O que torna a obra de Hergé, sobretudo Tintin, tão de especial, que desperta toda uma série de discursos, sejam eles encómios ou celebrações, sejam diatribes ou libelos, aproveitamentos de terceiros, estudos formais e teóricos, históricos e arqueológicos, e passível de colocar sobre a lupa de uma miríade de disciplinas? A resposta é tão multifacetada como a própria existência dessa bibliografia secundária, e até do adjectivo tintinófilo (se bem que este vocábulo, em rigor, só possa ser aplicado àqueles discursos a priori de alabanças). O próprio Hergé, não somente é visto como a sombra por detrás de Tintin, como um homem, real, tangível e investigável, cuja vida passa pelo crivo das biografias, das psico-biografias, das análises políticas, das sociologias (bem ou mal-enjorcadas). Hergé é “escritor”, “desenhador”, “coleccionador”, e é “filho de Tintin”. Deixou “linhas de vida” e “herdeiros”, criou um “mundo” e semeou “segredos” e “invisibilidades”. Até criou enigmas esotéricos, alquímicos, maçónicos (e maçudos, porque não?) que revelam um “demónio desconhecido”. E tudo é pasto de discussão (tudo o que está em aspas é colhido dos muitos títulos existentes sobre o autor).
A aproximação a Tintin, sobretudo, nunca é indiferente junto aos leitores ao quadrado da banda desenhada, e mesmo que essa obra suscite distância, desprezo, e até ódio, essas atitudes são tomadas de modo profundo, como soe dizer-se, “engajado”. Tintin, e Hergé, a um ponto em que ambos se confundem enquanto objecto de análise (e esta afirmação nada tem de original), há muito que se tornou um prisma, de muitas faces, as quais se revelam em muitas formas, de geometrias variáveis, e através das quais se descobrem tantas outras imagens, caleidoscópicas, conforme a posição, a incidência da luz... Como Newton, no seu Opticks, descobre-se nesta obra “reflexões, refracções, inflexões e cores”. Basta começar a escavar e alcançar-se-á um qualquer objectivo, seja ele a Lua ou o sentido definitivo e absoluto da obra. Que se descobre provisório e relativo logo na etapa seguinte.
Pierre Sterckx é um conhecido crítico de arte que pouco se entrega às modas passageiras das artes contemporâneas e procura antes auscultar aquilo que de perene se pode manter nelas, conforme o seu recente Impasses & impostures en art contemporain. Baudelaire em O Pintor da Vida Moderna, afirma “O belo é feito de um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é muitíssimo difícil de determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, alternadamente ou em conjunto, a época, a moda, a moral, a paixão”. Esses dois elementos perfazem um todo indissociável, e não metades de algum modo independentes; apenas se terá acesso ao primeiro através do segundo, e o segundo, revelando-se, revela também o primeiro. Esta é uma posição complicada em toda a acepção desta palavra: não se trata nem de nostalgia cega ao que ocorre na contemporaneidade, nem um mergulho no fluxo hodierno sem memória do que está para trás, e permite ainda uma sensibilidade própria, individual, independente que procura menos a consensualidade do que um caminho próprio e que se faz, fazendo-se; mais, permite um olhar para lugares onde usualmente aqueles olhares mais pautados pelos discursos e poderes não vogam. Naquilo que ao nosso olhar importa, encontramos a banda desenhada. Sterckx também. Uma segunda camada de informação é biográfica, e conhecida: Pierre Sterckx não só foi conhecido de Hergé, como seu mentor. Conta Pierre Assouline (na biografia Hergé) que Hergé, conhecendo Sterckx enquanto académico, intelectual, e autor de artigos sobre arte, o abordou uma vez e o convidou, à queima-roupa, para se tornar seu mentor intelectual em termos de pintura. Sterckx ri-se desse estranho pedido, mas tornar-se-iam amigos; seguir-se-iam sessões em casa do autor de Tintin na qual se desenvolvem conversas em torno da estética da arte. De certa forma, Sterckx desperta em Hergé outras latitudes da criação, como em relação a Keith Jarrett, por exemplo, junto de um homem para quem a música não parece ter ocupado espaço privilegiado, como se nota na sua obra... Será importante o facto de se terem conhecido? Será relevante a sua amizade a título pessoal para o tornar mais preparado para a análise e estudo de Tintin? Hermann Broch escreveu uma vez que, “Na familiaridade, está latente o germe da insinceridade e da mentira”. Walter Benjamin criticaria o mesmo em relação ao que Max Brod escreveria sobre o seu amigo Franz Kafka. Sterckx não deixa de usar a sua amizade e experiências pessoais com Hergé para explicar um qualquer aspecto que sublinhe, mas jamais abusa ou arroga-se de algum poder de interpretação privilegiado. Bem pelo contrário, o objectivo de Tintin Schizo é encontrar as linhas de força da obra onde a perscrutação (demasiado) familiar não tem lugar.
