografia ou auto-ficção (não há maneira nem informações suficientes para que decidamos qual dos pactos deveria estar em curso nesta obra, mas a discrepância dos nomes misturada com um certo tom típico dos autores da Garo da época levam à ideia da segunda), mas factor de estruturação mesmo das imagens, sobretudo ao início. Há espaços suficientes nos quais entram os corpos das criaturas animadas, sejam enquanto citações que informam a relação de Ichiko e Sachiko (com a Branca de Neve nos braços do Príncipe), sejam enquanto personagens-projecção da consciência de Ichiko (a personagem decapitada, que faz pensar numa versão de humor negro do Grilo Falante).


É possível que a elegia seja em nome do amor, mas ele manter-se-á, afinal, mesmo que haja afastamentos. Mas aquele que é mais afastado desse amor, afinal, somos nós.
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