7 de janeiro de 2009

O Principezinho. Joann Sfar, d'après Saint-Exupéry (Presença)

Independentemente se se gosta ou não de O Principezinho, entendido como obra delicodoce ou movente, de platitudes emotivas ou uma poeticidade alegórica, de livro universal ou constrangido exercício cultural, não pode haver dúvida de que é um livro que marcou uma pequena viragem na história da literatura infantil, inscrevendo-se naquela categoria na qual encontraremos Carroll, Prèvert ou Eco. E há uma outra dimensão importante, que nos importa a nós, pelo menos. As ilustrações de Saint-Exupéry não são particularmente interessantes em termos de grafia e muito menos de virtuosismo. Os desenhos originais de Carroll, por exemplo, para Alice, são mais personalizados, ainda que tenham encontrado o entrave do seu tempo e dos editores. Mas se no caso de Alice a escrita permitiu um grau suficiente frouxo para que pudessem existir edições do texto sem as imagens - mesmo que tenha sido um dos livros que mais convidou a interpretações gráficas magníficas, de Tenniel a Rackham, de Newell a Thomas Maybank, de Ralph Steadman à polaca Olga Siemaszko e à muito recente, não editada, Violeta Lópiz (mas, se se notar, é de Carrol-por-Tenniel que quase todas as imagens destes artistas se fundam, com raras excepções) -, como corre, de resto, com tantos outros títulos cujas primeiras edições eram ilustradas (Verne, Dickens), Antoine de Saint-Exupèry emprega uma pequena diferença que permite desde logo a salvaguarda das suas ilustrações: a utilização do advérbio “assim”, imediatamente antes da imagem a mostrar, ancorando-a indissociavelmente ao texto. O advérbio tem um valor deíctico, e obriga à aliança entre a realidade – o momento, a circunstância específica da leitura – e o preenchimento dessa palavra com a ilustração presente, específica, inalienável. A importância não está somente no facto de haver uma coincidência entre o autor do texto e dos desenhos, mas no facto de que o autor construiu um texto coeso, total, entre ambas as dimensões (que apenas uma atitude de distância e analítica separa).
É bem possível que “S'il vous plaît... dessine-moi un mouton!” seja a frase mais conhecida da novela, aliando de novo a força promissora que existe entre o acto de desenhar e a expressão profunda de testemunho em primeiro e segundo grau (“eu conheci este principezinho” e “eis o que ele me contou”) e de criação de elos emotivos (os desenhos que o piloto vai oferecendo ao principezinho). É esse acto de desdobramento do desenho “infantil”, aos quais a maior parte dos “adultos” fica indiferente, na melhor das hipóteses mas que na esmagadora maioria das vezes não percebe, pura e simplesmente, que Sfar leva a um outro patamar. Depois de existirem várias adaptações à animação, raramente satisfatórias, surge uma versão em banda desenhada. Sfar já havia (antes?, depois?, desconheço) feito uma sessão de “desenho ao vivo” com a leitura deste texto (pode-se ver aqui, e seguir o resto), mostrando, em acto, aquelas outras acções não só previstas mas cumpridas no livro. A criação de um álbum de banda desenhada é apenas a continuação natural dessa abordagem.
Como é indicado pelo subtítulo, não se procurou uma exacta adaptação, ponto por ponto, mas sim sublinhar aquelas características, visuais e de acontecimentos, passíveis de serem contidas num livro de banda desenhada, que mantivesse a mesma candura e universalidade da obra original. Por exemplo, alguns episódios não são incluídos, como o do agulheiro e do comerciante dos capítulos XXII e XXIII, nem o protagonista é representado nos seus primeiros trajes reais. Mas por outro lado, na continuidade do breve exercício da paisagem de África sublimada e vazia de Saint-Exupéry, Sfar acrescentalhe uma dimensão, a da banda desenhada, que desdobra e desenvolve o comentário do narrador sobre a paisagem de África nas três últimas páginas, similares: a primeira com Antoine e o Principezinho junto a ele, a segunda com texto explicativo, a terceira sem ninguém... Estas três páginas devem ser lidas e relidas como uma só unidade que se constrói no tempo (da leitura e da memória), para que ressoe essa mesma verdade poética tão funda, da fundação dos espaços como lugares de amor, amizade, memória.
“Il tomba doucement comme tombe un arbre”, diz o narrador no original sobre o desaparecimento – transfiguração divina, teleportação mágica, dissolução da miragem – do principezinho; e é igualmente como uma árvore que os desenhos caligráficos, no esquema rígido de 6 x 2 vinhetas por página, na tradução das personagens em novos traços, no respeito de pormenores textuais antigos (por exemplo, os embondeiros que avassalam o pequeno planeta) e no capricho da introdução de novos (a sua interpretação como hórrido pesadelo), que uma outra parte de beleza contida nos eventos da novela e nos desenhos de Saint-Exupéry, aqui fortalecidos pelos de Sfar, florem.

