Na convergência de toda uma série de factores, espero vir a tecer aqui algumas considerações soltas sobre a presença do desenho na banda desenhada, e o lugar destes no “museu”. A publicação a que me refiro neste texto em particular é o livro-catálogo da imensa exposição que teve lugar no Centre national d’art et de culture Georges Pompidou dos desenhos de Hergé, entre Dezembro de 2006 e Fevereiro de 2007.
Os elementos passados que podemos chamar a esta discussão contínua são os que dizem respeito à exposição e catálogo Masters of American Comics, o último livro de M.-A. Mathieu, mas também à exposição na galeria Palmira Suso de uma série (no pleno sentido da palavra) de desenhos de Tiago Manuel.
Na introdução de Laurent Le Bon a esta publicação, conservador do Pompidou e co-comissário/curador da exposição, cita-se a exposição do MoMA/Hammer Museum (Masters of American Comics) como uma acção original, no sentido em apresentar a banda desenhada – em todos os seus factores sucessivos de produção e reprodução – enquanto cidadão de pleno direito na polis da arte. A entrada da banda desenhada (e artes afins, como a ilustração, a caricatura, o cartoon, etc.) no espaço museológico poderá recuar, mas desconheço se tem aí o seu ponto originário [vejam comentário de Domingos Isabelinho abaixo do post, e imagem aqui ao lado. Talvez, no futuro, possamos entender e debater as diferenças dos fins destas exposições, para melhor entender os seus gestos articulares], até uma exposição havida no Museum of Modern Art (o MoMa) de Nova Iorque no princípio dos anos 90, intitulada High & Low. Modern Art and Popular Culture. O enorme catálogo é da responsabilidade de Kirk Varnedoe e Adam Gopnik. Essa exposição versava o diálogo bilateral entre as artes visuais ditas maiores – pintura, escultura, e depois a instalação, o vídeo, etc. – e as populares, presentes nas secções apresentadas, a saber, Graffiti, Caricature, Comics, Advertising. Segundo os comissários, a nova era aberta pelo século XX “permitiu uma liberdade sem paralelo à imaginação individual, e deu lugar a objectos de invenção difíceis, exasperantes e por vezes até mesmo hermeticamente resistentes”. Se bem que historicamente a divisão entre as artes das elites, cada vez mais intelectualizadas, associadas a um quadro de referências fora do alcance de todos, e que se prezava de significados que necessariamente apenas seriam desvendados com as chaves apropriadas, se verifique apenas na Renascença, esse divórcio apenas permitiria no século XX que essas duas esferas se começassem a olhar de um outro modo mais implicado. O factor decisivo dever-se-á não só à cultura moderna urbana (a metrópole é fulcral, tema insistente nos autores dessa larga passagem, como Masereel) como à descoberta processual do passeio que esse espaço permitia (o flâneur do século XIX à la Baudelaire seria substituído pela distracção constante do passeante de Robert Walser).
A ideia de passeio não é uma ideia diletante. É central. Num passeio somos confrontados com todos os níveis existentes de cultura, se crermos em “níveis de cultura”, mas vivem todos eles unidos num só espaço físico, do olhar. O problema de origem destas dicotomias entre cultura alta e baixa, mesmo tendo em conta que Varnedoe e Gopnik tentam ultrapassar “respostas estereotipadas”, tem a ver com o movimento de mola que se imprime à coluna vertebral de todos os “grandes artistas”. Isto é, estes são aqueles capazes de nos seus passos de titã pelas cidades dos mortais perscrutar o lixo quotidiano das massas, os produtos objectos e abjectos sem nome nem futuro, para se curvarem sobre eles, pegá-los com as mãos e logo se elevarem novamente às suas alturas, carregando esse espólio pobre. Nessa ascensão e por contacto com o artista-titã, o objecto é transformado na sua profunda natureza e torna-se ouro. Como disse, os autores de High & Low tentam ultrapassar essa visão, mas não falariam do estilo “big foot” que nasce em Gotfredson e é reciclado por Robert Crumb se não tivesse tido um avatar – profundamente transfigurado, “naturalmente” – na esfera das artes visuais, na pintura, de Philip Guston.
Le Bon cita Hergé quando este diz que “não existe artes menores”; entenda-se: sendo arte, não poderá haver discursos de menorização, nem por razões sociológicas (o problema estará nos preconceitos e ignorância de quem vê) nem por razões ontológicas (ou é ou não é). A menos que essa menorização seja interna, pela discussão de Deleuze e Guattari do binómio menor-maior, que envolve as facetas políticas, sociais e estéticas da produção humana. Todavia, é preciso dizê-lo e não ser cego a isso, no interior do território da banda desenhada essa minorização não é feita através de uma consciência forte do seu potencial, do seu espaço singular de liberdade, na plena adopção e assunção das suas especificidades, mas quase sempre num movimento de ressentimento para com as outras artes. Usualmente, ou para com a literatura ou para com a pintura (as “A”rtes). Raramente isso acontece – um exemplo apenas: Frédéric Coché com o seu Hortus Sanitatis. As mais das vezes, quando os cultores da banda desenhada se viram para os “altos círculos” das artes visuais fazem-no já com uma predisposição negativa, um preconceito seu, na melhor das hipóteses como fonte de incompreensão, na pior tomando-as como objecto de ridicularização. A publicação Arf, de Craig Yoe, é um culminar desse preconceito, no qual se multiplicam os exemplos em que os “grandes” autores de banda desenhada ou cartoon dialogaram com os “grandes” autores das artes visuais: gozações, pontos de partida para absolutos non-sense, questionamentos do gosto, inteligência e lógica de quem apreciava essas artes contemporâneas, etc. Não é por Jim Steranko ter utilizado as mesmas premissas visuais formais da Op Art e do Surrealismo nas suas histórias de Nick Fury que se torna um autor importante na maturidade visual da banda desenhada. Bem pelo contrário, apenas contribui para que ela seja um repositório de lições em segunda mão, facilitadas. Mesmo recentemente, na série Ex Machina, de Brian K. Vaughan e Tony Harris, o episódio que mostra o interior do MoMA e uma crise ética provocada por uma obra de arte contemporânea mostra apenas um relacionamento com os aspectos mais mediáticos, imediatos e superficiais que a arte contemporânea consegue na arena de atenção pública, relegando a sua força mais premente quase para fora da equação (uma espécie de eco da exposição Sensation, com os Young British Artists).
