Poderíamos começar a perguntarmo-nos como é que Filipe Abranches se atreve a criar imagens, ilustrações, interpretações gráficas de Poe, depois de nomes tais como os de Gustave Doré, Harry Clarke, Arthur Rackham, Edmund Dulac, William Heath Robinson, depois das litografias coloridas de Federico Castellon....? A impertinência de uma atitude dessas seria imediatamente desarmada pela própria possibilidade de arrolar estes nomes em torno de interpretações visuais da prosa (e poesia) de Edgar Allan Poe, demonstrando-se ao mesmo tempo que não há como que uma opção canónica pelas quais as outras versões de deveriam pautar – um pouco como sucede em relação ao Tenniel de Alice – mas abre antes a possibilidade, ou mesmo a obrigatoriedade, de acedermos a várias versões. Às quais se juntará agora, pelo menos no nosso pequeno círculo português, de Filipe Abranches. (Mais)
O fascínio da prosa de Poe, continuada de modo sublimado na poesia, tem a ver com a sua incursão total no fantástico, tal como entendido por Todorov, que nada tem a ver com o uso normal dessa palavra (“extraordinário”, “espantoso”, “formidável”): tem a ver com a criação de um ambiente na qual se instala a dúvida no leitor se aquilo que ocorre ou parece ocorrer na narrativa que lhe é contada (e a maioria dos poemas de Poe são narrativos) é mesmo “real” (no interior do universo dessa mesma narrativa) ou se é apenas parte da ilusão dos seus personagens (A Queda da Casa de Usher é o seu exemplo máximo).
Ora essa neblina que o fantástico traz é raramente respeitada pelos ilustradores. Por grandiosos artistas a que nos estejamos a referir, quase todos eles procuram “prender” o sentido do texto através da representação directa das personagens ou entes que mais frenesim podem causar: a morte da “máscara vermelha”, o pêndulo inquisitorial e o que está no fundo do poço, uma Madeline morta-viva... É o receio que Kafka demonstrou ao pedir ao seu editor que ninguém desenhasse um “monstro” na capa d’A Metamorfose, e que levou Flaubert a pedir que nenhuma ilustração acompanhasse A Lenda de São Julião Hospitaleiro (até chegarmos ao nosso Amadeo) a não ser o vitral de Rouen. Do meu conhecimento, limitado, os autores de interpretações visuais de Poe, e para além da área restrita da ilustração, que conseguiram transmitir essa dúvida, esse limiar, foram Breccia com a sua adaptação em banda desenhada de The Tell-Tale Heart, de 1975, Svankmajer com a sua versão de filme animado de A Queda da Casa de Usher, de 1980, e Andrei Molotiu com as Two of the missing pages from “The Narrative of Arthur Gordon Pym”, de 2008 (e que encontram no Divide et Impera).
Se entendermos a ilustração como uma espécie de tradução, ou melhor, nas palavras de Tsvietáieva que abordáramos a propósito de Amadeo e Flaubert, como um “dizer outra vez”, de um modo diverso, então entenderemos que o que Abranches faz é dizer mesmo algo de um modo diverso que já havia sido dito por Poe, nos poemas (ou que diz através da tradução de Margarida Vale de Gato, por si mesmo um ofertar-nos de novo o que Poe havia dito no original). Mais do que entender a tradução como um acto de traição, é preciso seguirmos as lições de Walter Benjamin (e de Maria Filomena Molder, por ele e dele), e entendê-la como a fundação da condição de possibilidade da traduzibilidade de um original. Um poema só pode ser traduzido, exige-o, para que se possa tornar um poema mais próximo da língua original, que nada tem de místico nem de político (ambas as palavras entendidas nas suas acepções mais corriqueiras), mas sim como a hipótese e ponto de convergência do próprio acto da tradução, gesto estético – aqui associando-o à comunidade estética indicada por Kant como a única comunidade possível entre os homens. O dizer um “não” à tradução, seja ela qual for (por exemplo achar que “esta obra não se pode ilustrar”) é um não negativo-negativo, um cnvite à inércia, ao niilismo, nem sequer chega a ser um negativo que crie um espaço vazio pronto a receber algo de vindouro. Abranches faz aqui um “sim” à tradução-ilustração de Poe. Um “sim” que lhe pertence a ele mesmo, especificamente, com as suas fortalezas e fraquezas. Veja-se a versão original (não-limpa, por assim dizer) da ilustração que acompanha um verso de O Corvo (na versão de Vale de Gato lê-se “não deixes cá pena escura...” e a de Pessoa “não deixes pena”; terá Abranches utilizado outra versão para trabalhar?; este poema tem direito a duas ilustrações, uma abrindo-o e outra encerrando-o; aproveitemos para dizer que o arranjo de Vera Tavares – também ela autora de uma banda desenhada – é desataviado, respeitador e, por isso, verdadeiro sustedor da relação feliz entre texto e imagem).
