Este livro tem uma pequena cinta à sua volta. Não tem nada escrito, apenas um padrão desenhado, e cada uma das pontas está colado às guardas do livro. Se a quiséssemos arrancar, teríamos de rasgar pedaços das guardas, as quais não têm quaisquer imagens. Apesar de uma nota dos editores ter esclarecido de que a razão destas bandas estarem coladas se prendia somente com o facto de ser uma forma de a proteger, de as não deixar cair, e que não se reveste de qualquer opção estética ou significativa, ainda assim, impulsionados por uma ligeiramente fantasiosa interpretação, queremos crer que ela, a banda, se torna efectivamente uma parte integrante do livro. Na cópia que temos, cobre parte do título, a saber, a palavra “Berlin”, e as duas primeiras letras do nome da autora, “Merav” (isto na lombada do livro, onde se escreve em inglês, e não em hebraico, como na capa Porque e como será isto importante? Adiante se verá.
O primeiro desenho (no interior do livro, parte do texto), sem moldura, é o de uma locomotiva ao longe, no meio da brancura da folha, lançando baforadas de fumo espesso e movendo-se da direita para a esquerda (no sentido da leitura do hebraico). Seguem-se 33 imagens desenhadas no interior de uma moldura simples, quadrada, como se se tratasse de um livro normal de banda desenhada. Mas este não é um livro normal de banda desenhada (ainda que estejamos aqui a policiar o termo por uma visão estreita). A cada página ímpar, surge-nos uma imagem solitária: o oceano e as suas ondas, uma fiada de galhardetes contra um céu escuro, uma cerca de madeira branca, um plano muito aproximado de uma boca escancarada e mostrando-nos um dente quebrado, uma mulher dormindo, uma cerca de arame farpado, as entranhas de uma pessoa, pãezinhos e bolinhos à venda, uma mão pairando sobre a chama de uma vela, uma refeição da Lufthansa, um dedo mergulhando em água, e muitas outras... Conseguir estabelecer uma relação linear e sem titubeações entre todas elas não é tarefa fácil.
A escrita por fragmentos é predicado da modernidade. Merav Salomon parece executá-lo conscientemente, uma vez que as estratégias da autora trazem experiências passadas em livros ilustrados. Encontramos em A family visit to Berlin não propriamente uma narrativa (com as suas partes constituintes) mas antes uma série aparentemente disjunta de desenhos: objectos, pessoas, e sítios, nenhum dos quais representados mais do que uma única vez (sendo a iteração um princípio central da constituição narrativa). Scott McCloud, em Understanding Comics, propôs uma tipologia de transição de vinhetas nas quais a última é chamada de “non-sequitur”, “a qual não oferece nenhuma relação lógica de qualquer tipo entre as vinhetas”. Diga-se, em abono de McCloud, que o próprio admite ser muito difícil conseguir constituir não-relações entre as imagens de um “texto” determinado, precisamente porque é apresentado enquanto texto, num sentido amplo, isto é, enquanto uma unidade organizada no interior de um determinado veículo, neste caso, um livro. Na pintura clássica de paisagens na China (e na Coreia e no Japão), era habitual apresentar os vários trabalhos em fólios organizados, uma espécie de proto-livros, os quais estavam organizados de acordo com certos princípios – fossem estes as estações, uma certa zona do país, um tema interno comum. as famosas séries das Vistas de Hokusai e Hiroshige, por exemplo, constroem um retrato cabal de uma mesma entidade espacial ao longo de tempos, ângulos e distâncias, mostrando o mesmo troço do universo como um todo através de uma atenção fragmentária a cada uma das suas partes constitutivas (quer espaciais quer cronológicas). A family visit to Berlin parece cumprir a mesma noção. Não se trata de uma série de desenhos, mas uma sequência: há de facto um princípio organizador que emerge na sua completude. No livro de Salomon, a primeira instância dessa completude é o próprio livro, com o seu título, o seu formato, e a cinta, que o cinge. Para mais, a palavra visit no título remete a uma vetusta tradição do livro ilustrado que nos falam de viagens, quer estas sejam ficções cómicas (como as das personagens de Töpffer) quer sejam experiências mais reais (como o livro de Richard Doyle, Brown, Jones and Robinson).
