3 de julho de 2008

Le kimono rouge e Vaste le ciel. Suzuki Oji (Seuil e Picquier Manga)

De acordo com Bill Randall, Oji fazia parte de um grupo interno à Garo ao qual davam o nome do “trio 1-2-3”, uma vez que os nomes deles significavam esses números: por ordem, eram Shinichi Abe (“ichi” ou um em sino-japonês), Suzuki Oji (que corresponderia ao dois, que se pode dizer “ni” em sino-japonês e “futatsu” em japonês, mas não imagino como) e Masuzou Furukawa (próximo de “mit’sou”, três em japonês autóctone, presumo). Do primeiro demos conta aqui de vários livros, e entenderemos quais as ligações estilísticas e existenciais entre estes autores. Quanto a Masuzou, não conhecemos o seu trabalho, e apenas sabemos ser ele o fundador da rede de livrarias especializadas em mangá, no Japão, a Mandarake. Mas imaginamos que este jogo de associação não se cingisse somente aos nomes. Tsuge estaria de fora desta contagem, não apenas pelo nome não se prestar ao mesmo jogo, mas igualmente pela idade (nasceu em 1937, Suzuki em 1949) e pela importância e influência profunda de Tsuge sobre os restantes autores, como fundador e figura tutelar de um certo tom literário, desviante e angustioso de criar mangás, bem longínquo de preocupações de sucesso fácil através das mais conhecidas fórmulas e géneros.
Algumas das histórias reunidas na antologia de histórias curtas Le kimono rouge (Seuil) e na novela Vaste le ciel (Picquier Manga) parecem apresentar eventos razoavelmente ancorados na realidade, como “Le kimono rouge” e “Un couple parfait”, mas essa é apenas uma ilusão que se desfaz ora subitamente – através de eventos no interior da narrativa que não têm lugar na nossa realidade, ora através de uma lenta mas certa percepção depois da narrativa terminar, a ideia de que algum do peso deixado atrás provem dos sonhos, das projecções, das fantasias das personagens, e não do chamado “mundo real” em que elas se inscreveriam. Não obstante, o tom da maioria das histórias continua a atravessar o território do onírico, de um poético mais ancorado na associação de ideias e das imagens (ainda que centradas em torno de um eixo mais claro do que sucede nas histórias reunidas em Bleu Transparent) do que na exploração da simplicidade e da objectificação do quotidiano (como acontece em Tsuge).
Se o primeiro volume reúne trabalhos curtos de Suzuki, como dizíamos, e o segundo uma novela de maior fôlego (mas apresentada em episódios, possivelmente segundo as unidades possíveis nas publicações originais: o segundo livro foi sendo publicado na Garo entre 1979 e 81, e depois terminado em 2002; vejam-se as diferenças estilísticas dos últimos trechos de cada livro, num traço de contorno muito mais grosso, estilizado, e com padrões de tramas simples) ambos, tal qual as obras similares de Tsuge ou de Abe, deve ser apreciada de modo pausado, singular, para que a angústia, e as felicidades, que comportam tenham tempo de se fazer, a um só tempo, fruídas e dissipadas. Se tudo aquilo que compõe o rosto mais visível da mangá afasta um certo número de leitores que buscam menos entretenimento e aventura do que uma mais profunda, e incómoda, experiência – lê-se não para encontrar soluções, mas sim problemas – este(s) autor(es) providenciam um rosto mais oculto, de uma mais marcada reverberação, mas que por isso poderá conquistar quem deseje ser não só respeitado mas surpreendido nos interstícios dos sentidos. O texto que encerra o volume da Picquier, da autoria de P. Honnoré, é não só informativo, como um excelente ensaio em torno deste autor. O tradutor-ensaísta não o nomeia, mas quando emprega a imagem do telescópio para falar do modo como se olha o passado de um modo em que o presente se imiscui nessa imagem, está a citar Walter Benjamin, e são as lições deste em torno da “memória involuntária” (que nasce de Proust, mas não só) que melhor figura de análise levantam para compreender os intricados movimentos de Vaste le ciel.
