[texto corrigido ]Entre os dias 8 de Novembro e 31 de Dezembro de 2008 foram expostos na galeria Graça Brandão, a do Porto, uma série de desenhos do artista francês Mattia Denisse, exposição intitulada As Ilhas Desertas.
A razão pela qual desejo falar neste espaço destes desenhos prender-se-á menos à perspectiva do desenho enquanto disciplina autónoma das artes visuais, sobre a qual se exerceriam diferentes instrumentos de análise e discussão, do que à promessa narrativa que contêm e que nos permitem resgatá-los, ou pelo menos, aproximá-los, do nosso território, mácula dendrítica que cresce sem cessar.
Os desenhos têm títulos individuais, mas estes não estão expostos junto aos mesmos, e a uma primeira abordagem não parecem ser agrupados de forma especial ou diferenciada, com a única excepção de, sendo vários, serem distribuídos nas várias paredes da galeria. Não há informações textuais expostas, mas há um texto de apresentação de Maria do Mar Fazenda. Todavia, se os observarmos atentamente, e se nos permitirmos a um ricochete dos elementos internos a cada desenho sobre os dos restantes, fazendo com que caminhemos de trás para a frente e façamos uma leitura completa e variadamente cruzada, aos poucos identificamos esses elementos e poderemos chegar a uma ideia dessa “promessa narrativa” anunciada.
Denisse tem trabalhado entre França, Portugal e Cabo Verde nos últimos anos, sobretudo no campo da instalação, que, no seu caso, são verdadeiramente ambientes que assaltam todos os sentidos, e que empregam toda a sorte de materiais, ditos nobres ou não, perenes ou efémeros, mas jamais tombando num breve barroco, antes procurando a instauração de um espaço vincadamente marcado e divergente daquele que nos pauta os dias. Nos últimos tempos, para além de uma colaboração estreita com o duo João Maria Gusmão e Pedro Paiva (que menos tem a ver com co-autoria e mais com cumplicidades e afinidades), dedica-se à indisciplina do desenho, inscrevendo figuras e ideias e impressões sobre papel, com lápis ou grafite, carvão negro ou cores, pesadas estruturas ou ténues fantasmas. Os desenhos que compõem As Ilhas Desertas parecem manter-se num registo idêntico, sobre papéis pardos, usando grafite leve, aqui com uma trama maior para sombrear as figuras, ali deixando apenas os contornos delineados, numa ou outra ocasião inscrevendo uma frase, que pode ser mais ou menos apagada, e que tanto valerá de título, como de comentário enviesado, como de enigma.
Não há propriamente nenhuma ordem para observar ou ler estas imagens. Não se tratam de sequências. Todavia, observamos repetições de desenho para desenho: uma personagem é visível em todas elas, um homem, que se poderá depreender ser o próprio artista. Auto-retratos, ou melhor, a colocação de uma representação do seu próprio corpo enquanto personagem, actor ou função narrativa no interior de uma cena.
As repetições são da ordem do espaço: interiores e exteriores, estes agregando-se ora em densas e húmidas florestas ora em palcos secos e vulcânicos. Numa primeira instância, são esses mesmos espaços, com referentes reais, que se agregam as séries diferenciadas que se apresentam, ou melhor, na terminologia do próprio autor, “ciclos”, não só por se tratarem de corpos imbuídos dessa promessa narrativa na qual insistiremos mas por poderem vir a receber, no futuro, mesmo que apenas potencialmente, novos desenhos, novas peças nos seus conjuntos, portanto a considerar abertos. Esses ciclos são o das “conferências”, o das “ilhas desertas” propriamente ditas, e o dos “engramas”. O que empresta o título a toda a exposição associa-se à experiência que Denisse teve nas ilhas de Cabo Verde, durante um período em que desenvolveu trabalho local, colaborações com artistas locais e internacionais e uma relação específica com o espaço, não só do ponto de vista geográfico, como também geológico, mítico e memorial. Essa relação mnemónica com um espaço torna-se ainda mais clara no terceiro ciclo, os engramas, nos quais se constroem referências directas e figurais aos bosques que rodeavam o local da infância do artista. Se bem que engrama seja um termo complexo, o qual pode ser visto enquanto “traço físico da memória”, isto é, uma marca deixada no cérebro por uma qualquer memória, retornando-nos a imagens mecanicistas que nascem em Platão (a tabuinha de cera) e desenvolver-se-ão ao longo dos tempos com Descartes (o pano furado por agulhas), Freud (o bloco mágico) e Warburg (os engramas propriamente ditos), poderemos entender em Mattia Denisse uma sua aplicação, não menos complexa, mas expressa por um dispositivo simples. Em 1863, o inventor Étienne-Jules Marey melhorou o esfigmógrafo, transformando-o num aparelho portátil e aplicando-lhe um dispositivo que “traduzia” as pulsações em traços gráficos no papel. A invenção foi importante e seria uma chave nas disciplinas médicas, mas na verdade, no que diz respeito às artísticas, há muito tempo que existia um instrumento capaz de transformar as mais subterrâneas e profundas das pulsações e pulsões humanas em marcas gráficas. Esse instrumento, essa máquina chama-se desenho.
