Os livros de banda desenhada por vir. 2. Destes três livros, é o de Manouach aquele que levanta maiores problemas de profundidade e superfície. Não porque seja mais profundo ou mais superficial, mas por essa questão ganhar aqui uma presença muito mais vincada.
À partida, Frag é um livro de difícil leitura: folheamos página atrás página, lemos os textos que se apresentam, mas é só muito lentamente, ou até depois da leitura, que se começam a formar os nódulos narrativos que jamais são claros na obra. Houve alguns leitores/espectadores atentos com a felicidade de terem visto algumas das pranchas deste novo livro ao vivo, no 18º FIBDA, aquando da “Divide & Impera”. É óbvio que a contemplação da “arte original” não se confunde de modo algum com a leitura da “obra original”, que é o livro presente, mas algumas das sensações como que se mantêm. Para já, uma certa dose de desorientação, uma vez que as pranchas expostas pareciam não permitir uma fácil associação entre si, deixando que os espectadores se perguntassem onde estariam as ligações narrativas e as continuidades estilísticas ou temáticas. Todavia, o livro Frag não satisfaz essa cerzidura coesa completamente. Completamente é o advérbio certo: porque promete e ajuda e encaminha nesse sentido, para depois nos fazer perder nos enredos que não ganham a consistência clara que usualmente se espera. Há momentos em que existem malhas apertadas no limite da legibilidade e visibilidade. Não só no que diz respeito à figuração, composição e estruturação visual mas no uso da linguagem, com o acumular e avizinhar de vários níveis de linguagem, de estratégias díspares, de sistemas fechados (uso de jargão). Na longa discussão entre o autor, o seu editor, e o amigo tornada pública no site da editora, e que aconselho vivamente a ler, é o próprio Manouach que confessa não desejar criar “maneirismos”, eventualmente decifráveis, mas sim um “îlot d’inintelligibilité”; o editor, porém, acerta quando diz que o leitor não terá de “compreender” mas de “capturar”. Sem mais. Se Frag for realmente sinal de fragment, ele mesmo, o título, um fragmento, podemos apenas imaginar qual a figura que formaria, mas nunca possuí-la.
A obra apresenta-se portanto como uma plataforma de signos que importa desvendar, mas cujo desvendamento tem de se aperceber que são esses mesmos signos, a sua presença tangível no papel, aquilo que eles representam: “A superfície é a manifestação mais apropriada da vida subjacente. (...) Apesar de preservarem os limites físicos de um objecto, é uma passagem entre o interior e o exterior. Tudo se inscreve nela, apesar de ser ao mesmo tempo momentânea, uma história de transacções”. O que veremos em Manouach não será essa expressão do interior pelo exterior, da profundidade nessa superfície? “Isso não quer não dizer nada”, escreveu numa carta Rimbaud. É essa a regra de ouro da interpretação, é não cair na falível tentação de imediatamente ver na superfície a falta de profundeza, e dizer que nada diz, que nada reflecte.
Esta é uma questão já antiga na arte ocidental. Alberti falava de como um pintor devia, na composição de um corpo, mesmo nu, “colocar por debaixo os ossos”. O verbo em latim é subterlocare, um colocar debaixo daquela superfície que é a única visível ao nosso olhar, ao passo que essa profundidade se deixa antes adivinhar, como se o que víssemos fosse o velar de um anterior revelar. Goethe, respondendo a Diderot, escreve o seguinte: “que é o exterior de uma natureza orgânica senão a aparição eternamente cambiante do interior? Essa exterioridade, esse envoltório está ajustado com tal precisão à construção interna, variada, complicada e delicada, que se torna ela mesma interna. Pois ambas as determinações, a interior e a exterior, estão sempre numa relação directa, quer se trate do mais completo estado de repouso quer se trate do mais violento dos movimentos” (ambas as citações, e inseridas neste mesmo tema, foram aproveitadas do livro Ouvrir Vénus, de Georges Didi-Huberman).
