O fascínio da personagem de Fantômas, uma das primeiras personagens, senão a genuinamente primeira, a ocupar o papel dos protagonistas da ficção “pulp” quer literária quer fílmica (ainda que a palavra esteja a ser utiliza retrospectivamente), sempre chegou perto de nomes que construíram a história da arte, seja esta entendida de modos mais espartilhados ou livres, e para que se crie uma tradição mínima, citem-se os nomes de Feuillade, de Magritte, de Julio Cortázar e da banda de Mike Patton do mesmo nome. Na década de 60, na Itália, mansão de imaginários gialli, surgiria a tipologia da banda desenhada de crime conhecida por fumetti neri, que contaria com pequenas variações do Fantômas (num encontro entre o Ladrão e o Fantasma de Lee Falk) com personagens cujos nomes, trajes e modus operandi operariam como verdadeiras variações em torno de um modelo comum. Até os nomes gravitavam em torno de um mesmo molde: Diabolik, Fantax, Fantasm, Kriminal, Satanik, Demoniak, Sadik, e outros jogos minimamente paralelos com Zakimort ou Jnfernal...
O subtítulo da publicação presente, que já em si reúne outras publicações menores, “protohistoire pour adultes” remete às publicações de foto-novelas (“photohistoires”) a preto-e-branco, de baixa qualidade (gráfica, de impressão, de complexidade narrativa, atrever-nos-emos a acrescentar artística?) que se vendiam em quiosques, ficção de estação de comboio, inclusive em Portugal e que, as mais das vezes, se faziam preencher com conteúdos eróticos e violentos. A tipologia dos fumetti referida acima era também populada por esse meio (as francesas Wampyr e Satanik tinham precisamente esse subtítulo). Uma anarquia de bolso, sem dúvida, quer quanto aos métodos quer quanto aos frutos. Seja como for, digamos que providenciava uma rebelião portátil, satisfatória por esse curto momento em que se lia e experimentava essa fantasia de poder, de crime, de incorrer nos pecados anti-sociais com que se sonhavam – acordado - mas jamais se atreveriam a ser cometidos. Poder-se-ia, rapidamente, acrescentar que existe aqui igualmente uma fantasia politicamente incorrecta, ou horrorosa, super-machista: mesmo quando as personagens se tratavam de mulheres, como Satanika e Zakimort (“heroína”, esta), trata-se de uma fantasia “de homem”. Todavia, ao mesmo tempo, há uma espécie de pulsão à qual se dá vazão com estas histórias, como se servisse de válvula de escape (escapismo?) a fantasias de violência e ódio em relação a tudo aquilo que nos pode amofinar, desde as razões egoístas às mais pertinentes.
É óbvio que, nas mãos de Magritte, de Cortázar, de Mike Patton, o paradigma de anarquismo pop a que Fantômas e a sua prole permitem atinge outra espécie de linguagens, de apropriações e de cruzamentos entre as culturas highbrow e lowbrow, apenas apreciáveis e talvez mesmo inteligíveis por quem participar, com gosto e conhecimento, em ambas, a um só tempo apercebendo-se do que as divide e da ilusão dessa mesma divisão. Este livrinho pertence à Frémok, à sua nova colecção Flore, e parece fazer parte mesmo de um grande projecto de continuação. Existe mesmo um blog específico: http://demoniak.wordpress.com/ Nenhum nome de autor é avançado, mas se os editores apontam à possibilidade de se tratar de um projecto a várias mãos, estamos em crer que Alagbé estará no centro dessa actividade, ou melhor, Gal Yacinthe Galbet (anagrama que aponta de imediato para toda uma série de associações, irónicas, com a ideia de transvestismo, disfarce, camuflagem, dissimulação, previstos em Fantômas e ca., nos anarquismos, e na “ficção de estação de comboio”).