Há relativamente pouco tempo (26 de Maio), Anne-Marie Christin apresentou uma comunicação ma mediateca do Instituto Franco-Português cujo título era Illustration comme transgression. Confesso que não percebi o fundo desta comunicação da famosa autora da história da escrita e seus interstícios, uma vez que me parecia espraiar-se em exemplos demasiado díspares e afirmações que não encontravam continuidade no seu fundamento, mas – no quadro daquela ilustração que tem a ver com a relação directa entre um texto dado e as imagens criadas a partir dele - esta transgressão é entendida como um desvio do sentido literal proposto pelas palavras do texto original, procurando-se uma sua presença reinventada. No entanto, não será essa verdadeira transfiguração a condição própria da ilustração, mormente da “textual” (aquela que se relaciona com um texto de partida)? Não será essa mesma a descrição do acto de tradução?
No seu famoso texto sobre Constantin Guys, O Pintor da Vida Moderna, Baudelaire afirma a dado momento que, no trabalho desse autor há um encontro feliz entre as impressões do artista, que medra numa força sintética e de “um efeito de conjunto”, e a imaginação do espectador, dando a ver essa impressão original “com nitidez”, e tornando o espectador num “tradutor de uma tradução sempre clara e inebriante”.
Poderemos ver então como que uma contínua cadeia entre aquele primeiro gesto (neste caso, os poemas de Poe) e aquilo que nos impressiona, nos chega aos sentidos, nos permite e devolve, a um só tempo, as impressões primeiras (neste caso, a relação entre as versões de Vale de Gato e as ilustrações de Abranches).
Os desenhos de Filipe Abranches procuram um equilíbrio mais ou menos conseguido entre a figuração de um elemento claro presente no texto e uma profunda alteração, pela matéria visual, daquilo que se desprende do texto. Há uma flutuação constante entre umas e outras, não um mesmo nível que se mantenha ao longo do trabalho. O autor havia começado este trabalho há uns anos atrás, e chegou a completar uma série de ilustrações (sobre estas, ver abaixo), mas tendo tido a oportunidade de as rever – tal como um tradutor tem a oportunidade de rever, marinar, ponderar a sua tradução textual – resolveu reconstruir os materiais da impressão primeira. Apresentamos aqui o caso do poema Os Sinos. A primeira ilustração, ou versão, não utilizada, apresenta uma fiada de sinos presos a um arco que parece pairar sobre um lago, repleto de círculos concêntricos, provocados pelas “tintibulações do ritmo – decantadas/Dos balidos dos chocalhos/Desses sinos, sinos, sinos”. Repete-se, na imagem, as várias tipologias de sinos que Poe indica: os sinos dos trenós, de prata, os das bodas, de ouro, os dos alarmes, de bronze, os dos dobres, de ferro (leiam-se as notas da tradutora). A ilustração seguia assim como que uma mera enumeração, apresentação basilar de uma mão-cheia de sinos, cujas diferenças estão visíveis nos variados tamanhos. Mas a fortaleza do poema de Poe não está no acordo, mesmo com os metais diferenciados, da ideia de sinos; está antes na demarcação que esses metais provocam no seu timbre, nas músicas diferentes que provocam, na vozearia polifónica desses objectos apenas aparentemente iguais (“tintinbulações” e “cristalino deleite”, sim, mas distributivamente “canto dúctil que flutua”, “eufonia”, “balancear cadenciado”; “vociferando, gritantes”, “guinchar/Dissonantes”, “uivo diferido”; “monódia”, “gargantas/Tão rangentes”, “rúnica rima”). E é assim que a nova ilustração, abdicando de uma apresentação linear, nos mostra quatro sinos, de tamanhos diversos, mas cuja principal característica está no desencontro das direcções e dos badalos. As traves e as correias que os prendem, de oblíquas, amplificam esse desacerto e os sinos já não nos surgem irmanados, mas profundamente dissonantes.
Uma estratégia similar presidiu à ilustração que acompanha Helena. Se a primeira versão (que aqui mostramos) resolvia prender-se somente às “antigas naus nicenas”, ainda que de uma perspectiva superior, endeusada, tempestuosa, dos barcos aproximando-se de uma praia (a troiana?), e ainda que essas mesmas naus se refiram à beleza de Helena e ao conforto que davam ao viajante, e versão final (que não mostramos) oculta o corpo de Helena por detrás de uma coluna e sob um manto, mas transmutando-a na “estátua” que se cita, e tornando essa estátua símbolo de perda e dissolução, em sinal contrário ao que se promete no poema. É quase como se Abranches escutasse nos versos de Poe ecos do Ozymandias de Shelley.