Algures na sua biografia de Hergé (Hergé, fils de Tintin, trad. em português na Verbo), Benoît Peeters escreve, referindo-se ao aproveitamento das suas personagens pelos detractores no conturbado período após a ocupação alemã da Bélgica, durante a 2ª Guerra Mundial, momento em que todos se aproveitam para ajustes de contas, menos ou mais justas: “c’est comme si l’on devait attaquer le dessinateur pour mieux sauver ses personnages. Déjà, semble-t-il, la Belgique a besoin d’eux”. Os dois únicos pontos a diferenciar no contexto presente é, por um lado, que todas as interpretações referidas acima, e nas quais integraremos a de Sterckx, não constituem um ataque ao autor, mas uma bateria de exercícios de interpretação (por vezes, de sobreinterpretação) que podem ou não ser abusivos, mas cujo último fim é naturalmente fortalecer a obra, e, por outro, que não nos interessará tanto o seu valor provincial, nacional (relativo à Bélgica, se bem que continue o Tintin a servir como elemento agregador de uma cultura, como se viu faz pouco na capa de uma revista da comunidade valónica – “Le pays de Tintin, du surréalisme et des Gilles de Binche”), como a defesa de um provincianismo disciplinar: Hergé como o “pai-de-todos”, Tintin como “A Obra-Prima”... Quanto a Sterckx, demolindo alguns deste exercícios de tirar contas e de interpretações-libelo, afirma: “La vérité de Tintin n’est pas à rechercher du côté de l’un ou l’autre vilan petit secret...” (16), acrescentando ainda que é tempo de separar a personagem ficcional do seu autor [“Tintin n’est pas Hergé. Il serait temps de désintriquer leurs deux trajets afin de les mettre en phase avec pertinence et clarté”]. Vindo de uma pessoa que privou de perto, com amizade, com Hergé, é digno de nota e de repetição, tal como o é o facto de que, neste título em particular, nunca revela uma intimidade que não seja do domínio público, graças às biografias existentes, tal como jamais exerce uma autoridade que adviria dessa relação.
Já em “Les lieux du mythe”, um ensaio de Sterck incluído no volume L’archipel Tintin, o autor havia exposto algumas das questões que se vêem agora aqui desenvolvidas: os lugares das aventuras de Tintin como presença do feminino, o papel das ilhas enquanto linha de força da desterritorialização conceptual de Tintin, os elementos que compõem o seu próprio ritornello, etc. A utilização deste vocabulário, e o próprio título, apontam para qual a fonte do pensamento de Sterckx (e até estilo de escrita), para este livro em particular: a dupla Deleuze-Guattari. De certo modo, o gesto de Sterckx com este volume é contrário a outros gestos anteriores que se ancoram na psicologia, principalmente aquela que voga em demasia pelas superficialidades dos princípios descontextualizados ou do abuso da biografia. De facto, a abordagem psicanalítica já havia sido tentada anteriormente, de modo mais cabal e insistente por Serge Tisseron. Não nos cabe a nós nem neste momento uma desconstrução dessa(s) obra(s), se bem que as perguntas, “Como se pode exercer a psicanálise num objecto não-vivo?” e “Até que ponto poderemos extravasar a interpretação literária e artística a partir de dados biográficos?” possam começar a apontar o problema. Nada é nunca de dimensões mínimas, abarcáveis numa abordagem desse tipo, pois seguir-se-ão obstáculos intransponíveis, sem resposta: por exemplo, a investigação das fontes literárias e dos contributos dos muitos colaboradores de Hergé arrancarão alguns dos episódios das suas personagens da sua criação directa [como em relação a J. V. Melkebeke, quer cf. A l’ombre de la ligne claire, de B. Mouchart, e o capítulo a ele dedicado por Lafon e Peeters, em Nous est un autre]; como então os associar à sua “novela familiar”?
