Uma primeira abordagem do trabalho de André Lemos poderá levar à ideia de que se trata de uma obra “obscura”, no sentido banal da palavra, isto é, em que o seu suposto sentido unívoco não é de fácil interpretação e recuperação por estar soterrado numa pilha de escombros que dele desviam. (Uma segunda atitude é dizer que “não tem sentido nenhum”, mas o próprio esforço a seguir para provar isso demonstraria um sentido). Todavia, bastará que o leitor, ou espectador, ou folheador destas publicações (ou todos os papéis a um só tempo) se entregue a uma disponibilidade sensorial e sensitiva para perceber que se está perante algo que se revela afinal simples, directo, e interpretável de um modo seguro e fácil se se seguirem as instruções dadas. Embroidered Muscles apresenta as suas instruções de modo claro. “Look closer/You’ll find it” é a primeira frase encontrada nesta série de imagens, uma por página. Olhemos de perto, então, na ideia de virmos a encontrá-lo, ao sentido.
Numa mais clássica publicação de banda desenhada, de séries de caricaturas ou de ilustrações organizadas segundo algum princípio lógico-semântico, o acto de a folhear, de virar cada uma das páginas, coincide com o da construção, nítida e cumulativa, da narrativa apresentada. O acto em si torna-se subsumido ao da leitura, logo, dissipa-se, torna-se invisível. As publicações de André Lemos, tal como a de muitos outros artistas que fazem assim desta liberdade metastásica a sua liberdade, tornam o acto do folhear visível, destacado, forte de maneira a que assume toda a importância. Os livros de Lemos tem menos uma estrutura do que uma textura (aproveito-me aqui de uma ideia de Henri Van Lier), e esse folhear apenas sublinha essa mesma natureza textural. A ordem das imagens e dos seus elementos constituintes não é, por isso, importante, uma vez que este livro obriga sempre a uma sua releitura (é quase como se a sua leitura não fosse possível, e apenas uma segunda experiência passasse a dar-lhe acesso), e o mais livre possível, de trás para a frente, saltando páginas, sem qualquer respeito para com as sequências circunstanciais da montagem do livro-objecto.
A primeira imagem mostra-nos uma mulher com as mãos colocadas numa posição muito particular, equilibrando em dois dedos dois pauzinhos na ponta dos quais se sustenta um pequeno cubo. Menos do que a anedota que parece apontar (analisável?, interpretável?, desvendável?), parece-nos que o mais importante se encontra nas relações frágeis estabelecidas entre o corpo humano e os objectos com que interage, ou sobre os quais age, ou aos quais reage: essa é uma situação que se repete em muitas das imagens em Embroidered Muscles. Mais, desenhos nos quais existem linhas mais ou menos rectilíneas que ligam a personagem a objectos são vários, o que faz pensar na exploração de um qualquer sentido esotérico, num ritual secreto perpetrado por estas criaturas. O lado obscuro surge assim claramente.
A presença de criaturas não-humanas ou de estruturas semi-vivas em companhia de seres humanos, ou de homens e mulheres que parecem ter permitido uma invasão parcial dos seus corpos por essas outras instâncias do vivo e do não-vivo corroboram essa ideia de uma centralidade temática trabalhada no interior desta publicação. “There are some quite disturbing funguses on my kitchen walls” é a segunda frase que surge na publicação, e é ela mesma a ilustração frásica do modo como o crescimento dos temas, das imagens, dos sentidos, é permitido por Lemos: menos por estruturação, do que por texturização de crescimento e exponenciação livre. As criaturas que vivem nestas páginas, deste a larva gigante de “Menstrual” ao “Walimoide” (cada desenho é intitulado), mas também os lábios afectados de “Lady Leech”, são uma continuação, uma textura extrema, desses primeiros e textuais fungos.
O próprio título, fruto dos contínuos jogos paradoxais e burroughianos de Lemos, constroem um encontro pouco provável entre tecidos contrácteis e o desenho possível da agulha. Se a imagem de dor, ou lesão, ou perigo surgem de imediato, não é surpresa, já que muitos dos sentidos, texturais, dos livros de Lemos apontam muitas vezes mais para os perigos inerentes do desenho livre (que Lemos, ao instituir, ultrapassa) do que para sentidos claros e seguros da ilustração mais banal.
Nota: agradecimentos a André Lemos, pela oferta do livro.
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