O título original desse livro (que surge no interior do livro transliterado) é Kokū Monogatari, o que se pode traduzir como “conto do reino” ou “do céu” (não tendo acesso ao kanji, apenas poderei adivinhar que é a palavra utilizada para “nação” mas que também significa “espaço”, o “espaço aberto do céu”; em todo o caso, os últimos capítulos tornam esta questão clara), cujo segundo termo está afecto aos mais antigos exemplos de produção de literatura em prosa na língua autóctone japonesa. O “reino” referir-se-á ao extenso território que se esconde nas dobras do pequeno torrão onde se delineia a narrativa deste livro: aquele habitado pelos mitos, as criaturas do folclore, os sonhos. Ou aquele que o pequeno Heikichi parece prometer cobrir com a sua peregrinação, mas quando esta “falha”. A tradução para Vaste le ciel revela de uma transposição – válida, aceitável – dessa obra “estrangeira” para uma poeticidade mais europeia. Tal como o Munō no Hito de Tsuge pode ser traduzido mais literalmente por “As incompetências/inabilidades de um homem”, mas a tradução francesa, L’Homme Sans Talent, deseja criar um reflexo com a obra mais famosa de Musil, também aqui a escolha dos tradutores quer dar conta desse movimento de transfiguração para a nossa tradição, como se o título fosse (e talvez seja) a citação de um poema identificável.
Cada conto em Le kimono rouge é separado por uma minúscula figura, uma espécie de nereide alada, simples sinal de separação. É como que um tema visual que parece ecoar em cada episódio – o laço em torno do pescoço da protagonista de “Développement personnel”, as andorinhas, os vários homens que voam ou planam, os olhares sempre estirados nos céus das personagens, os balões que pairam ao fundo da paisagem – que vamos identificando num jogo das escondidas. Todavia, é na leitura de Vaste le ciel que descobrimos tratar-se de uma figura de contornos mais exactos: nessa narrativa maior, uma verdadeira novela, passada no interior de um Japão entre o tradicional intemporal e o modernismo (na verdade as relações temporais são mais confusas; veja-se o texto de Honnoré), atravessam as figuras românticas do artista vagabundo, a família pura (um tratamento diametralmente contrário das termas e pequenas pensões rústicas àquele verificado em Ryota du Mandala), e as várias criaturas do rico e populado folclore japonês. É esse artista, o qual talvez possa ser confundido com essas criaturas lendárias dos tanuki, que chega um dia à pousada, que dá início a um conjunto de percepções fantásticas e fantasiosas junto ao filho mais novo da dona do estabelecimento: a degustação do “açúcar dos céus”, a identificação das plantas medicinais espalhadas nos caminhos e bosques, os mitos que vivem na terra, os dinossauros passeando nas águas do lago, os fantasmas que surgem nos caminhos. À beira de um lago, fala de seixos que se parecem com ovos e lugares secretos onde as criaturas dos bosques, e as fantásticas, e as mulheres, vêm procurar uma fertilidade do maravilhoso, e fala de uns ovos que são levados pelos rios até ao mar onde eclodirão, dando origem a “pequenos peixes alados, mais pequenos que a distância entre as pestanas, mais subtis que o vapor de água evaporada, mais transparentes que as miragens”. As vinhetas seguintes revelam essas criaturas, de troncos e cabeças de humano, cauda de peixe e asas de pássaro, volitando nos céus, vastos com a sua mescla de alegria e angústia. Essa criatura surge assim como um símbolo, uma condensação em figura, do complexo emocional que Suzuki explora nas suas obras. Ainda, talvez, o artista seja uma dessas criaturas. O constante balancear entre um ambiente realista, atreito ao empírico, e o onírico, é apenas uma outra forma de substanciar esse mesmo movimento. Há um momento em que a protagonista feminina, Karen, cai na cama com febre: esse é um dispositivo narrativo que permite elaborar dois episódios que parecem ser desvios à trama central da história para poder fazer penetrar um elemento onírico puro, imediado, mas a diferença é de grau, nunca de natureza.