Ora é nesta perspectiva do possível reducionismo da psicanálise que surgiu a abordagem anti-edipiana, ou da esquizoanálise de Félix Guattari e Gilles Deleuze [curiosamente, há também um capítulo dedicado a esta dupla no livro de Lafon e Peeters]. Se se emprega a expressão “pedrada no charco” para se falar de obras que fazem um qualquer domínio entrar numa fase de agitação, transformação ou inflexão, a obra de Guattari e Deleuze (Capitalismo e Esquizofrenia: vol. 1, O Anti-Édipo, de 1972, e vol. 2, Mil Planaltos, de 1980, versões portuguesas na Assírio & Alvim) criaram um vórtice violentíssimo, de sifão a esse charco. Para explicar curta e feiamente, é um evitar cair nas ideias de estruturas pré-fabricadas (o complexo de Édipo), procurando-as depois, a todo o custo, no objecto a analisar. Pelo contrário, procura-se aceder a todos os elementos presentes nos objectos e entendê-los enquanto analisáveis, passíveis de multiplicação e complexificação, e a reserva de uma abertura para a impossibilidade de abarcar a sua “verdade ontológica”.
Michel Serres, outro pensador que dedicou tempo útil à discussão da obra de Hergé, havia elegido a palavra “inusable” (“inutilizável”) para a caracterizar. A verdade é que Tintin tem servido de instrumento a muitos objectivos, tem ganhado utilidade. Sterckx, ainda em “Les lieux...”, e referindo-se à natureza dos mitos (nos quais se poderá inscrever Tintin) e à relação que estabelecem com as suas origens, assevera o seguinte: “à chaque instant [o mito] incarné en des variations susceptibles de la [à origem] masquer”. Isto é, o herói acaba por ganhar mais preponderância do que o lugar de onde emana. Tintin Schizo intenta fazer retornar a atenção, através de um discurso muito embebido no estilo de pensamento e análise guattari-deleuziana, às capacidades dos lugares em se tornarem significativos e forças de interpretação. Daí que o autor tenha escolhido a ilha “misteriosa”, formada pelo aerólito caído no mar polar, onde ocorrem as transformações gigantescas dos vários objectos e seres (a macieira, a borboleta, a aranha, os cogumelos explosivos) como centro do seu discurso para, depois, partir em várias direcções, estudando a “perversidade” de Tintin (para além da sua natureza de “máquina celibatária”, outro conceito deleuziano, qual o papel de Tintin para com o Outro?), a sua “amnésia” (nem sempre as prendizagens ou relações de um livro passam para os seguintes), a sua independência dos papéis “crísticos” que lhe querem atribuir, a profundidade do significado da sua falta de humanidade (i.e., a falta de uma origem familiar, de necessidades quotidianas, de uma casa personalizada, de emoções variadas, com raras excepções, cuja fulgurância é a relação com Tchang, mas significativas, em cada um dos pontos) em oposição aos restantes personagens que o acompanham, etc.
Não será fácil abordar e concentrar tudo aquilo que Sterckx pretende expor neste pequeno livro (com menos de 150 páginas), muito menos considerando que revela um grau de familiaridade e proximidade com o trabalho do filósofo Deleuze e o psicanalista Guattari, cuja obra conjunta corre sempre o risco de se ver reduzida a mais uma sebenta aplicável abstractamente, reduzida a uma mão-cheia de conceitos-tornados-princípios, quando na verdade ambos pugnavam pela procura de uma liberdade bem maior (e assustadora?), “rizomática”, com os instrumentos que desenvolveram (instrumentos que são mais processos estocásticos, abertos, livres, e atentos aos circunstancialismos do que métodos regrados). Não faltam exemplos da transformação dessa obra em “manuais para a resolução estética”. Sterckx não cai nesse abismo, apesar da sua mimese do estilo ser impressionante, que nos leva a perguntar e, num momento ou noutro, não haverá uma entrega a hipérboles irónicas.
