Segundo volume do projecto O Filme da Minha Vida, Daniel Lima oferta-nos a sua versão de O Deserto dos Tártaros, filme realizado por Valerio Zurlini, de 1976, baseado no romance de Dino Buzatti, o qual foi recentemente publicado em português pela Cavalo de Ferro, do autor que, tempos idos, mas não esquecidos, nos trouxe Poema a fumetti. Pelo que se depreende do texto incluso de João Paulo Cotrim a esta edição, Lima não terá feito a sua aproximação sob a leitura deste último livro experimental, mas com ele estabelece algumas linhas de afinidade.
É ainda no texto de Cotrim que encontramos duas palavras que condensam o modo possível de nos aproximarmos de Epifanias do Inimigo Invisível, “vidro” e “comentário”. Comecemos pela segunda. De facto, Daniel Lima não optou por uma mera transcrição gráfica dos eventos do filme em imagens estáticas, ilustrações circunstanciais, apontamentos, mas por uma mais desviante tradução, através de uma tomada de distância para com o filme, para com os seus alcances e limites, para nos devolver uma sua, muito pessoal, leitura. Um comentário, precisamente dito. Existem momentos condensados em signos visuais, aspectos do filme tornados alegoria, presentes no modo como o artista as transpõe através das suas imagens. E características há que nos fazem aproximar da segunda palavra. O vidro é uma substância fluida que, apesar da sua transparência, serve sempre de filtro em relação àquilo que nos permite ver, ou àquilo mesmo que nos dá a ver, uma vez que um enquadramento de qualquer coisa através de um vidro o torna mais visível essa mesma coisa.
É como se Daniel Lima tivesse eleito momentos menos centrais do filme, condensações, como dizíamos, de cenas vistas, permitisse ao mesmo tempo a ascensão de falhas de projecção e soluços das imagens em uma especial atenção gráfica. Duplamente uma atenção à materialidade fílmica possível de retransmitir no papel. Os jogos de reflexos no interior de um mesmo desenho, como se pode ver na primeira prancha dupla aqui exemplificada, não servem qualquer propósito de claridade explicativa (de ultra-claridade) ou narrativa em relação aos eventos (tal como ocorre, comparativamente, e a título de exemplo, nalgumas das vinhetas da obra-prima Master Race de B. Krigstein), mas para formar um sentido último, perene, carregado, da palavra “reflexão”. A um só tempo, ilumina com esse jogo uma operação de divisão (distância, diferenciação da moral das personagens, abismos intransponíveis entre cada ser humano) e outra de multiplicação (a possibilidade de reproduzirmos uma atitude, aprendizagem, aproximação, mais-valia, garantia de força).
Essa reflexão, raiz da natureza de um comentário, é reforçada pela presença dos pequenos textos quer sob a forma de legenda (sob a imagem, em espaço próprio), mas também, de quando em vez, em forma de título (flutuando no interior da mancha gráfica do desenho). Nesse ponto, mais do que na qualidade (no seu sentido de “característica”) do desenho, recordará a experiência de Lima nos seus trabalhos compostos enquanto metade do colectivo Gigi i Gigi, no qual se verificava sempre a presença de uma voz narradora extra- e heterodiegética, isto é, externa e estranha à diegese, superior mesmo, capaz de sublinhar essa distância pensante sob os acontecimentos da narrativa.
A tradução de certos momentos da história em um grupúsculo de palavras (“Augustina – montanha elmo espada”) parecem transformar-se subitamente em pequenos enigmas, alegorias, divisas, a serem interpretadas no interior desta nova narrativa, e não enquanto transposição do filme. A sua interpretação será precisamente aquilo que levará à Epifania, do lado do leitor, e não do espectador do filme.
É certo que Lima sublinha toda uma série de aspectos previstos e discutidos no próprio filme, sobretudo os mitos lentamente desagregados da honra e glórias militares, colocando-se de uma forma óbvia do lado dos discursos anti-militaristas que estão subjacentes a todo o texto original (romance e filme). Os inimigos que tardam em aparecer, que não são mais do que uma promessa cujo ónus se encontra mais rapidamente do lado do defensor (do patriota, do honrado soldado) do que do atacante (tão virtual quanto falso quanto inócuo, talvez, e por isso mais assustador em termos morais e míticos) são tão invisíveis quanto o título – de Lima – afirma, mas a epifania que promete, lá está, fará com que tanto os leitores como as personagens se apercebam que o perigo está dentro, e não fora. Timothy Leary, na sua conhecida ironia, disse uma vez que não havia maior oximoro na linguagem humana do que “inteligência militar”. O Desertos dos Tártaros, e Epifanias do Inimigo Invisível acentua-o, é uma sua confirmação. As imagens que Lima acrescenta onde as figuras humanas não estão presentes não estão a mais, nem a menos, precisando a natureza alegórica dos comentários – textuais e visuais – criados por ele. Se outra dimensão há ainda, que eu seja capaz de identificar, por agora, em Epifanias, é a de nos obrigar a re-ver o filme através deste filtro, deste vidro.
21 de novembro de 2008
Epifanias do Inimigo Invisível. Daniel Lima (Ao Norte)
Publicada por Pedro Moura à(s) 4:06 da tarde
Etiquetas: Adaptação
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