Esta é a primeira publicação académica, que se prevê regular, em língua inglesa, particularmente dedicada à banda desenhada da Europa. Como tudo o que isso pode parecer de limitador, é porém um gesto primeiro em estabelecer um diálogo directo e franco entre a teoria francófona de banda desenhada e a sua congénere de língua inglesa, mais atreita a close readings associados aos Cultural Studies e estudos subsidiários (estou a limitar radicalmente o alcance destes grupos, e a prever uma divisão, mas serve como introdução a especificar e esclarecer). A publicação existe em papel, mas cada artigo encontra-se disponível igualmente online, para os subscritores do mesmo. Foi essa versão (em pdfs) que consultámos e lemos (daí a baixíssima resolução da capa).
Para além de uma introdução contextualizante, e de resenhas críticas sobre publicações sobre banda desenhada europeia, o intuito central é, naturalmente, a reunião de artigos de natureza académica, com uma argumentação clara e pautada, ancorada em todo um conjunto de saberes disciplinares, para tentar fazer emergir os saberes indisciplinados desta área de criação. Este primeiro número contém cinco artigos. Deles, os melhores são os de Lance Rickman e de Matthew Screech.
O breve texto de Groensteen que fecha o grupo de ensaios não adianta muito em relação aos seus escritos, e tomar-se-á mais enquanto nota de balanço e esclarecimento (em inglês) do seu autor do que uma continuidade ou aprofundamento de qualquer das suas lições anteriores. Aprendemos, porém, que o seu próximo gesto é feito sobre Edmond Baudoin: En chemin avec Baudoin está já disponível. O artigo de Claire Tufts, “Family History and Social History: Étienne Davodeau’s Reportage of Reality in Les Mauvaises gens”, é uma leitura inteligente e coesa da obra de Davodeau, que a cada novo livro conquista um espaço muito particular, desenvolto e poderoso, no panorama da banda desenhada contemporânea, mas sem grandes rasgos originais de leitura (promete-se que o ensaio da mesma autora sobre a imprensa periódica infantil em França nos anos 30 e 40, em History and Politics in French-language Comics and Graphic Novels (UP Mississippi), aporte uma outra musculatura). E o de Paul Gravett, “De Luca and Hamlet: Thinking Outside the Box”em torno da técnica particular de Gianni De Lucca nas suas adaptações de Shakespeare (Hamlet, Romeu e Julieta, e A Tempestade) – em que cada página ou página dupla apresentam um só cenário sem quaisquer compartimentações, no qual se passeiam as personagens como se tratassem de múltiplos corpos de um mesmo [podendo consultar este post de Geraldes Lino] -, é fraco. De Lucca é um autor medíocre que, por mero acaso, teve a ideia de empregar esta técnica pictórica, famosamente empregue por Botticelli nas suas ilustrações da Divina Comédia, ou por Memling em A Vida da Virgem, nestes livros de adaptações. Gravett emprega uma parte substancial para acomodar uma lista (passatempo favorito dos arquivistas da completude, dois pontos antes da pesquisa histórica) de técnicas idênticas a torto e a direito, nunca deixando claro as diferenças entre esses trabalhos. Entre o trabalho de De Lucca, a sequência da “casa a ser montada” das páginas de Domingo de Walt & Skeezix, de Frank King e as 676 apparitions de Killofer há diferenças substanciais: no caso de Killofer, a personagem multiplica-se verdadeiramente no seu universo ficcional, há uma multiplicidade de corpos que não podem ocupar o mesmo espaço; nas páginas de King, existindo a separação intericónica (os traços a branco que separam as vinhetas), há uma segmentação clara das unidades de significação (tempo, espaço, acção, unidade de leitura, etc.); em De Lucca, porém, a não existência de uma separação clara permite uma leitura mais fluida, contínua mas também fantasmagórica do movimento e incessante aparecimento e apagamento dos corpos das personagens (que, sendo os “mesmos”, não se multiplicam). Esta diferença não é explicada por Gravett e, consequentemente, não surge aqui o profundo sentido que essa estratégia visual pode tomar.
Retornamos, portanto, a Rickman e a Screech. O primeiro apresenta um artigo simples e informativo, “Bande dessinée and the Cinematograph: Visual Narrative in 1895” sobre as relações entre o(s) filme(s) dos irmãos Lumière conhecido por L’Arroseur arrosé, e as várias versões existentes, anteriormente ao filme, da mesma história ou tema na banda desenhada desse tempo. No entanto, o autor não procura fazer a mera história – ou, pior ainda, simples menção a roçar a causalidade bacoca, como nós próprios arriscámos cometer antes – das fontes, a qual é impossível assegurar, mas encontrar relações profundas entre a sofisticação visual existente nas bandas desenhadas que discute, sobretudo na versão de Hermann Vogel, aqui reproduzida (e cuja comparação impede a ideia de evolução, noção supérflua e inoperativa no campo artístico) e as limitações inerentes a uma tecnologia que começava a desenvolver-se (sem com isso negar as capacidades dos Lumière em “trabalhar bem com pouco”). Trata-se de facto de um estudo comparativista (num sentido literário, artístico, cultural mas também tecnológico) excelente.
Finalmente, Matthew Screech (autor de Masters of the Ninth Art: Bandes Dessinées and Franco-Belgian Identity), com “Autobiographical Innovations: Edmond Baudoin’s Éloge de la poussière”, apresenta uma longa e sólida leitura deste livro seminal na senda da construção de um espaço autobiográfico inaugural, único e multímodo, que é o de Baudoin, autor que temos em particular apreço. Se não soar demasiadamente enfatuado, permitir-nos-emos dizer que na contínua leitura e estudo do trabalho do autor de Nice, detectámos algumas das dimensões estudas por Screech, nomeadamente o ritmo titubeante com o qual Baudoin se aproxima da realidade que o rodeia e que deseja representar, sobre as técnicas de incorporação das várias camadas de observação, criação, percepção e memória, a oscilação entre ficção, verdade e reescrita, e sobre a estrutura familiar que constrói de livro para livro, aquilo a que, noutro local, chamámos, baseados em Herberto Helder, de O Poema Contínuo de Baudoin. Há, portanto, muitos pontos de Screech que gostaria de abordar, por encontrar matéria de diálogo (ora convergente ora divergente), mas temo não ser este o espaço ideal para o fazer. Como é óbvio, Screech atinge leituras diferentes, balizadas por uma conversa com Baudoin, em torno destas mesmas questões, e por um sucessivo estudo comparativo da sua obra com a de modelos autobiográficos e artísticos precedentes, destacando-se as figuras de Michel Leiris, Roland Barthes e Alberto Giacometti.
Ainda hoje, em muitos círculos, sejam eles considerados “mainstream” ou “independentes”, há ma certa resistência à criação de discursos académicos e intelectuais em relação à banda desenhada. muitas vezes são os próprios autores a tomar essa atitude, mas são sobretudo os “fãs” e até mesmo os seus “jornaleiros” quem pretende hastear a bandeira do “não é necessário pensar-se para se saborear”. Sem dúvida. Não é necessário. Mas a necessidade tem pouco a ver com este esforço, e o pensar alerta a outros sabores menos imediatos e, por sinal, bem mais estimulantes. European Comic Art é mais um desses espaços a permitir a descoberta de sabores novos.
Nota: agradecimentos a Domingos Isabelinho, por permitir o acesso à publicação.
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