Conhecerão, decerto, aquele pequeno dispositivo conhecido como Pêndulo de Newton, no qual duas bolinhas cromadas em movimento na ponta de uma fileira de cinco oscilam e embatem umas contra as outras, e em que as três do meio não se movem (mas transmitem o movimento). Tomemos esse dispositivo como uma metáfora do funcionamento de uma relação complexa entre os campos da banda desenhada e da ilustração, encontrando neste livro um exemplo.
Por um lado temos a banda desenhada, com a sua estrutura de texto e desenhos marchetados numa relação maior do que a soma das suas partes, ou em que as partes na verdade o não são, indissociavelmente fundadas nessa mesma relação. Por outro lado surge a ilustração, que estabelece uma relação de complementaridade e co-presença com os textos, mas com eles não se confunde, e permite ainda a sobrevivência de uma mínima fronteira entre cada domínio. A oscilação das pequenas bolinhas dá conta igualmente do movimento de avanço e recuo permanente, da ausência de uma “linha de evolução” simples, e da negociação real entre movimento e inércia que existe na vida artística de ambos os domínios. E, se bem que não possa ser tomado de uma forma redutora e linear, ambas as áreas vivem nesta duplicidade de relação, em que uma vai puxando ou empurrando a outra, mas se pode encontrar um fio de continuidade nas suas vidas, pelo que faz todo o sentido, em certos momentos, olhá-las em simultâneo (com toda a liberdade a fazer ainda outras associações).
Quanto às três bolinhas inertes, tratar-se-ão da nossa permanente cegueira social e ignorância em julgá-las, a todas, a ambas, a uma e a outra, profundamente inertes e não como aparentemente passivas/invisivelmente activas transmissoras dos movimentos.
Num catálogo publicado anualmente pela Associação de Editores [Sul-]Coreanos, encontramos na secção “Livros Infantis/Banda Desenhada” este título, no meio de livros indiscutivelmente de “banda desenhada” e outros indiscutivelmente de “livros ilustrados”, mas a sua leitura revela precisamente a vivência num espaço intervalar entre ambos os campos. Kumong, que significa “buraco”, é escrito e desenhado por A I Won, pseudónimo e corruptela de “I want” da jovem autora Hwong, Eu-Ju, a qual pertence a um pequeno círculo de novos autores que, ainda que não caiam naquilo a que se poderia chamar a “nova banda desenhada coreana” (devedora, em parte, de toda uma série de movimentos internacionais que inflectem a banda desenhada para os campos da autobiografia, de uma atitude política e social mais arriscada no interior dos seus sistemas, para estilos mais caligráficos do que de virtuosismos, etc.), têm feito contributos, de formas particulares e fulgurantes, para uma renovação da banda desenhada no seu país, participando em publicações mais ou menos independentes – o que significa uma visibilidade muito pequena, ainda que aparentemente superior àquela garantida em Portugal, por exemplo – mas conseguindo, de vez em quando, uma presença em plataformas de maior visibilidade (como Angoulême).
Ao livro. Kumong é um conto fantástico, a um só tempo diafanamente espiritual e concretamente ecológico, simples na sua estrutura e extensão mas cujas reverberações são contínuas. Encontrarão, mas desconheço se se pode falar de fonte directa, alguns pontos em comum, leves, porém, com O Princezinho de Saint-Exupéry. Num planeta perfeitamente redondo, um rapazinho escuta os sons sob a superfície, que as almas dos animais fazem ao desejar partir desse plano mortal, lá em baixo, feito de cidades modernas. Depois, com um instrumento simples de desenho e corte, uma espécie de compasso constituído por dois pilares e um fio, corta um círculo nessa superfície, fazendo um buraco, abrindo passagem às tais almas. As almas partem então em direcção a um espaço sideral, passando por um outro pequeno planeta com um anel, no qual se passeia uma rapariga sem olhos, que ausculta (os sentidos mergulham de um outro modo) a passagem desses animais.
O ciclo vai repetindo-se, com o rapazinho inscrevendo cada vez mais buracos circulares no planeta, deixando libertarem-se as almas de todos os animais. De acordo com algumas leituras religiosas locais, poder-se-ão ver nestes animais os espíritos que presidem sobre as almas humanas, pelo que esta dimensão espiritual se confunde, não havendo planos diferenciados entre os homens e os outros animais. O que há é um aumento da dificuldade da tarefa do rapaz-psicopompo, com cada vez menos espaço para novos buracos, pelos quais apenas se permite uma passagem. Finalmente, quando liberta um bando de pombos, o revolutear das suas asas fazem-no tombar por um dos buracos, até ao fundo, sobre a cidade, onde todos são indiferentes ao seu corpo caído. A partir de então as almas dos animais mortos ficam a pairar presos no céu plúmbeo dessa cidade, e a rapariga para sempre solitária no espaço sem a passagem ritmada dessas almas.
As leituras, como se depreende deste sumário, não são incrivelmente múltiplas, mas são abertas o suficiente para podermos negociar as várias nuances do seu significado. Uma espécie de lição melancólica sobre o caminho do mundo e a diversidade animal e o espaço que lhe é cada vez menos reservado. Sobre a distanciação cada vez maior entre as pessoas e as tarefas que lhes cabem, que podem ser únicas mas não desassociadas de uma outra, numa complexa rede de causalidade e união.
A I Wan utiliza desenhos a lápis muito finos, cobrindo as expansões de cor com tramas também a carvão, a várias intensidades, empregando ainda a manipulação digital e a introdução de cores pálidas (castanho para cabelos e pêlo, azul para o som e o espaço). Em alguns momentos utiliza pranchas divididas em vinhetas, mas a maioria é composta por páginas ocupadas por um só desenho, quando não recorre mesmo à prancha dupla. O texto é simples, numa linguagem acessível (ainda que em coreano; refiro-me, portanto, aos seus leitores primeiros), empregando as repetições frásicas que pautam e ritmam muito da literatura infantil. Há, portanto, uma série de estratégias mais próxima dessa linguagem, com os seus princípios clássicos. E é um trabalho em consonância com outros anteriores da autora, em que a presença mínima do texto incute uma dimensão poética à já poética linguagem dos seus desenhos, mais sugestivos do que decididos. E tudo isso concorre para este ambiente, digamos que tamisado, ténue, contido, para que seja mais efectivo no que cumpre. Tal como aquilo que é conhecido por rubato, na linguagem musical, é uma pequena fuga do tempo, para atingir uma mais pessoal expressividade. É a inércia aparente que transmite o movimento.
Nota: Agradecimentos a Yunseon Yang.
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