8 comentários:

  1. Muito bom seu texto.
    Gosto de ler suas criticas sobre quadrinhos.
    Parabens pelo blog.

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  2. O Lewis carroll ilustrou a sua Alice? É a primeira vez que leio tal sandice!

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  3. Caro anónimo,
    Agradecia que - e considerando-o no mesmo saco de anónimos quejandos - antes de entrar na via do insulto, confirmasse as informações dadas. Não sou livre de erros e de más apreciações, corrigíveis depois de alertas e conselhos de leitores, mas neste caso, bastar-lhe-ia clicar no link que tem no texto (na parte "desenhos originais de Carroll") para ir dar ao texto em que falo da edição facsimilada do livro pela Frémok.
    Desta vez despeço-me, sem cordialidade.
    Pedro Moura

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  4. Com todo o respeito, não concordo com a crítica aos desenhos de Saint Exupéry como coxos de técnica, e miopes de virtuosismo. Esse desenhos ficaram ma memória de gerações de jovens e de adultos e despertaram a imaginação e o sonho de muitas crianças.
    Dizendo isto sou, há muitos anos, um admirador incondicional do grafismo e da imaginação desconcertante de Sfar. Só que daqui a 5 anos já ninguém se vai lembrar deste seu trabalho.

    www.homemdofarol.blogsopt.com

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  5. Cresci a ouvir os contos de Exupéry ... quanto ás ilustrações, com o passar dos tempos, ficaram um pouco ofuscadas em mim! Vou tentar descobrir o livro e "relê-lo" com outros olhos.
    Parabéns pelo seu blog"

    http://metamorfosesvividas.blogspot.com/

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  6. Caro Ruaz,
    Talvez não tenha sido claro, e o meu propósito não era dizer que os desenhos de Saint-Exupéry "não prestam" ou algo do género, mas sublinhar que o facto da sua importância está mais na indelével relação que estabelecem com o texto - não são "ilustrativos" numa acepção pobre desta palavra - do que na sua qualidade gráfica isolada. E não nego que a leitura (e olhar) desta obra, em determinado tempo, não nos marque para sempre de uma forma especial, nostálgica, etc. (no meu caso pessoal, acrescentar-lhe-ia a leitura de "Meu Pé de Laranja Lima", de José Mauro de Vasconcelos).
    Quanto ao que diz de Sfar, não faço futurologia, mas se espero que Sfar venha a ser reconhecido como um autor de um virtuosismo monstruoso, e um diverso talento cheio, não vejo porque esta obra deva ficar numa escolha de esquecidos; dito isto, continua a ser "Klezmer", "O gato do rabi", o "Pascin", e, claro está, os "carnets" da L'Association, os mais acabados...
    Obrigado e um abraço,
    Pedro Moura

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  7. Caro Pedro Moura,

    Estamos de acordo, as histórias do Sfar nos pequenitos carnets de l'Association são uma de uma frescura gráfica e narrativa enormes.
    Só penso que devemos ter alguma compreensão relativamente aos ilustradores de fracos recursos mas que não hesitam em passar ao papel '(agora écran), conceitos ou imagens que lhes sejam queridas.
    Por isso lhe deixo um endereço de um blog incoerente , hesitante e inocente.

    http://homemdofarol.blogsot.com

    Ruaz

    PS: Para lhe demonstrar o apreço que tenho pelas suas recomendações, digo-lhe fui este meio dia ao centro de Bruxelas comprar o Petit Prince do Sfar.

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  8. Na verdade, já conhecia o seu blog, pois julgo que tinha feito antes algum contacto e eu vou logo pesquisar links e blogs (um bocado como a polícia...).
    Aconselhos os restantes leitores a visitar igualmente, e descubram desenhos nos quais as cores (aguarelas?) não estão para contornos bem-comportados, mas antes criar sensações mais amplas...
    Muito gosto,
    seu,
    Pedro Moura

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