23 de novembro de 2008

O Livro Inclinado. Peter Newell (Orfeu Negro)

É curioso que se tenha tido de esperar cerca de 100 anos para ver este livro – objecto de culto entre coleccionadores e referência incontornável na história dos livros infantis (e não só) - traduzido em Portugal. Tal facto prender-se-á com circunstâncias históricas, com o valor que os livros infantis assumem na percepção social e na muito recente inclusão dos mesmos no círculo da traduzibilidade (família para a qual a Kalandraka, a Errata, cada um a seu modo, vai corrigindo a História e, agora, a Orfeu Negro com a sua colecção Orfeu Mini). Bom, ele existe agora, mesmo ao alcance da mão. E deverá fazer parte, de imediato, de uma espécie de cânone, por um lado, com toda a sua rigidez e valor de pauta, mas também provocador de uma aceleração e expansão de um corpo, de uma biblioteca cujas fronteiras são escritas pelas relações do texto e da imagem, e para a qual tentamos contribuir.
A história que o livro veicula não é particularmente desenvolta e acaba por reforçar tanto a sua natureza linear que dizê-lo não é nem crítico nem pejorativo: uma ama deixa que um carrinho de bebé se escape e role abaixo uma inclinada ladeira, acabando por apenas terminar (bem) ao fundo, num sítio seguro. A passagem literalmente vertiginosa desse carrinho e do divertido bebé pela avenida abaixo provoca estragos sobre os transeuntes e são eles que ocupam o espaço das descrições e imagens entre o início e o fim desse trajecto: polícias, vendedores, músicos, carregadores, cães, tenistas... Existe a curiosidade de a história não se iniciar nas imagens coloridas e que ocupam todas as páginas ímpares, mas sim um desenho na folha de rosto da história (inclusive o texto, ritmicamente traduzido por Rui Lopes). Há o aspecto também curioso de a queda ser feita da direita para a esquerda, direcção contrária à leitura ocidental, mas que nos obriga a entender a queda na direcção do centro do livro enquanto objecto. Mas é precisamente essa a atenção maior que o livro desperta: a consciência de que se trata de um objecto. O inclinado (slant, no original inglês) do título não diz respeito tanto à trama contada como à estrutura física do objecto. O livro não é rectangular, mas um paralelograma, que nos faz imaginar de facto que todo o objecto está inclinado... a queda do pequeno Bobby no seu carrinho não segue a inclinação da ladeira apenas, mas a do próprio livro (e a sua direcção para o centro do livro torna-se mais clara).
Peter Newell não foi o primeiro a pensar na alteração do formato e fisicalidade dos livros, acção que já existia muito antes dele, e inclusive aplicada à produção de livros para crianças. No entanto, se bem que fosse necessária uma investigação mais cabal desta afirmação, poderemos vê-lo como o primeiro autor cujas construções das histórias estão intimamente relacionadas com esses formatos inusitados escolhidos. Isto é, a forma estranha do livro (o mesmo ocorrerá com outros projectos de Newell, como The Hole Book ou The Rocket Book, que se prevêem publicados em Portugal também) não é apenas um fogo-de-artifício externo à diegese mas é sua parte integrante, senão mesmo seu fundamento. É neste aspecto que Newell não é apenas um pioneiro como um acabado e absoluto inventor de livros mecânicos.
Esta expressão, “livros mecânicos”, é por mim formada, ainda que esteja sob o signo, mais uma vez, de Walter Benjamin. Este escreveu vários breves textos em torno dos vários livros que compunham a sua colecção de livros, a sua biblioteca, que tanto prazer lhe dava de desembalar. Penso aqui sobretudo em “Aussicht ins Kinderbuch” (“Visão perspectiva dos livros infantis”), publicado em 1926, em que fala de uma mão-cheia de livros infantis, da sua colecção privada, presume-se, que era larga, referindo-se aos livros que tinham toda uma série de dispositivos que incutiam movimento, surpresas escondidas, revelando novas imagens sob outras tantas, como se surgissem de detrás de uma porta ou de uma cortina. A palavra “mecânico” vai encontrar as suas raízes mais remotas no hipotético pronto-indo-europeu, projectando-se em *maghana e *magh, significando, respectivamente, “o que torna possível” e “ser possível”. É nos gregos que ganha o seu sentido de “instrumento”, “engenho”, “expediente”, associando-se à tarefa do engenheiro e a um