Começaria este texto com uma nota eminentemente pessoal: este é um livro que gostaria de ter escrito (tal o de C. Rosset, ou ter editado a recente antologia A Comics Studies Reader). Quer dizer, há aqui uma fortíssima nota de afinidade para com um gesto, uma obsessão, um gosto particular pela obra de Baudoin, como penso ser visível no acompanhamento neste blog, dentro da medida do possível, da obra desse autor. Trata-se de um desejo de igualar um gesto, ainda que não de todos os seus trâmites, estratégias, escolhas ou discurso.
Groensteen aplica-se aqui a uma descrição crítica da obra de Baudoin mais sedutora, mais próxima de um impressionismo que ele herda da leitura da obra do autor. Tendo em conta a imensa obra de Baudoin, a que nós, noutra ocasião, chamámos de O (seu) Poema Contínuo, querendo dar conta de uma forte continuidade no seu interior, Groensteen voga por ela, cria o seu próprio caminho, ainda que este seja com Baudoin. Identifica os elementos que se repetem, as variações, as linhas de força com que se cose a obra, desde elementos visuais, como o menino de dedo na boca, ou as cabeças abertas, ou a mulher enquanto símbolo alargado do Feminino, até às preocupações com a auto-representação e o respeito para com os outros que o rodeiam, a dança, a pintura chinesa e a sua filosofia do traço (da graphiation, dir-se-ia, mas Groensteen não cita esse conceito), a transformação do acto de desenhar, de pintar, de dançar em vias de reflexão da própria criação em curso, as limitações deixadas a nu, a exibição dos defeitos de um modo menos derisório e exibicionista que circunstancial, através da voz dos seus interlocutores no interior da obra, a criação de um espaço que diz respeito a uma memória de família, a transformação dessa memória não num mero tema mas em matéria, a acusação política de toa uma bateria de problemas sociais… Haverá outros elementos deixados ligeiramente de lado, como a presença mais vincada da “tête de mort” (fala, porém, da dança entre o amor e a morte), o entrosamento dos vários géneros em torno ou à distância da autobiografia para a criação de espaços intervalares, mas é difícil não os aflorar, no momento em que se aproxima da obra de Baudoin na sua totalidade (ainda em curso).
En chemin avec Baudoin não é o primeiro livro em torno da obra de Baudoin, mas onde Dèrriere les fagots era uma espécie de cadernino de ideias, apontamentos, pensamentos do próprio autor, onde Questions du Dessin e La Musique du Dessin se estruturavam quase como tratados, e Entretiens avec Edmond Baudoin (de P. Sohet), Groensteen parte para a estruturação da sua própria fruição e interpretação quase sozinho. Digo “quase” pois o livro apresenta uma parte com selecções dos cadernos de esquiços de Baudoin, de onde retirei o retrato de Crumb (à la Giacometti, que o autor repetidamente cita e sobre o qual trabalha, desde Piero, se não estou em erro), e esta prancha inédita, que revela de uma forma leve as preocupações oníricas que tantas vezes explorou noutros livros, de forma integrada.
Groensteen é admirador de Baudoin, mas tal não significa que, aqui e ali, faça alguns reparos naquilo que Baudoin poderá ou tem de mais fraco, desde o desenho das crianças de uma forma esquemática, se não mesmo delicodoce demais (mas, conhecendo Baudoin – a sua obra – como esperar senão que ele procure salientar sobretudo a sua inocência, a falta de traços igualando a não-inscrição do peso da vida, a salvaguarda da candura?), o abuso das ideias um pouco fáceis do amor sexual despertado por todas e quaisquer mulheres, o balbuciar das primeiras obras em se libertar de uma canga errónea e a procura lenta de um estilo final, próprio, forte. Como em La construction de La Cage, Groensteen volta aqui a utilizar o acesso privilegiado que tem aos autores, aos materiais periféricos da obra, estruturando um discurso que vai bem para além da crítica (formalista, académica, ou o nome que melhor preferirem, e que tento seguir), para demonstrar como essas metástases “exteriores” poderão contribuir para, talvez não uma melhor compreensão (essa só pode partir da sensibilidade, da entrega, da tensão de quem compreende), mas para um corroborar de ideias que se lançam.
Baudoin é um autor feliz na medida em que tem tido, depois de dificuldades e batalhas ao longe de anos, a oportunidade de tornar cada vez mais visível a sua obra, de a continuar a publicar, de disseminar o seu trabalho, de o diversificar (em termos de formatos, aproximações, políticas, públicos). É verdade que continua a ser um autor para um número reduzido de leitores, mas esse não é um problema, tal como não o é para certos realizadores, autores de literatura, artistas, cuja construção se faz em círculos menores (será arrogância dizer “mais exigentes”?, espero e julgo que não), e não em retumbantes mas fugazes e circunstanciais sucessos.
A prancha de Salade Niçoise que é citada (e que aqui repesco) neste livro é uma forma de provar a mestria formal de Baudoin, debatida e explicitada por Groensteen. E o diálogo entre as duas personagens, em formação de um amor, deve ser o santo e a senha entre aqueles que se prestam, de coração mis à nu, à leitura e, mais importante, ao diálogo e gozo deste livro e, por ele, da obra de Baudoin: “estás de acordo?”, “sim, estou”.
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