Ora a revisitação da infância nos “engramas”, no qual o artista se representa como que cumprindo pequenas brincadeiras infantis que talvez tenha feito na realidade, há muito – brincadeiras que têm sobretudo a ver com a fundição, o desaparecer, do corpo humano com o que o rodeia, imitando os animais ou as plantas -, encontra no desenho uma sua perfeita expressão. A escolha de margens bem delineadas em torno de cada desenho, ou a ausência de profundidade dos espaços, como que isolando a cena central e a personagem num bloco fechado de espaço, torna cada um desses desenhos numa máquina singular, num elemento acabado, numa marca consistente e controlada: numa palavra, num nítido engrama. As acções podem ainda ser vistas de outro modo, sobretudo aquelas associadas às “ilhas desertas” ou às “conferências”: tratam-se de estudos para instalações ou performances, mesmo que jamais venham a ser concretizadas enquanto tal, uma vez que o são já, suficientemente, ali, no papel, naquela cena representada (se fossem de facto "estudos", recaíriam numa categoria bem diferente, na qual se poderiam encontrar os estudos de Rebecca Horn, por exemplo). Se numa instalação o espectador é convidado a penetrar e a construir as suas próprias narrativas (e as de Denisse criam de facto um ambiente circundante e invansivo), ou numa performance a uma espécie de diálogo cara-a-cara com o artista, nas “conferências” o artista surge enquanto marioneta de si mesmo, como que dirigindo-se a um público que está do outro lado da cena, da folha de papel. As conferências têm todas nome, tema, objecto de estudo, mas é como se fosse alegoricamente que esses nomes são dados para, depois, associando-se os objectos e as acções visíveis (apagar uma sexta vela ao lado de uma caveira humana poderá levar-nos a uma revisitação da vanitas?), criarmos o guião e o núcleo de significados por nós mesmos. Pouco importa se estas acções (instalações, performances, conferências, lições) “falham” ou se “vingam”. Há sempre uma grande margem para um divertido erro, uma interrupção, ou um abortar: o mais importante é que a ideia de o fazer já tinha sido iniciada, e é nesse movimento que importa encontrar a força dos desenhos (e desejos) de Mattia Denisse.
Como afirmámos atrás, o artista trabalha numa espécie de afinidade criativa e intelectual com o duo dinâmico J. M. Gusmão e O. Paiva. Não se trata de influência unidireccional, ou de precedência de um (uns) sobre o outro(s). Trata-se de um caminho paralelo, feito de leituras e descobertas e discussões comuns, que passam por Pascal e Montaigne, V. Hugo e R. Daumal, entre outros literatos e pensadores. Gusmão e Paiva são como que uma espécie de Bouvard e Pécuchet das artes contemporâneas, no sentido em que procuram ir aplicando toda uma sorte de disciplinas e saberes sobre a criação artística (que não tem limites em termos de matéria ou modo de expressão, passando pela fotografia, instalação, escultura, filme, desenho, plano de performance, reconstrução do espaço de inscrição, etc.) à medida que os exploram. O aspecto caricato e de falhanço permanente das personagens de Flaubert está presente no sentido em que muitas das ideias apresentadas revestem-se de um cómico burlesco, espatafúrdio, absurdo ou mesmo tresloucado: homens que tentam abrir uma rocha com a força dos punhos, um hipnotizador de cordas, a mudança do eixo terrestre através do princípio da alavanca, a suspensão de uma torre de troncos... Não obstante, a promessa, o conceito, a ideia de que poderão vingar esse projecto está logo lá, e o maravilhoso e o fantástico têm ambos um lugar predominante nas narrativas que apresentam. Denisse participa de um mesmo ambiente e princípio estruturador. Não nos aperceberemos jamais o que cozinha aquela personagem dos desenhos, o que espera capturar na floresta, o que esculpe, o que monta, o que observa... Todavia, a promessa do cozinhado, do capturado, do esculpido, do montado, do observado está perenemente presente nos desenhos.