dispositivo feito de partes funcionais entre si. Na Idade Média é possível encontrar alguns usos que confundem e associam o vocábulo à mão, ao trabalhador, apontando assim antes ao fruto de uma tarefa manual, um acto do corpo. Talvez fosse melhor falar de “mãocânico”, tal fosse possível. Em inglês existe a noção de “movable books”, “livros móveis”, mas o que pretendo prever nesse vocábulo, mecânico, é toda a sua história etimológica: algo que é desencadeado pela mão (mais do que o acto de virar a página, na leitura), algo que revela do uso de um dispositivo de partes móveis, mas acima de tudo, algo que torna algo possível que não o seria sem esse mesmo dispositivo.
Benjamin, no texto citado, referindo-se sobretudo aos livros publicados entre os séculos XIX (o verdadeiro advento do livro infantil, associado às novas preocupações pedagógicas relativas a essa nova criatura do Iluminismo a que se daria o nome de “criança”, depois de Rousseau e Locke) e princípios do XX, estuda sobretudo o carácter pequeno-burguês dessas publicações, com todos os seus aspectos materialistas na superfície da análise – as cores garridas da cromolitografia, a mera posse de um livro enquanto objecto de estatuto social -, mas abre espaço à sua interpretação filosófica. Falando do escritor Jean Paul, e sobretudo das cores dos livros (e ligando-as à teoria cromática de Goethe) Benjamin mostra como estes livros provocam o contacto com a fantasia, que menos têm a ver com a introdução de uma “energia criativa” do que de uma absorção: “o corpo humano não pode gerar essa cor. Ele responde-lhe, então, não de um modo criativo, mas receptivo”.
No entanto, os livros mecânicos obrigam a uma acção do corpo, a uma participação activa no acto do revelar da matéria a ler. Se faço este circunlóquio é porque não desejo reduzir o acto de leitura mais normalizado a uma qualidade de passiva, e muito menos empregar a palavra “interactivo” como qualificador, depreendendo-se desse uso não existir interactividade na leitura, mesmo que normalizada. Seria um tremendo disparate. A diferenciação não reside no momento da percepção ou da inteligibilidade, e muito menos no da fruição, mas apenas numa diferença de grau do esforço de construção da leitura.
Os livros mecânicos existem desde a Idade Média, mas a esmagadora maioria dos livros que caíam nessa categoria foram, até ao século XVIII, dirigidos a adultos e serviam propósitos pedagógicos, científicos, ou explicativos. Não serviam de propósito de entretenimento, de efeito óptico divertido, de complemento ao desejo do brincar. O seu uso circunscrevia o sentido desejado, e não o multiplicava. Com o advento do livro infantil, essa dimensão torna-se possível. No entanto, sentimos que a esmagadora maioria das produções empregavam esses dispositivos como meros truques, passes de mágica, prazer óptico. Mas não numa relação fundadora do acto de contar uma história, na de percorrer toda a coerência do texto na sua dimensão de estratagema e de estratégia (etimologicamente partilhando a mesma origem).
É aqui que entra Peter Newell. Existiram muitos outros casos anteriores e posteriores (os livrinhos-teatro do século XIX, Eric Carle, Mercer Meyer, Edward Gorey com The Dwindling Party...) que efectuaram uma colação perfeita entre a inventabilidade formal e material do livro e a história contada, mas Newell fê-lo através de expedientes de uma simplicidade tremenda, mas não menos significativa. Haverá momentos estranhos na construção gráfica, como nesta imagem, na qual não faz sentido os degraus da casa serem paralelos à inclinação da rua (um outro livro onde a questão da inclinação se torna central, ainda que aplicada apenas à personagem central, mas onde todos e quaisquer pontos geométricos são exactos, é L'enfant penchée, da dupla Peeters-Schuiten d’As Cidades Obscuras), mas poderemos vê-los como pecadilhos da construção abafados pelo entusiasmo de todo o texto e imagens.
Voltando a Benjamin, e à frase que encerra o texto citado, criam-se nestes livros, de que o de Newell faz parte, “uma paisagem, um fogo multicolorido no qual irradiam o olhar e as maçãs do rosto das crianças”.
Agradecimentos a Marta Lança e à editora pela oferta do livro.

2 comentários:

Marko Umorista disse...

Como falo com o Pedro Moura?

Abraço
obrigado pelas boas leituras

Anónimo disse...

A quantos personagens