20 de março de 2009

Sétimo Selo. Jorge Nesbitt (Ao Norte)

É bem possível que o julgamento derradeiro, acredite-se ou não nesta versão religiosa, o Apocalipse, não seja algo de gigantesco e universal mas sim distribuído, um por um, a cada homem e mulher no mundo. A todos nós caberá o seu quinhão e torrão, cova e medida, peso e balança; a cada um de nós cabe, como canta David Byrne, um “tiny apocalypse”. O sétimo selo, do livro de São João, anuncia o último passo. Dali para a frente vem apenas o fim do mundo, trombeta a trombeta soando os sete anjos, esboroando o antigo mundo para que o novo se levante. O filme de Bergman trata precisamente disso, pelo caminho do maior fim que a crença e a fé podem ter, a saber, a dúvida: mais do que um combate (através do jogo de xadrez) pela sua vida (“só mais uns minutos…”), o cavaleiro Block parece querer antes redescobrir a sua fé em Deus. Só surge um fim, porém. Independentemente da mestria em mover o bispo ou o roque e a amiga, é à Morte que pertence o preenchimento total do “mate” no jogo (mesmo etimologicamente, o persa mat significa “morte”), a última palavra. A cena final, magnífica, deslumbrante, do filme, a Dança Macabra de Block e o seu séquito, está fora do jogo de Nesbitt, pois este pretende sublinhar outra coisa, outra grandeza. A última palavra em Bergman é a do próprio realizador, em de Nesbitt (dispensando todos os outros elementos da diegese senão o diálogo entre o cavaleiro e a Morte) é a da Morte.
Bergman era um homem de fé, sem dúvida, mas uma fé que era mais particular, sofrida, íntima, que os rituais partilhados por pressão social. O Sétimo Selo explora esse tremor que abala o edifício, mas recupera-o ainda que através de algum cinismo. É como se se mostrasse que Deus e o Diabo existem, mas pouco se importem com o destino dos homens. Nesbitt sublinha o cinismo dessa posição, o lado mais assustador desse silêncio.
Se Bergman é indefinido, final e onticamente, Nesbitt decide-se pela dúvida suspensa, que esboroa, não uma dúvida que incite a uma acção. Dilucidar o trabalho de Nesbitt neste pequeno grande livro é interrogar-nos sobre esse aspecto de transformação profundo da matéria filosófica - mais do que da mera transposição visual, a dita “adaptação” - de Bergman. No fundo, quer Bergman quer Nesbitt (este porque seguindo a questão do primeiro) se perguntam pelo sentido judiciário do homem num mundo sem Deus, ou num mundo onde Deus exista mas não manifeste a sua presença continuamente e permita, naqueles que participam da fé, o surgimento da dúvida (a questão do livre arbítrio). Assim Block vê quer o seu futuro, mas também o passado (o propósito da sua campanha, missão, combate e vida) colocados em cheque… mas ainda não em mate. A escolha de Nesbitt, a suspensão que faz, é mais premente na irresolução do jogo. Há como que uma espécie de hesitação tensa, também presente nas características particulares do seu desenho.
Jorge Nesbitt é um daqueles autores que opera não acima ou abaixo do nível gráfico a que usualmente se chama de estilo, mas fora dele, para melhor poder se aproximar das suas várias execuções, procurando a óptima solução para o fim a que se propõe. A dúvida a que me refiro acima está presente na mão-cheia de desenhos que compõem este livrinho, terceiro da colecção que propõe interpretações em torno de filmes: desenhos em que está presente a hesitação da representação, marcas e manchas que mostram o vago, o indefinido, o perplexo. E a permuta, acima de tudo. Os rostos e as paisagens são permutáveis. Os rostos são permutáveis com outros rostos. É como se fossem essas as peças do xadrez eleito por Nesbitt para chegar àquele outro, do Cavaleiro e da Morte de Bergman (também apetece escrever “do cavaleiro, e da morte de Bergman”). Esparsa e miscelaneamente, temos sete imagens das falésias junto ao mar, a maior parte delas preenchidas de negras, sombrias silhuetas. Não é um sítio onde ocorra a acção, não é um espaço da narrativa, que coloque em relação os pontos de percepção (da personagem, do narrador, do leitor), é a condição mesma do diálogo entre os rostos presentes, é mesmo um rosto participando nesse diálogo.
Que outros rostos surgem? Dez imagens retratam a personagem Morte, seis das quais apresentando um grande plano do rosto, duas em perfil e duas transmutando o rosto em caveira. Nove do cavaleiro, ora em planos médios ora em planos aproximados mas nunca focando o rosto, e duas vezes centrando-se somente na cruz que leva ao peito. Duas imagens mostram o Cristo esculpido em madeira, igualmente em grande plano, fazendo com que o seu rosto sofrido ocupe o mesmo espaço daquele que é reservado para a representação do rosto da morte e aquele que deveria ser ocupado pelo do cavaleiro. Todas estas imagens concorrem à ideia de um mesmo espaço, à vez ocupado pelas personagens (em rigor, apenas a Morte e o cavaleiro Block) e pelas suas percepções ou ensejos (ora vistos como a fé em Cristo ou ora como meros símbolos desprovidos de vida, de “rosto”). A permutabilidade dá-se no rosto (e no verso) da página. As frases, parcas e encerradas na tarja negra das legendas, oscilam entre um e outro dos interlocutores, aumentando esse grau, mais do que de indeterminação, de troca possível, de conjunção das peças. A única excepção é a primeira página, que mostra um corvo, um anjo negro, uma sombra esvoaçando nos ares, sem texto em baixo. Introdução, primeira imagem, apresentação. Para um irremediável fim.
Nota: agradecimentos a Tiago Manuel, pela oferta do livro.

2 comentários:

  1. Parabéns Pedro pelo blog que já acompanho há alguns anos aqui do Brasil. Uma das melhores fontes para conhecer BD de qualidade. Estou espalhando a tua palavra entre diversos amigos, e espero um dia ter material publicado a ser comentado por ti. Obridado pela lucidez nos comentários e resenhas.

    Grande abraço

    maumau

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  2. livrinho mesmo bom... não te esqueças das datas coreia / robel

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