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Os elementos passados que podemos chamar a esta discussão contínua são os que dizem respeito à exposição e catálogo Masters of American Comics, o último livro de M.-A. Mathieu, mas também à exposição na galeria Palmira Suso de uma série (no pleno sentido da palavra) de desenhos de Tiago Manuel.
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A ideia de passeio não é uma ideia diletante. É central. Num passeio somos confrontados com todos os níveis existentes de cultura, se crermos em “níveis de cultura”, mas vivem todos eles unidos num só espaço físico, do olhar. O problema de origem destas dicotomias entre cultura alta e baixa, mesmo tendo em conta que Varnedoe e Gopnik tentam ultrapassar “respostas estereotipadas”, tem a ver com o movimento de mola que se imprime à coluna vertebral de todos os “grandes artistas”. Isto é, estes são aqueles capazes de nos seus passos de titã pelas cidades dos mortais perscrutar o lixo quotidiano das massas, os produtos objectos e abjectos sem nome nem futuro, para se curvarem sobre eles, pegá-los com as mãos e logo se elevarem novamente às suas alturas, carregando esse espólio pobre. Nessa ascensão e por contacto com o artista-titã, o objecto é transformado na sua profunda natureza e torna-se ouro. Como disse, os autores de High & Low tentam ultrapassar essa visão, mas não falariam do estilo “big foot” que nasce em Gotfredson e é reciclado por Robert Crumb se não tivesse tido um avatar – profundamente transfigurado, “naturalmente” – na esfera das artes visuais, na pintura, de Philip Guston.
Le Bon cita Hergé quando este diz que “não existe artes menores”; entenda-se: sendo arte, não poderá haver discursos de menorização, nem por razões sociológicas (o problema estará nos preconceitos e ignorância de quem vê) nem por razões ontológicas (ou é ou não é). A menos que essa menorização seja interna, pela discussão de Deleuze e Guattari do binómio menor-maior, que envolve as facetas políticas, sociais e estéticas da produção humana. Todavia, é preciso dizê-lo e não ser cego a isso, no interior do território da banda desenhada essa minorização não é feita através de uma consciência forte do seu potencial, do seu espaço singular de liberdade, na plena adopção e assunção das suas especificidades, mas quase sempre num movimento de ressentimento para com as outras artes. Usualmente, ou para com a literatura ou para com a pintura (as “A”rtes). Raramente isso acontece – um exemplo apenas: Frédéric Coché com o seu Hortus Sanitatis. As mais das vezes, quando os cultores da banda desenhada se viram para os “altos círculos” das artes visuais fazem-no já com uma predisposição negativa, um preconceito seu, na melhor das hipóteses como fonte de incompreensão, na pior tomando-as como objecto de ridicularização. A publicação Arf, de Craig Yoe, é um culminar desse preconceito, no qual se multiplicam os exemplos em que os “grandes” autores de banda desenhada ou cartoon dialogaram com os “grandes” autores das artes visuais: gozações, pontos de partida para absolutos non-sense, questionamentos do gosto, inteligência e lógica de quem apreciava essas artes contemporâneas, etc. Não é por Jim Steranko ter utilizado as mesmas premissas visuais formais da Op Art e do Surrealismo nas suas histórias de Nick Fury que se torna um autor importante na maturidade visual da banda desenhada. Bem pelo contrário, apenas contribui para que ela seja um repositório de lições em segunda mão, facilitadas. Mesmo recentemente, na série Ex Machina, de Brian K. Vaughan e Tony Harris, o episódio que mostra o interior do MoMA e uma crise ética provocada por uma obra de arte contemporânea mostra apenas um relacionamento com os aspectos mais mediáticos, imediatos e superficiais que a arte contemporânea consegue na arena de atenção pública, relegando a sua força mais premente quase para fora da equação (uma espécie de eco da exposição Sensation, com os Young British Artists).
O que importa, portanto, para um crescimento da banda desenhada enquanto cidadã no mundo da arte é olhar para si mesma e conhecer-se de modo profundo, procurando explorar de um modo acabado, experimental, seguro, transfigurado, etc. as suas especificidades. Hergé poderá não ser, concordarão certamente, o mais experimentalista dos autores de banda desenhada – mesmo que tenha sido ele quem estabeleceu toda uma série de elementos que seriam utilizados como moeda corrente pelos seus imediatos e menos imediatos sucessores. Não estará num mesmo campo em que inscreveríamos McKay, Herriman, Sterrett, Feininger (exploradores formalistas, se quiserem, apesar de isso ser uma redução), nem um outro onde se contaria com Masereel, Dix, Ernst, Taro Yashima (que empregaram a linguagem para outros fins para-narrativos ou de contornos políticos mais vincados). Mas não se poderá retirar a Hergé a sua força como (re)criador da legibilidade da banda desenhada. Todavia, esta exposição recai sobre a sua faceta de desenhador.
É curioso notar que as exposições de desenho têm usualmente mais fama e visitas se o seu autor for mais reconhecido numa outra área qualquer. Desenhos de Eisenstein, de Siza Vieira, de Coco Chanel, de Picasso (refiro-me a exposições reais passadas) são sempre naturalmente atraentes pela aura das artes verdadeiras em que esses autores singraram. Mais recentemente, uma exposição de desenhos, estruturados de acordo com a noção de série, de Manuel Tiago (na galeria Palmira Suso) levou a algumas considerações, mas tímidas, da parte dos críticos da especialidade. Exposições passadas de autores de banda desenhada, de ilustração ou pura e simplesmente de desenhos não tiveram a atenção que poderiam ter caso existisse uma maior democratização e uma menor condicionalização do “mercado”. (a elas voltaremos noutra ocasião).
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5 comentários:
A decana das exposições de tipo "high and low" é "Bande dessinée et figuration narrative"; Museu das Artes Decorativas / Palácio do Louvre (1967).
Ooops! O T.M. saiu trocado (M.T.)...
De qualquer modo, um óptimo texto.
Felicidades.
Obrigado, F.O., e as minhas desculpas por este lapso terrível (e entretanto corrigido). Pergunto-me se será o fantasma do 2º "grande português"...
Fantasma? Eu??? Não! Acredite que estou viva, e bem viva. É que sou uma leitora assídua (e atenta)deste blogue.
Um abraço.
Perdão, o fantasma era o do Manuel Tiago, aliás, Álvaro Cunhal. Esse é/seria o fantasma que me tinha levado ao lapsus scribe. Pergunto eu...
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