É também na arte antiga que podemos procurar quais os ossos que se encontram sob Frag. Na história do ciclo medieval (poético e pictural) da Dança Macabra, aponta-se usualmente como a sua origem mais remota o famoso “Dito dos Três Mortos e dos Três Vivos”, nos quais três jovens e garbosos homens se encontram com três decrépitos cadáveres que os espelham na morte... Os cemitérios, capelas, ermidas e necrópoles portuguesas nos quais se inscrevem as palavras, “nós, ossos, que aqui estamos, pelos vossos esperamos”, não faz mais do que ecoar esse texto e adágio. Frag parece seguir três ou quatro “linhas narrativas”: a do galo, que se entrega a estranhas danças que poderíamos ler como ritualísticas (e a sua associação a um deus, a criaturas psicopompas, a listagens de figuração levam a consolidar uma leitura ascética, espiritual), a do esqueleto-que-caminha (e marca o x no chão, o lugar da superfície a ler), e as cenas no mar, seguindo-se o barco dos vivos e o dos mortos (os quais se espelham entre si, como no Dito antigo, ainda que o número seja o de 4). O texto parece vogar em torno do que vemos, por vezes acostando-se a ele o mais possível, quase descritivamente, outras afastando-se ligeiramente para permitir uma pequena distância interpretativa, outras ainda de um modo que nos impede de retornar à imagem ou de lhe associar o texto. E a linguagem, em Manouach, assume sempre uma natureza concreta que passa a receber um valor que lhe é específico, independentizando-a do seu emprego em torno das imagens (e da narrativa que parecem desenhar).
Há momentos em que algumas destas linhas narrativas se cruzam, e que nos podem levar a pensar na instituição de uma unidade espácio-temporal, mas penso que esses momentos servem mais para nos manobrar na direcção de um malogro do que uma verdadeira contribuição ao “entendimento” final... Provoca-se sempre, e é esse o desejo que me parece estar aqui em jogo, uma tensão. Atentemos àquela precisão de Goethe quando este indica um espectro cujos pólos são “o mais completo estado de repouso” e “o mais violento dos movimentos”. Detectaremos esses pólos em Frag? Os vivos, galo e homens, imagem do movimento, em poses hieráticas, rituais empedernidos, estatuária de quintal, almejando imitar o repouso, e os mortos (ou as Mortes), último signo do repouso, actuando ao máximo todos os movimentos possíveis, de acções a viagens, de actos criativos aos de amizade humana... Se desejarmos impor uma divisão actancial no livro, vemos que a atenção se dispõe de um modo sobre dois espaços discretos, que podem ou não ser tomados como antagónicos. Morte e Vida, Superfície e Profundeza.
Numa discussão relativamente recente, de um grupo de académicos da banda desenhada, discutia-se a possibilidade da existência de banda desenhada “lírica”. O problema não era de fácil resolução, uma vez que a própria palavra “lírica” parecia pode revestir-se de vários sentidos, que nem sempre coincidiam. Tanto poderá ser entendido como uma plataforma de criação delicodoce de Domingo, para beberricar com tisanas e scones, e aquiescências de aprovação, como uma exploração minuciosa, dolorosa, insistente, e até destrutiva, da própria linguagem que lhe deu origem. Estamos em crer que será nestoutro fim do espectro qu se encontrará a poesia mais forte, aquela que ascende à natureza do poiético, o verdadeiro, original e perene “fazer”. Frag é dessa massa. Mas é uma massa de esboroamento, de desagregação: faz parte precisamente daquele tipo de experimentação no seio da banda desenhada que mina um ou mais dos seus elementos expectáveis, usualmente apresentados como normativos – neste caso a unidade espácio-temporal, a causalidade, a clareza narrativa -, para ampliar a sua circunferência, sem nunca a romper. Cumpre a ideia de Bergson apresentada acima (na apresentação). Não é totalmente incompreensível, não é de todo inapreensível; é um desafio, obriga-nos a mover ao seu encontro, apesar dela parecer afastar-se de nós a cada passo, como o horizonte. Diz o autor, na conversa citada acima: “Uma arte que parte dos homens e deles se aparta, desafiando a compreensão e que por isso entra em acordo com o divino, o incompreensível”.
Frag auto-obscurece-se, libertando-a da tentativa de lhe encerrar a interpretação, e tornando-a, a cada uma dessas tentativas, fresca e pronta a um novo fazer.
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