Um dos aspectos mais importantes nesta aplicação está no encontro de “espectros”, de intervalos em cujo interior a obra voga, e não a assunção de um só valor ou princípio em toda ela. Por exemplo, veja-se a negociação, a tensão, entre a estase e a errância em Tintin: quantas vezes as aventuras começam com pequenos flanares de Tintin, passeios anódinos que fazem adivinhar um gosto pelo dolce far niente, um jogo de xadrez sonolento, uma saída ao cinema, subitamente interrompidos por um agente externo (uma folha de papel esvoaçando, um encontrão de esquina, um pesadelo, a Castafiore) que o lançará num (quase) perpetuum mobile?
Não há matéria, camada, dimensão, que não seja de algum modo abordada por Sterckx: a cor, as vibrações, a maternidade possível, o devir-animal, o papel dos lugares e dos monstros e dos loucos e do gigantismo, a escrita e o desenho e as manchas que confundem ambas. [a análise que faz desta vinheta de O Lótus Azul é magistral] A palavra “schizo” do título é o ponto de associação mais forte aos ensinamentos de Deleuze e Guattari. Sterckx vai deixando algumas pistas para o modo como ele entende essa palavra no seio da sua (esquizo)análise: conforme os autores originais do conceito, não deve ser entendido como parente do conceito “doente” do esquizofrénico, mas sim como um “detentor de uma intensidade dinâmica interna biocognitiva”; algo que obedece (apenas) a “uma energia psíquica livre, [que] recusa qualquer imposição simbólica [o modelo edipiano] ao inconsciente”. Tal como Deleuze, em Proust et les Signes, havia estudado o modo como o narrador e À Procura do Tempo Perdido criava uma teia de aranha em torno da memória, da sensibilidade e do pensamento (involuntários) mas sem jamais esgotar os sentidos singulares dos signos, Sterckx procura demonstrar a inesgotabilidade dos signos de Tintin (ou, com Serres, a impossibilidade de os reduzir a uma utilidade única, fechada, estreita). Daí a importância de outro conceito deleuziano, o do ritornello, o qual, tal como o seu sentido musical, mostra um movimento de vaivém que cria o seu próprio território. Na verdade, trata-se de um conceito que nunca se tornou totalmente esclarecido, mas que permite procurar, no caso de uma obra artística, as “linhas de força” recorrentes, as repetições (no seu sentido teatral do original francês, de “ensaio”, tentar-se novamente com variações, um mesmo e um diferente): no caso de Tintin, a loucura fingida ou a verdadeira (O Lótus Azul, Os Charutos do Faraó, As Sete Bolas de Cristal), as ilhas (A Ilha Negra e A Ilha Misteriosa, mas também a de Rackham, o Tibete isolado e o isolado Moulinsart...), a aranha no princípio e no fim d’A Ilha Misteriosa, entre outros componentes da sua “máquina desejante”.
Outro dos frutos desta atitude é corrigir ou trazer uma nova luz sobre conceitos, à partida, indiscutíveis e, por essa mesma razão, empedernidos, inúteis. Para Sterckx, o realismo, tantas vezes sublinhado como uma das grandes qualidades de Tintin, é muitas vezes entendido como “o oposto do imaginário”, levando a que “esse binómio projecte ou introjecte sempre as mesmas estruturas infantilizantes” – o que o autor sublinha é que Tintin pretende ficar sempre num território em que evite tornar-se adulto, nunca “encontrando o pai” (mesmo que Haddock possa parecer um estranho substituto). O realismo, portanto, “não se deve procurar na precisão documental de Hergé, mas na sua capacidade de não deixar nada de fora para que possa surgir um real”. “Criar pela imaginação é transfigurar o objecto, mergulhando-o em durações activas: aquelas do criador e aquelas do seu leitor-espectador”. E é esse real, partilhado e partilhável, o de Tintin e o dos leitores, que deve ser acentuado, explorado, criticado, pelos discursos secundários [se bem que este adjectivo não deva ser entendido como moral, uma vez que são muitas vezes os discursos críticos aqueles que permitem fazer emergir o sentido profundo, uma esperança de vida, naquelas obras que parecem passar em silêncio].