O título em si (o geral) poderá remeter a um dos mais importantes filósofos do século XX, Gilles Deleuze. A maior lição da leitura de Deleuze deveria ser a da total liberdade, criativa, filosófica, de apreciação, de acção e de crítica. Infelizmente, muitos dos seus compulsadores atentam à sua memória transformando-o numa espécie de sebenta de conceitos, a aplicar, policialmente, sobre esta ou aquela realidade (mormente artística, o que aumenta a gravidade do acto policial). A “ilha deserta” em Deleuze é a semente que lhe permitiria pensar sobre a diferença e a repetição (exposto e desenvolvido no livro com esse título). “Repetition”, em francês, reveste-se do sentido teatral de “ensaio”, e aí se notará logo à partida onde se prevê a diferença na mesmidade. “Causes et raisons des îles désertes” é o belíssimo texto que se encontra em L'île déserte et autres textes, etc. (Minuit), na qual o filósofo nos mostra como uma ilha é sempre deserta, mesmo quando habitada. Mattia Denisse, populando cada um dos seus desenhos (cada uma das “ilhas”?) com um corpo que é o seu, quererá não torná-las habitadas mas acentuar o quão elas desertas são, em contraste com aquela figura actuando nelas. Os elementos que vemos repetidos, os actos que parecem ser variações de um mesmo jogo, brincadeira, acto criativo, exacerbam essa posição. Apesar da identificação de três “ciclos” distintos, as coisas entrosam-se entre si – uma conferência num espaço externo, a construção de uma instalação no espaço da infância rememorada, a ideia de uma lição na ilha. Os ciclos circulam entre si, desenham espirais cujos braços se podem cruzar várias vezes e a distâncias variadas.
Uma anedota curiosa, respeitante à exposição, ou melhor, à sua montagem, deve-se ao facto dos desenhos, nas suas molduras, terem sido expostos “à francesa”, isto é, a uma altura média que ultrapassa a da linha de visão mediana dos portugueses. Resultado: as imagens encontram-se demasiado altas para a maioria dos espectadores. Mas o problema, se é que o é, não se cinge somente a uma questão física, a uma limitação de visibilidade e proximidade; é que essa altura modifica a relação de proximidade ontológica entre o espectador e o desenho. Walter Benjamin escreve em Pintura e Desenho. Sobre a Pintura ou Sinal e Mancha que um desenho muitas vezes exige ser visto horizontalmente, “sobre uma mesa”, revelando-se assim “o corte transversal de certos desenhos”, corte o qual é “simbólico, contém os sinais”... O sinal existe por oposição à mancha, e devemos entendê-lo como algo de externo, que é impresso sobre uma superfície, que pode ser tudo. A linha do desenho “designa a superfície” e, a um só tempo, “chama a si, como seu fundo, a superfície”. Daí que haja como que uma exigência de ver alguns desenhos, categoria ampla na qual recaem os de Denisse, de os ver de muito perto, horizontalmente, em um objecto manuseável. Usualmente chamar-se-á a esse objecto livro. Se a montagem desta exposição tivesse exigido aos corpos uma espécie de leve torção e abaixamento, que por sua vez levasse a uma proximidade, menos se estabeleceria uma contemplação que uma leitura. Nem todos os desenhos exigem a mesma proximidade: sensivelmente ao mesmo tempo, uma outra exposição (biface, poderemos dizer) de Francisco Tropa apresentava-se na galeria Quadrado Azul (Assembleia de Euclides (final)). Terá a ver com a matéria (carvão sobre papel, frottage, papel “esculpido”)? Terá a ver com a articulação de mais de um projecto expositivo (toda a Assembleia, longo projecto)? Terá a ver com uma obrigatoriedade de ver a arte deste ou daquele modo? O passeio a que a Assembleia convida é diferente do folheamento que se pressupõe nas Ilhas de Denisse. Acentuando esta exigência de proximidade, o artista sente a necessidade em editar um livro com estes e outros desenhos, reescrevendo-os nesse objecto, nessa nova exposição (não no sentido banal da palavra, galerístico ou museológico), mas enquanto instauração da nova aura, ainda segundo Benjamin. E estuda presentemente uma forma de o vir a cumprir. Lá então, cumprir-se-ão melhor as leituras d’As Ilhas?
Nota: agradecimentos a Mattia Denisse, pelos esclarecimentos e as imagens. Este texto tinha alguns erros factuais, fruto de distracções e pressas, corrigidos entretanto.
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