Mas o factor de agregação maior é o sentido de recolecção. Se olharmos numa segunda leitura, mais distanciada, do livro, aperceber-nos-emos de algumas recorrências. Encontramos vários modos de transporte, mesmo que apenas de viés: o comboio (no princípio, mas talvez ainda na imagem das persianas), o avião (na refeição da Lufthansa), o barco (o mar): movimento, viagem, visita. A estada em Berlim está presente explicitamente nas palavras em alemão em vários momentos e locais (a bilheteira, a montra de pães e bolinhos, a estação de comboios em Eberswalderstrass, e talvez o facto do voo ter sido da Lufthansa?). O lugar visitado, o lugar de retorno. Mas isto não é tudo. Vemos também uma mulher a dormir, um homem aparentemente deitado, de olhos bem abertos, e o interior de um corpo humano. Muitas das imagens mostram-nos um céu totalmente negro, denso, ou então completamente a branco, relembrando, à vez, dos efeitos de luz do crepúsculo ou das madrugadas. Por sua vez, a mão sobre a vela poderá ser um indício dos rituais do Sabat, quando as mulheres acendem as velas, mesmo antes do pôr-do-sol de Sexta-feira. É verdade que as velas deveriam ser duas, o que então nos poderia levar a pensar numa afoiteza infantil, para ver quão perto e durante quanto tempo se conseguiria ter a mão sobre uma chama... Mas esta segunda leitura escapa à força de gravidade que as restantes imagens cria, e a primeira, considerando aqui um jogo de metonímia visual, ajuda-nos a sublinhar um elusivo, ainda que contínuo efeito.
É como se nos fossem dados a ver os elementos com os quais poderemos compreender a insónia, a angústia, as noites sem dormir, que se desencadeiam no momento em que somos assaltados por fantasmas, memórias e recordações (o quarto mandamento é, na verdade, lembrar o Sabat). A rememoração, assim, parece ser o fio vermelho deste livro, construído de recordações desfiadas. E não parecem ser memórias confortáveis. Bem pelo contrário, é a melancolia, e o evidenciar mínimos pormenores que parece impedir qualquer outro tipo de atenção ao focalizador do livro e, desta forma, da memória que representa.
Os desenhos são quase todos muitos simples, numa espécie entre o esboço rápido tirado no local e uma estenografia simbólica: as ondas são encaracoladas, os rostos e partes do corpo humanos são rudes, alguns dos edifícios são apenas desenhados nos seus contornos, ao passo que as sombras e as texturas surgem na forma de tramas simples. Mas esta simplicidade não pode ser entendida, nunca, como uma limitação do talento. É antes o traço exacto do espírito de rememoração dolorida. É como se tivéssemos, no lugar de um viajante obsessiva e possessivamente tirando fotografias de tudo aquilo que pudesse para vir a provar mais tarde que esteve “ali”, alguém que preferiu levar o seu tempo a desfrutar dos momentos dessa viagem, gastando o seu tempo com os espaços e as pessoas que a rodeavam, e depois regressasse com estes resquícios de sentimentos, recordações, signos de cada uma das suas experiências. E depois as desenhasse, de um modo simples, final mas eficiente, como se se tratassem de pequenos traços mnemónicos. O que não deixa ser a melhor maneira de fazer com que essas suas experiências também se possam tornar nossas, uma alternativa aos álbuns de fotografias que trazem antes distância (afirmando “tu não estiveste aqui”).