Poderíamos acompanhá-las a todas, às ilustrações (magníficas as de Tamerlão, Para [Violet Vane] e O Coliseu, assombrosas as de [Só] e Sonhos, estranhamente familiar a de [Versos sobre a cerveja]), e certamente que farão falta escrutínios desta natureza. Mas eis um último exemplo, para o poema Al Aaraaf, “o mais longo e difícil de Poe”, nas palavras da estudiosa tradutora. Espécie de poema narrativo de ficção científica e misticismo, no qual se procuram alianças entre fenómenos celestes, criaturas de fantasia e imaginação (cuja distinção, em Poe e Baudelaire, dariam um outro ensaio, fôssemos nós capazes), percepções religiosas – emprega-se matéria do Corão, já que o título se refere ao “Purgatório” muçulmano - e poéticas, Al Aaraaf apresenta-se em duas partes e, reduzindo-o brutalmente, conta, após a aproximação do astro e da divindade Nésace do mundo moral, a história de dois amantes inefáveis e celestes, Ângelo e Iante, perdidos aos olhos de Deus e encarcerados nessa esfera entre o Inferno e o Céu, numa longa zona de indeterminação moral. Um verso reza, falando das hostes dos serafos que se aproximam, “Jovens sonhos pairando ainda em sonolência...” É esse o ambiente, de vaguidade, de indeterminação, de dúvida – são passos aquilo que se interpõe entre a chávena e o horizonte? Partem ou aproximam-se? – aquilo que Filipe Abranches tenta criar? A tradutora aponta nas notas que “uma das teses do poema é a de que as paixões do artista impedem o seu acesso à Beleza”: aperceber-se-á Abranches desse impedimento, dessa impossibilidade, e prefere então apreciar um chá sob as ominosas nuvens do inefável e incomportável? Ângelo parece não querer abandonar a Terra, que julga “bonita vista da imensidão”, da qual se recorda numa “tarde de Outono”. Estas duas personagens “Caíram: porque o Céu não traz consolação/Àqueles que ouvem só o eco do coração” (versos finais). Elas sim, mas o artista não nesta sua interpretação, espécie de fuga também, mas de todas as esferas ditas por Poe, recriando uma apenas sua, feita de tinta sobre o papel, atreita à acalmia do desenho. Retornando à ideia de Purgatório, e lembrando-nos da tradução alucinada de Mário de Cesariny do livro mais famoso de Rimbaud, é pela Cerveja no Inferno que chegamos a este Chá no Purgatório?
Não há, da parte de Filipe Abranches, um risco tão grande como aquele cumprido pelos “riscos” de Long Knives through the Grapevine, o que não é de surpreender, uma vez que este projecto tem contornos mais comerciais e delimitados. Não se trata aqui de uma hierarquia, mas tão-somente de notar nos diferentes objectivos que o autor tenta cumprir. Se em relação aos poemas descobertos por André Lemos havia toda a liberdade de “traduzir”, neste sentido que temos estado a avançar, a verve e a até violenta dessocialização dos poemas, no mundo literário de Poe as sensações são bem mais líricas, e o grau de associação textual floresce sempre em respeito para com um princípio a uma ideia central, um propósito conceptual. As ilustrações “Stedmanianas” para Elizabeth e Acróstico aproximam-se do gesto de Grapevine, mas a esmagadora maioria delas, neste livro, comportam-se numa legibilidade consensual. Porém, foi-nos permitido perceber – graças ao acesso às primeiras versões das ilustrações tentadas por Abranches – que o artista corrigiu um primeiro gesto para atingir uma maior liberdade da tensão a que nos referimos, e um grau de maior distância em relação aos elementos textuais. Algumas fraquejam em associações menos acabadas (como a explosão nuclear para Soneto – À ciência), mas quase todas rimam de acordo com o timbre dos poemas, como vimos... Não diria, portanto, que o nome de Abranches – neste caso particular – tenha conquistado o mesmo patamar que Svankmajer e Breccia nessa interpretação recriadora; mas o facto de alcançar seguramente um maior respeito aos ritmos e haustos do que aos efeitos superficiais, ter-se-á colocado no caminho desses mesmos nomes.
Notas finais: esta edição reúne, pela primeira vez em Portugal, toda a poesia de Poe, e numa tradução contemporânea por Margarida Vale de Gato, responsável por toda uma bateria de outras traduções de livros indispensáveis da literatura anglo-saxónica para um português que nos pertence. Se bem que alguns dos poemas, já para não falar da prosa, já tivessem sido alvos de traduções anteriores, atravessando desde o século XIX até ao nosso tempo, e sendo talvez a mais famosa a d’O Corvo por Fernando Pessoa – a que nada nos impede de regressar – (e juntando-se os nomes de Jorge de Sena, de Agostinho da Silva), esta é, não a definitiva versão, mas a nossa.
As versões anteriores executadas por Filipe Abranches haviam sido expostas na Biblioteca Nacional, por ocasião do Bicentenário do nascimento de Poe; as novas versões chegaram a ser expostas na Casa Fernando Pessoa. Todas as imagens deste post foram gentilmente cedidas pelo próprio autor, que também me ofertou uma cópia do livro. Ficam os meus agradecimentos.
Foi a minha prenda de anos! E que "bela" prenda, as ilustrações do Filipe Abraches e o poesia do Poe são uma "bela" combinação.
ResponderEliminarExcelente obra, excelente texto!
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