Veja-se esta página, por exemplo, onde apenas se dá uma observação atenta da natureza, e do cansaço da criança devido ao pesado calor do verão, mas toda a composição e as onomatopeias nos obrigam a levar a estabelecer um diálogo entre o pássaro (um pica-pau japonês) e a criança, em que o primeiro interpreta o voo preso do segundo como de um sinal que esperava (depois o pássaro lança-se num voo dele mesmo). Esse diálogo continua, enquadrado mais tarde pelo conto do artista a essa criança da lenda do pica-pau, o qual é um mentiroso transformado por um ogre, e cujo destino é viver só e sempre na busca de resolver aquilo que ele próprio tornou irresolúvel. De certo modo, a “moral da história” desse conto não só cobre a existência do próprio contador e admoesta a criança, como se reflecte na própria narrativa, ou nas narrativas de Suzuki, onde a solidão é condição contínua e corolário da esmagadora maioria das personagens. Mesmo quando vivem juntas a amantes ou companheiros, entregam-se a egoísmos que, de um modo ou de outro, os afastarão.
Algumas histórias parecem ser ou adaptações ou aproveitamentos de obras literárias (com esta última palavra quero dar conta de uma figura menor que a primeira mas mais complexa que a citação), sempre com o ónus da sua linguagem e respiração no quotidiano. No entanto, tal como havíamos notado em relação a Abe, há como que uma atmosfera, e indícios visíveis, que nos lançam à ideia de que se tratarão de veladas autobiografias. Os indícios são a presença de pranchas de banda desenhada sobre as quais trabalham as personagens masculinas mais jovens que vão protagonizando cada conto no caso de kimono, e na dúvida, no final de Vaste le ciel, a quem atribuir a focalização da narrativa que acompanháramos até ali. Pois é apenas nos últimos capítulos que, depois de um maior “avanço” em termos temporais, nos deparamos com um fechar que torna o que está para trás confuso: quem afinal nos contara a história? Teria sido uma narração do pequeno Heikichi, relembrando-se da sua infância (imaginária, pelo que consta)? De Karen, através da sua escrita e poesia de adulta? De uma terceira, de uma quarta personagem? Num desses capítulos, num tempo mais moderno, o jovem adulto Heikichi cita um diálogo de um filme, em que uma mulher pergunta a um homem, “lembras-te então, não?”, e ele responde, “não, não me lembrei... porque isso esteve sempre no meu coração”. De novo, esse absurdo de um movimento imóvel, de uma distância que nada dista.
Podemos dizer que Suzuki cria nocturnos, na estrita acepção musical (desviando para um uso metafórico, naturalmente), no que tem de evocativo como de quebrado e lânguido em termos de composição. São as suas minuciosidades, os seus singulares e atentos toques com o que há de mais vivo que vão compondo um movimento único. Não é que haja propriamente um sentido cumulativo – há sempre um abismo que separa os elementos verificáveis, analisáveis, do ciclo vital que surge de repente. Não é que seja uma mimese do mundo; é vida-em-si mesmo. Oji Suzuki cria uma densidade através de um acervo de elementos subtis, leves... uma textura que se vai criando a partir de diáfanos fumos os quais, à distância – no plano da narrativa, da obra, da leitura – se adensam em sombras. Fariam parte de um mistério, mas essa palavra denota que existe ainda uma chave com que o desvendar, um sentido último e nítido a revelar; são sombras só, mas quão iluminantes.

2 comentários:

Anónimo disse...

Hello,

you make a beautiful choice of comics in your blog! (we found it, because of your review about spring . thanks a lot!

unfortunately, we don't speak portoguese, but babelfish helped us with a translation.

best whishes from berlin

ulli lust

Pedro Moura disse...

Wie gehts?
Thank you for your kind words. In fact, the text I wrote about Spring is not really a review, just a short notice. But I did enjoy the magazine and some of the works are very solid and - the exact word is "awesome", but not like a surfhead talking, it is really because these images bring awe to the one looking at them. Which is all the best for something dealing with the Garden of Eden.
Anyway, stay tuned to the Daada Books website. Sometimes I translate some of these articles into English and ask them to have them posted there, so I'll do that for the Spring text.
Tschüss!
Pedro