Para além dos pressupostos editoriais, físicos e regulares desta edição – que procuram talvez uma recuperação por um certo círculo da “vanguarda da banda desenhada” por um imaginário e estratégias comerciais de baixo nível, mas que não deixam de ter uma faceta nostálgica, quiçá -, o que importa é notar como o material visual e narrativo de Mort à Babylone (o episódio de Démoniak que conseguimos ler) segue a via da apropriação. Reportagem, temas contemporâneos, notícias de última hora, colagem, transfers, trocadilhos são os elementos. O texto oscila entre o francês (a narração, algumas falas), o inglês (algumas falas) e até um finlandês “ao acaso” (algumas falas, sobretudo de Démoniak ele/ela-mesmo – o sexo é indeterminado). Podemos ler este(s) texto(s) e, até certo ponto, reconstruir um sentido linear, com um fito claro (sem perder “os próximos episódios”), mas parece-nos que os autores querem antes fabricar um sentido fantasmático. Os rostos de algumas personagens são claras referências a personagens reais que pertencem ao círculo do irreal mediático – as notícias e os filmes: John Travolta, Tom Cruise, Ingrid Betancourt, Sarkozy, Bernard Kouchner, Rumsfeld, Saddam Hussein, a princesa Diana... Como se ambos os mundos – o ficcional e o noticiado – colapsassem um sobre o outro (“finalmente?”, poderíamos perguntar, pois não é esse o objectivo de cada um à sua maneira? Qual a diferença do infotainment do noticiário da SIC das falsas notícias que se espalham pelas inúmeras séries televisivas? E não querem muitos dos filmes “baseados em factos reais” fazer espraiar-se uma perspectiva sobre esse tema?). Os trocadilhos – Dirty Diana, Tom Cruz, John Paul Trovalto, Rhumsteak, Soddom Hossein – apenas corroboram essa perspectiva.
Mas há ainda um outro nível da linguagem empregue em Démoniak: “Como num sonho, a Flor dos sentidos adverte a Alma maldita/e, no mais fundo dos seus pensamentos,/a Matéria obscura chora a perda da sua Shékinah”; “No meio dessa folia demente, a Tentadora celeste foi amarrada e encapuçada”... Se se podem interpretar algumas dessas frases de um modo literal em relação às imagens, seguindo um sentido claro de intriga porno-policial, outros há que se prestam a trocadilhos ainda mais obscenos (quando a imagem do ministro francês prestes a lamber um pénis é coroada pelas palavras de “beber a notícia como se fosse leitinho...”). Num sentido mais profundo, porém, poder-se-á transformar toda a linguagem e trama, sobretudo através dos nomes das personagens (Mãe-refém, A Sombra das Eras, Princesa das Febres, muitas vezes vários nomes para a mesma personagem, como se se revelassem as suas facetas/funções/potencialidades), numa espécie de alegoria alquímica e esotérica em que se desenrola algo de maior. Enfim, precisamente o sentido a que os seguidores de teorias de conspiração se entregam.
Démoniak pode ser visto então – mesmo que deste modo abstrusamente operático, obsceno e hiperbólico – como uma forma de posicionamento político crítico, oposicionista, radical mesmo, mas não directo: bem pelo contrário, que procura a sua eficiência particular através do desvio a que se propõe, ganhando humor e pertinência de um modo que não conquistaria se pretendesse uma construção mais dentro das regras (P. Squarzoni e Ted Rall são dois autores de banda desenhada que o fazem, por exemplo). Uma forma de, nesse humor, fazer notar que a Babilónia... já estamos nela.
Nota: agradecimentos a Joana Figueiredo, pelo empréstimo da publicação.
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ResponderEliminarA partir da próxima terça feira dia 19/05/2009, o Quase Calado, http://quasecalado.blogspot.com/ estará publicando uma série composta por 10 episódios intitulada de "João em vida", escrita em parceria entre eu, Francisco Pigrizya e o também jovem aspirante a escritor N. Reverie. A idéia constitui um esforço por uma forma de construção textual onde a história é criada por mais de um autor, da forma mais independente possível, sem a interferência de um autor na seqüência imaginada pelo outro, abrindo assim a possibilidade de uma leitura no mínimo curiosa. Não temos a mínima idéia se a idéia de construir textos dessa forma é nova, mas a proposta é essa.
ResponderEliminarDesde já agradeço pela atenção e conto com a ajuda de vocês para podermos levar adiante a idéia, pois o combustível do escritor, além da inspiração besta que vem a qualquer tempo, ninguém sabe quando ou onde, é também saber que alguém o lê e pensa sobre o que ele escreveu.
ABRAÇOS!