Não obstante o título do blog, é sempre um prazer encontrar pequenos ou maiores territórios nos quais seja possível singrar, sem ter a certeza se estamos ou não fora daquele a que nos prometêramos cingir. As promessas mais belas são aquelas que acabamos por não cumprir mas involuntariamente.
Quando falamos de ilustração, a supostamente necessária busca por um momento originário torna-se ainda mais complicada do que no caso da banda desenhada, já que esta última arte possui um espaço social relativamente mais estrito e mesmo a sua contingência histórica é mais circunscrita e os seus aspectos formais, mesmo em termos virtuais e amplos, se apresentam num intervalo determinável (o que não quer dizer “determinado”). (Mais)
O ponto de partida conceptual é, porém, o mesmo: uma relação específica entre um texto (verbal) e a imagem. Na ao passo em que na banda desenhada o agenciamento é interligado, e o imbricamento total, na ilustração a “separação das águas” é mais distinta. Isto é, os objectos culturais passíveis de serem entendidos enquanto “texto” e “imagem” são segregados em termos espaciais e distintos entre si. Historicamente, porém, isso não é taxativo e claro. O problema reside, obviamente, na difícil destrinça entre o que significaria “texto” e “imagem” num tempo remoto e em que as condições de expressibilidade foram muito diferentes daquelas que hoje conhecemos e temos como “normais”. Quando é que determinado sinal feito pelo homem se passa a destrinçar como representando uma parcela das imagens (signos que estão para x porque com eles se assemelham) ou da linguagem (signos de um sistema y que estão para x por acordo entre uma comunidade)? Num outro texto apontei para que um caminho para a distinção da ilustração e da banda desenhada – assegurando sempre, sempre, que uma fronteira última, bem definida, inamovível é impossível – é a que é apontada pelas noções de complementaridade e de concorrência, esta última dizendo respeito à distribuição espacial desses dois elementos da “imagem” e “texto”, a primeira a ver com os graus de independência entre os mesmos elementos e que permite ou se abre para um espaço de re-apresentação e re-traduzilbilidade de ambos (e que anula a dicotomia forma-conteúdo).
É a estas considerações que a leitura e confronto com a Lenda de São Julião Hospitaleiro de Gustave Flaubert (1877) nesta edição “ilustrada” por Amadeo de Souza-Cardoso (1912) que pela primeira vez vem a lume nos leva, sobretudo depois de atravessarmos igualmente a provocadora e iluminadora leitura do texto de Maria Filomena Molder. Na verdade, é conveniente avisar neste momento que mais não consigo do que roubar sem pruridos e entregar-me a um pobre e miserável circunlóquio sobre esse mesmo texto, que tece, nas secções V e VI (pp. 31-42) a partir de vários fios de pensamento, e em torno da acção da ilustração, uma ideia inconsútil da mesma.
Na história da literatura, não são raros os autores que – mesmo tendo sido eles próprios desenhadores ou amadores das artes do visual – abominam a ideia mais banal de “ilustração”, quando nela apenas vislumbram a “explicação”, ou a “explicitação”, ou a “actualização” de um virtual (permitido pelo literário). Kafka escrevia ao seu editor advertindo-o para que o ilustrador encarregue do trabalho não caísse em erros de interpretação e apresentação. Mas o namoro dos ilustradores em torno das artes literárias é também pulsão antiga. Pense-se no códice Vollständige que ilustra passagem virgilianas, ou as imagens que o grande poema de Dante levou Botticelli a criar cento e cinquenta anos depois da morte do poeta, e mais recentemente, Tiago Manuel também transpôs, versou (como um líquido passando de vaso a vaso), com a exposição Psicopatias, na galeria Palmira Suso.
