A mangá de Taiyo Matsumoto Tekkonkinkreet (cujo título no ocidente é Black & White) deu origem a dois filmes. Uma curta-metragem brasileira, realizada por Pedro Rossi, intitulada As Cotias do Campo de Santana, e, mais famosa, a versão animé de Michael Arias (ambos os filmes de 2006). O director artístico deste último filme é Shinji Kimura. Como usualmente acontece no mercado japonês, como parte do merchandising, das técnicas de marketing e da polinização de
várias áreas pela parte de um qualquer título de sucesso (mesmo que relativo, como este, ligeiramente independente), surgem muitas vezes dessas publicações “de luxo” conhecidas como aizoban ou ainda ilust-shoo, que permitem um olhar especial aos bastidores de uma qualquer produção, ou acrescentam informações dos contextos e condições dessa mesma produção. Uma espécie de “extras” em papel, portanto. Os dois volumes de Tekkonkinkreet Art Book são precisamente dessa natureza. (Mais)
É importante a informação de que o filme emprega uma técnica de animação chamada NPR, ou “Non-photorealistic rendering”, que permite um uso mais amplo de técnicas clássicas de cor e texturas sobre a animação digital, impedindo o aspecto de plástico usualmente inerente às CGI na animação (da Pixar ou da DreamWorks, por exemplo), e aproximando os seus estilos à da animação mais tradicional, que utiliza “células”. Ora isto permite, com todo o conforto e rapidez e possibilidade de recalibragem do trabalho permitido pelas técnicas actuais, a mesma impressão de sobreposição de duas camadas de duas dimensões cada – o “cenário” e as “personagens” – dos filmes clássicos. Já veremos qual a importância específica deste aspecto no contexto destes volumes.
Os livros diferenciam-se em “Shiro side” (isto é, “lado branco”) e “Kuro side” (“preto”), recordando o binómio entre os jovens protagonistas da história, “Branco” e “Preto”, as diferenças entre as suas personalidades, os ímpetos e poderes de cada um, e o modo como se complementam e reequilibram entre si (num avatar muito contemporâneo, mas claro, do yin-yang). O volume “Kuro/Preto” reúne sobretudo dois corpos de trabalhos “prévios” ao filme: esboços a lápis (preto e branco) dos cenários, edifícios, espaços de acção, com apontamentos mínimos sobre as personagens, e cenas breves a cores (lápis, tintas, aguarelas) que podem passar por apontamentos soltos do story board, de forma a dar conta do ambiente, atmosferas, enquadramentos, focalizações, ângulos dramáticos, etc. O volume “Shiro/Branco” é quase exclusivamente ocupado pelos cenários do filme, divididos pelas zonas geográficas que compõem a cidade imaginária (ainda que no Japão) da história, a Cidade-Tesouro. As imagens, estamos em crer, são mesmo aquelas utilizadas na produção do filme, o que é corroborado por um acompanhamento do filme com o livro na mão, cena por cena, ângulo por ângulo. Vejam-se por exemplo aquelas aqui colocadas uma sobre a outra, do escritório do yakuza, antes e depois do ataque de Preto ao mesmo. É tentador querer ver nesta distribuição uma relação íntima com as personalidades das duas personagens, mas apenas a leitura dos breves textos destes livros nos poderia ajudar a uma decisão, mas, hélas!, o japonês escapa-nos...
Seja. É a “leitura” do segundo volume, feito de cenários, ou melhor, como discutirei, de paisagens, que suscita as notas seguintes. A colecção de cenários de animação, criados desta forma mais clássica, e a sua mostra tal qual, não deixa de poder ser vista de um modo simples como a dos preceitos técnicos, um gesto de clareza dos manuais de ensino. Mas ao mesmo tempo estes livros almejam uma outra função que não apenas aquelas previstas pelos coleccionadores, fãs ou profissionais. Há como que a possibilidade de formar um novo modo de imaginação (“formação de imagens”), e que se prende com as noções a explorar: a de que se está a mostrar a potencialidade de tornar fantasma a presença humana, pela sua ausência.
Ilan Manouach editou um livro colectivo intitulado Arbres en Plastique, Feuilles en Papier, no qual reuniu desenhos ao comprido de uma centena de autores representando paisagens variadas (umas realistas, outras fantásticas). Sobre elas, apenas se passeiam os olhos do leitor. No caso presente, resgatam-se os cenários sobre os quais seriam sobrepostas as camadas das personagens e peças móveis do filme de animação. Há, no livro, como que um recuo, a nível técnico. Mas ontologicamente falando, encontraremos antes uma diferenciação. A da projecção de imagens humanas precisamente pela ausência do que representa o humano. É fantasmático olhar estas imagens.