No entanto, uma questão delicada ganha aqui corpo. Sterckx não pretende esconder as dimensões e facetas da obra e Hergé que dão o flanco à crítica política ou cultural. O autor indica que “il y a un côté petit-bourgeois chez Tintin, le versant purificateur de la droite et de sa phobie du changement”. Mas o defeso que parece construir em relação à obra não é claro quanto à sua impermeabilidade pertinente. Expliquemos. Por vezes, há a sensação – não apenas em relação a Tintin, mas a muitas obras “clássicas” da banda desenhada, e até noutros territórios – de que apenas podem existir duas posições antagónicas: as dos detractores da obra que partem desde logo com um conjunto de acusações a fazer e que, depois, procuram através de todos e quaisquer argumentos (que muitas vezes se desequilibram nalgumas das suas estratégias, como acontece com Ana Bravo, Serge Tisseron e Hugo Frey) encontrar pistas de desconstrução na obra; por outro, a dos aduladores que, para salvaguardar um prazer que lhes foi incutido numa primeira leitura, “inocente” e “pura”, se recusam a sequer começar a pensar na procura de um caminho crítico, no medo de perderem essa mesma “inocência” e “pureza”, cuja ilusão pretendem manter. Sterckx sublinha em demasia, por vezes, a necessidade de ultrapassar a leitura crítica social, política, cultural, para se poder mergulhar melhor nas forças de valor estético de Tintin. Jamais indica proibir a sua crítica, mas parece dar um peso substancial, quase exclusivo, a essa dimensão. No entanto, excluirá a dimensão estética a ética? Não poderemos encontrar na dimensão ética algo que reforce a estética? Não haverá uma maior musculatura numa análise que conte com ambas (ou outras mais em conjunto)?
Em History and Politics in French-Language Comics and Graphic Novels surgem dois artigos que se referem a Tintin no Congo, obra que foi alvo de uma recente polémica, vista pelos aduladores como um “abuso de censores”, e pelos inimigos como “insuficiente” (a fogueira parece ser a única solução). O primeiro artigo é de Hugo Frey, que se refere ao anti-semitismo de Hergé, sobretudo numa obra tardia, Voo 714 para Sydney; o segundo é de Pascal Lefèvre e aborda as representações do Congo em vários trabalhos belgas. Se o primeiro mostra abusar em determinados momentos de sobreinterpretações em relação à biografia de Hergé (a relação que manteve com amigos seus que haviam sido mais extremistas que ele na defesa da direita belga, e na colaboração com os alemães nazis, mas que se deve mais à manutenção da amizade do que a uma plasmação a princípios políticos) ou em manter ele próprio uma visão da caricaturização – que mais não é do que a sua estrutura gráfica – de Rastapopoulos de acordo com as caricaturas anti-semitas de longa data, mesmo que haja outras ópticas menos vincadas, já Lefèvre, precisamente por fazer emergir todo um conjunto de obras contemporâneas a Tintin au Congo (1930-1931 na sua primeira edição na revista) que não seguem as mesmas linhas de derrisão, eurocentrismo, superioridade intelectual e moral, demonstra que a crítica de que o livro é alvo não é, de todo, desprovida de sentido e, mais importante ainda, não a iliba do gesto que representa. É na sua confrontação com o seu tempo (o contexto político, de edição, de outras obras, menos famosas ou não), com o resto da obra de Hergé, com os princípios sólidos de crítica literária (e de banda desenhada) que se têm desenvolvido ao longo das últimas décadas, que se pode resgatar Tintin no Congo, e toda a obra de Hergé, quer do esquecimento quer do silêncio à crítica. Que sobreviva, mas seja alvo de leitura crítica. Que seja alvo de leitura crítica, mas uma leitura consolidade, holística, cabal e bem-informada e não apressada. Porque Tintin não tem uma só dimensão, sendo parte, ou sendo ele mesmo, de uma obra de arte: como todas as obras de arte, é pluridimensional: é “esquizo”.
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