De entre um dente partido, o sorriso selvagem de um cão, um espesso fumo de chaminés industriais, cercas de toda a sorte, símbolos de distância e separação, outros há que fazem florescer um ambiente de serenidade e proximidade. Numa das imagens vemos uma xícara de café numa mesa. O padrão da toalha da mesa é similar àquele da cinta do livro. A última imagem do livro, mostrada aqui ao lado, parece imitar parcialmente esse mesmo padrão. Poderia ser visto como um conjunto de regras contra um tecido padronizado ou uma folha de papel quadriculado. Ou poderá ser um desenho abstracto e geométrico (e é-o). Ou uma grelha que não só serve de fecho à sequência como obrigado o leitor/espectador a retornar à cinta. Mesmo sabendo que esta cinta não deve ser considerada, de modo acabado, como parte do texto, o facto de estar colada ao livro faz-nos considerar que existirá uma fímbria de possibilidade de que pode ser considerado, seguindo as lições de G. Genette, como paratexto, uma moldura ou contexto informacional de qualquer texto (seja este estritamente literário ou não). Uma espécie de umbral. E a cinta preenche na perfeição esse papel. É essa a razão pela qual, apesar de sabermos estar a tomar liberdades a mais na sua interpretação, excedendo as intenções do autor (e dos editores) – mas também cremos que no momento em que um livro passa a existir no mundo ele ganha um grau de autonomia que lhe é próprio -, encontramos nesse aspecto objectual um modo de integrar este livro naquela categoria, por mínima que seja essa integração, dos “livros mecânicos”. Este termo deve ser visto como o mais abrangente possível, e que compreende livros que incorporam na sua materialidade dispositivos variados que os tornam algo mais do veículos de linguagens bidimensionais (ou inscritas dessa forma, como o texto e a imagem): transparências por sobre folhas, livros de Kalkitos, painéis deslizantes, bandas móveis, volvelles, estruturas arborescentes, ou em inglês, pop-ups, pop-outs, pull-downs, e o que mais houver... Inclusive livros cujas formas o fazem se inscrever nesta categoria, como O Livro Inclinado, de Peter Newell. No entanto, no caso deste livro em particular, essa inscrição só se torna aparente a posteriori, quer depois da leitura quer depois de uma consideração abstracta da cinta como parte integrante do livro. Torna-se assim tridimensional, acentuando as rememorações retratadas como experiências pessoais.
Se existe sempre algum tipo de limitação a toda e qualquer linguagem, seja ela “artística” ou não, na sua capacidade de representar a realidade da nossa própria experiência empírica, uma forma de aceder a uma mais ampla e profunda possibilidade é através da aceitação dessas mesmas limitações e, então, na consciência dessa limitação, e através da experimentação dessas restrições e auto-limitações, quer dizer, através do acolhimento desse menos que, conseguir-se-á encontrar uma prestação que está toda do lado da representação, acercando-se de uma natureza que é mais poderosa do que um outro caminho mais ilusório (aquele que se atasca na ilusão de que poderíamos de alguma forma transmitir a realidade e a verdade tal qual). É nesse sentido que entendemos as limitações (ou restrições) de A family visit to Berlin. Veja-se o título novamente. Não é claro: falará de uma “visita de família”, em que uma família viaja em conjunto, como uma unidade coesa, a Berlim, ou uma “visita à família”, que se visitam – a autora - nessa cidade? Ou será ainda um outro significado? Jamais vemos mais do que uma pessoa (ou parte de uma pessoa). Não há sinais do colectivo. Sentimo-nos atraídos para essa solidão também. E é nessa mesma solidão, a que é partilhada por cada uma das poucas figuras que não surgindo aqui e ali no livro que emerge a marca colectiva da família, do sangue que é guardado num nome, num imaginário, nos rituais, tal qual as pequenas rememorações são guardadas num livro, somando-se desta maneira numa experiência estranha e familiar a um só tempo.
Nota: agradecimentos a Shelly Duvilanski, da Third Ear, pela cópia do livro enviada e pelos esclarecimentos.
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