Também um dos blogs de Rob Richards, Animation Backgrounds, entusiasta da animação norte-americana, e, se visto de uma perspectiva, o livro Spuk de Niklaus Rüegg, incitam a esta (re)visão de espaços de ficção no qual a ausência das personagens que os tornariam efectivamente locais os fazem regressar a uma espécie de indistinto, de fundo sem nome (mas que não são fundo, como veremos). São particularmente as imagens com cenários preenchidos por construções humanas aquelas que lançam mais aceleradamente a essa sensação, mas também aquelas que seriam representações do natural, precisamente por serem representações (em maior ou menor grau de convencionalização, e é aí que a representação do “humano” vai mais além da mera presença de figuras antropomorfas ou simbólicas nesse sentido), ainda que de modo diferente, que sublinham essa característica fantasmática. Tratam-se de paisagens fantasmáticas.
Jean-Luc Nancy, em “Paysage avec dépaysement” (artigo de 2002 incluído em Au fond des images, de 2003), explora as associações entre pays, paysan e paysage como se de uma declinação se tratasse, procurando assim analisar não só a que caso essas palavras pertenceriam, mas qual a função da paysage nesse código. Aprendemos que se trata da de representação. A primeira lição que se aprende, de facto, é que a noção de paisagem implica sempre um olhar humano: ela não existe enquanto tal no mundo natural, por definição ininterrupto e implicado (a “bioesfera”); só o olhar humano e os seus condicionalismos culturais a fatiam nesta noção, digamos, portátil, a qual é, a um só tempo, “afastamento” e “pertença”. Existindo, ela representa esta nossa capacidade de a pensar.
Folhear este livro, dividido pelos bairros da Cidade-Tesouro, é permitir-nos flanar pelas suas ruas, becos, corredores e saunas, parques de diversão e infantis, armazéns e cantos sob a ponte, de um modo absolutamente solitário, mas como se estivéssemos a ser observados a todo o momento ou esperássemos vir a encontrar alguém, subitamente, ao virar uma esquina. A total ausência de um contacto com alguém numa paisagem, numa rua, é assustador, pois não temos com quem partilhar o peso e imensidão do mundo. Por isso inventamos, mesmo no escuro, presenças que nos façam companhia. Mesmo que sejam monstros. Por isso nos sentimos mais observados quando estamos sozinhos do que numa rua cheia de gente.
A paisagem é, ainda com J.-L. Nancy, “o contrário de um fundo; o “pays” deve ser aí totalmente superfície, somente e por todo o lado”. Superfície perfeita. Mas em que superficial assume um significado positivo, visual. Retomamos assim a ideia da sobreposição de duas camadas de duas dimensões sem que se perca essa mesma natureza de duas dimensões na unidade compósita. Porém, é o apagamento das personagens do filme de M. Arias que torna estas imagens em paisagens particulares. A superfície, descobrimos então, é a do nosso próprio olhar. Uma outra camada que não impõe qualquer espessura.
Na tradição da pintura intelectual chinesa (influenciado, claro está, o complexo Coreia-Japão), a pintura das paisagens relegava a figura humana para uma posição ínfima. No complexo de linhas de pincel e de aguadas que desenham paisagens montanhosas, interrompidas por neblinas, árvores floridas e rios de inúmeras curvas, é difícil discernir as construções humanas como templos ou barcos, ou os solitários mestres contemplando a lua ou atravessando essa imensidão. Ainda que incorramos num perigoso cruzamento de referências (e sem as argumentar, tornando-os por isso insustentáveis para além de um mero impressionismo), é como se nos fosse possível encontrar aí uma forma de representar a ideia ocidental do Sublime, de um corpo imenso natural que escapasse à visão global e, por isso, incutisse um sentimento profundo, abissal, de perigo e de separação. Nancy, de novo: “o infinito no finito”. Está lá essa promessa, e é ocupando a paisagem superficial com o nosso olhar que nos apercebemos (quer pela percepção sensitiva quer pelo intelecto) dessa profundidade visível.
Oi Pedro, tudo bem com você?
ResponderEliminarAonde eu poderia encontrar esse livro? Eu moro no Brasil. Procurei na Amazon mas não encontrei.
Um abraço,
Lelis
Olá, Lelis,
ResponderEliminarInfelizmente, duvido que seja fácil encontrar este livro nas lojas online como a Amazon. Esta é uma edição japonesa, por isso tentaria lojas que façam importação do Japão (estou seguro que no Brasil exitirão algumas), ou através de sites japoneses que façam envios internacionais.Por exemplo, a principal livraria de HQ/BD/Mangá do Japão, a Mandarake: http://www.mandarake.co.jp/
Espero que ajude.
Oi Pedro. Obrigado por sua resposta.
ResponderEliminarUm abraço,
Lelis