No texto citado de Maria Filomena Molder, existem duas citações que compõem a imagem certeira do que uma ilustração no seu poder mais acabado consegue obter. Uma do próprio Flaubert, que desejava que o seu livro (Três Contos, de que há uma tradução anterior na Teorema) fosse acompanhada pela imagem de um vitral da catedral de Rouen, o qual ele entendia não como ma ilustração, “mas um documento histórico” e que lançaria os seus leitores a um enigma: “Como é que ele tirou isto daquilo?”. Um enigma, mesmo que momentâneo, sobre o intervalo entre o texto e a imagem. Isto é, o objectivo de uma ilustração não é, não deve ser tornar mais claro, explicar, muito menos enriquecer o texto original (como se fosse possível ultrapassar a imagem do texto pela imagem pintada). A segunda é de Marina Tsvietáieva, retirada do seu livro Natália Goncharova. Retrato de uma pintora. Nele, a escritor russa revela a sua “aversão impossível de vencer pelo verbo ‘ilustrar’”. Num espinhoso e necessário exercício de etimologias em torno do verbo russo perliustratsia – o qual significa, segundo a sua tradutora espanhola, Selma Ancira, uma “leitura secreta da correspondência com fins de vigilância ou censura” – e agregando-lhe toda uma família morfológica (lustre, lustro, esplendor, glorificar, abrilhantar, iluminar, ver através da luz, e ainda, agora de acordo com o dicionário de português de Cândido de Figueiredo, “percorrer com os olhos, observar com diligência”), Tsvietáieva nega que a ilustração se possa reduzir a um desenho que meramente siga sentidos literais, mas antes como uma “segunda revelação”, um “dizer outra vez” (de modo diverso). Mais, a escritora está a discutir um livro do poeta Tijon Churilin ilustrado Goncharova (A primavera depois da morte, publicado em 1915), sobre o qual pronuncia esta fórmula: “Os versos de Churilin – através dos olhos de Goncharova”. Aqui se encerra a ideia do que poder-se-ia dizer desta maravilhosa versão da Lenda por Amadeo: “O texto de Flaubert através dos olhos de Amadeo”. O que nos remete de novo aos dois elementos da ilustração de que falamos ao princípio, a concorrência – estar num mesmo espaço, correrem lado a lado - de um escritor e de um artista, a complementaridade através da tradução - o dizer o conto de Flaubert uma segunda vez, pelas imagens, mergulhando no espírito do que Walter Benjamin entendia ser uma “transposição de uma língua para outra [e aqui faço um abuso entre linguagens diferentes] por meio de um ‘continuum’ de conversões (...) e não por domínios abstractos de igualdades ou semelhanças” (Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana). Em suma, a ilustração não fará um trabalho de explicação, como se se pudessem encontrar signos imagéticos semelhantes aos rastos que as palavras queimam à sua leitura (não se podem ler certos livros e ficar incólume; nem procurar a “mesma” força com as imagens a força do texto, e mais uma vez Dante, com Botticelli ou com Tiago Manuel, é um exemplo) Convertem uma língua numa outra, por contínuos e sucessivos movimentos e torção, que parecem deixar o seu cunho nos desenhos de Amadeo, nos ângulos e espaços em branco, nas volutas e pontos, nos escudos e emblemas, nas letras desenhadas escrúpula e acertadamente que a parte da cópia do texto de Flaubert no original francês deixa atrás, no signo-saimão do artista...
Nota: existem duas edições: uma maior, de capa cartonada, com o ensaio de Maria Filomena Molder (em português e em inglês), e em que o fac-símile das folhas de Amadeo seguem as cores amareladas do papel do artista e em que algumas transparências das cores empregues se notam melhor; uma outra, de mão mais agradável, com reproduções fiéis na forma mas menos nos efeitos cromáticos, uma memória descritiva dos desenhos, e uma nova tradução em português do conto de Flaubert por Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Ambas se complementam de modos diferentes. Ficam também a admiração e agradecimentos à Professora Maria Filomena Molder, cujos gestos inaugurais me retiram certezas, mas sob os quais me atrevo a dar um e outro passo.
29 de abril de 2007
A Lenda de São Julião Hospitaleiro de Flaubert. Amadeo de Souza-Cardoso (Fundação Calouste Gulbenkian e Assírio & Alvim)
Publicada por Pedro Moura à(s) 9:02 da tarde
Etiquetas: Ilustração
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