O que mais me agrada neste livro é o facto de se tratar explicitamente de uma biografia que pretende dar a conhecer a figura de Satchel Paige, um jogador norte-americano de beisebol dos anos 30 e, mais importantemente, incrivelmente rápido na sua especialidade (pitcher, lançador) e, ainda mais importante, o facto de ser negro – num tempo em que a Segregação racial (as “leis de Jim Crow”) era uma realidade demasiada e dolorosamente tangíveis -, mas pouco ou nada se centrar em factos biográficos, anedotas que construam de modo directo a sua personalidade, ou sequer passar por uma transformação apoteótica da sua pessoa. Se fizéssemos uma computação do número de páginas em que o objecto de atenção, Paige, surge, ou mesmo das vinhetas, rapidamente nos aperceberíamos que elas estariam em defeito para com os restantes objectos. Menos do que uma ausência, porém, trata-se mais de uma sombra indirecta lançada na narrativa.
Bem pelo contrário, toda a narrativa é-nos oferecida pela voz (e perspectiva) de uma personagem secundária, um outro jovem homem que teve de abandonar o grande sonho de se vir a tornar igualmente um jogador “profissional” (o acesso dos negros era limitado à “Liga Negra”), transformando desse modo o próprio jogo como uma esperança (falsa para ele mesmo mas efectiva para Paige) e a figura de Paige como “aquilo que eu poderia ser”.
Sturm já havia escrito (e desenhado) um livro sobre este jogo com The Golem’s Mighty Swing, e outros tantos livros em que sempre partíamos da perspectiva e vivência daquilo a que se dá o nome de “underdog”, isto é, a minoria humilhada, sofredora, da hegemonia da sociedade em que vivem mas para a qual são párias: o judeu, o pobre, o fundamentalista cristão, o negro. Curiosamente, os três livros seriam reunidos num só volume com o nada enigmático, mas ainda assim surpreendente, e notável título de James Sturm’s America. Que é como quem diz uma América, a de James Sturm naturalmente, mas uma América alternativa àquela da história oficial [poderá recordar ainda A Short History of America, de Crumb, que na sua simplicidade não deixa de servir uma ideia crítica da ideia imperativa da inexorável paridade entre a evolução civilizacional norte-americana com a ideia de “vitória” ou de “progresso”]. Muito interessantemente, é esse mesmo princípio que Sturm aplica mesmo no seu título mais mainstream, Unstable Molecules, em que é mostrada uma história alternativa, mas “real”, do Quarteto Fantástico.
Satchel Paige é um livro de 2007, isto é, bem antes da emergência e vitória de Barack Obama enquanto sinal de uma transição que esperamos ainda observar em desenvolvimento e, assim, um modo para nos apercebermos – nós, forasteiros dessa situação – do que significou essa humilhação, sofrimento e vergonha que foi a Segregação (e, ao mesmo tempo, enquanto portugueses, pensarmos naquela que foi exercida no nosso território, e, enquanto contemporâneos, pensarmos naquela que ainda hoje é exercida).
Rich Tommaso é um artista que produziu uma mão-cheia de trabalhos, mas parece-me que é através deste mesmo livro que mostrou um desenvolvimento mais forte. O seu Clover Honey prometia-se inscrever no campo da ficção urbana contemporânea mas mostrava optar por soluções relativamente simplistas na construção das suas personagens, e a sua força gráfica ainda sofria de grandes desajustes, que nada tinha a ver com beleza, mas sim com a exactidão da sua própria linguagem. Depois de uns quantos títulos individuais, esta colaboração dá-nos uma nova produção de Tommaso muito devedora à tranquilidade a que, por exemplo, Seth nos habituou, mas a “voz” de Sturm leva a que se crie uma segunda camada mais densa sobre essa distância. Muitas das vinhetas mostram aquela estratégia “teatral” que era característica da banda desenhada do início do século XX, com as personagens a corpo inteiro, “ao longe” no espaço de composição, havendo um ou outro momento de focalização sobre um pormenor físico, do corpo, da performance do jogo. É raro surgirem grandes planos do rosto. O rosto, isto é, a biografia propriamente dita, é sempre secundária. É o efeito de Paige o que interessa, a longo prazo – um negro que desafiou os brancos de um modo indirecto, inteligente, irónico, e que por isso ganha maior força (em querer criar aqui um detrimento às outras figuras cujos desafios foram mais conscientes, directos e politizados, de Rosa Parks a Malcom X, de Luther King a Bobby Seale).
Outro aspecto digno de nota é este ser o segundo volume editado pelo Center for Cartoon Studies, uma escola fundada pelo próprio Sturm, que esteve na Mundo Fantasma muito recentemente.
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