O que importa, portanto, para um crescimento da banda desenhada enquanto cidadã no mundo da arte é olhar para si mesma e conhecer-se de modo profundo, procurando explorar de um modo acabado, experimental, seguro, transfigurado, etc. as suas especificidades. Hergé poderá não ser, concordarão certamente, o mais experimentalista dos autores de banda desenhada – mesmo que tenha sido ele quem estabeleceu toda uma série de elementos que seriam utilizados como moeda corrente pelos seus imediatos e menos imediatos sucessores. Não estará num mesmo campo em que inscreveríamos McKay, Herriman, Sterrett, Feininger (exploradores formalistas, se quiserem, apesar de isso ser uma redução), nem um outro onde se contaria com Masereel, Dix, Ernst, Taro Yashima (que empregaram a linguagem para outros fins para-narrativos ou de contornos políticos mais vincados). Mas não se poderá retirar a Hergé a sua força como (re)criador da legibilidade da banda desenhada. Todavia, esta exposição recai sobre a sua faceta de desenhador.
É curioso notar que as exposições de desenho têm usualmente mais fama e visitas se o seu autor for mais reconhecido numa outra área qualquer. Desenhos de Eisenstein, de Siza Vieira, de Coco Chanel, de Picasso (refiro-me a exposições reais passadas) são sempre naturalmente atraentes pela aura das artes verdadeiras em que esses autores singraram. Mais recentemente, uma exposição de desenhos, estruturados de acordo com a noção de série, de Manuel Tiago (na galeria Palmira Suso) levou a algumas considerações, mas tímidas, da parte dos críticos da especialidade. Exposições passadas de autores de banda desenhada, de ilustração ou pura e simplesmente de desenhos não tiveram a atenção que poderiam ter caso existisse uma maior democratização e uma menor condicionalização do “mercado”. (a elas voltaremos noutra ocasião).
Hergé é aqui visto, portanto, como desenhador. É claro que a sua faceta de banda desenhista, ou melhor, como desenhador que estrutura alguns dos seus desenhos de acordo com um programa narrativo não poderia senão estar presente, já que a esmagadora maioria dos desenhos que criaria a partir de certo momento seriam empregues nesse fim. Coleccionam-se aqui o mais antigo desenho sobrevivente da sua infância, ilustrações, cartoons, caricaturas, esquissos, cartazes publicitários, “parasitas gráficos” e, claro está, as pranchas originais. Relança-se assim novamente o valor da “arte original” numa arte cuja existência ontológica recai sobre a sua cópia, a sua reprodução técnica e consequente distribuição. Não digo que um exemplar único não possa constituir uma banda desenhada nem que as pranchas originais “valham” mais – enquanto texto artístico, objecto semiótico, objecto a ler – do que aquelas que alcançamos no objecto-livro. Simplesmente essa dicotomia não deixa de existir nesta arte em particular. Os cartões de uma tapeçaria ou os esquissos de um designer são meros instrumentos cuja participação na obra de arte final é externa. Os elementos reais captados no filme diluem-se no trabalho da montagem. O eventual desenho que se estipula numa tela desaparece sob as tintas. Toda a arte conceptual faz com que a ideia-matriz seja contígua ao objecto material apresentado. Na banda desenhada é a leitura (seja esta entendida da forma mais libertária que se desejar) que estabelece a sua existência e essa é assegurada normalmente através de um objecto-suporte (livro, revista, computador). Se eu ler uma banda desenhada antes dela ser publicada, nas pranchas originais, estou a ler uma banda desenhada. Mas quando ela é finalmente publicada, passo a partilhá-la num espaço maior social, necessariamente comum (é o mesmo texto) mesmo que contingente (de acordo com contextos de leitura). A possessão ou apreciação da arte original de uma banda desenhada faz convergir aspectos que têm a ver com o fetichismo, a mercantilização, o estudo técnico, o desvendar gestual. A descoberta, com este tomo, de mais de mil desenhos – originais, decerto, mas não no livro, onde estão reproduzidos – permite-nos a um só tempo aproximarmo-nos desses campos variados, e estou em crer que ajudam até certo ponto a ler melhor a obra de Hergé. Aliado a muitas citações do autor belga espalhadas pelo catálogo (que partem de entrevistas, discursos, escritos que já haviam sido coligidos na crescente bibliografia sobre o pai de Tintin), todo este material permite ampliar o campo de referências, esclarecer as escolhas e estratégias artísticas, moldar de um modo outro a criação de Hergé.
Os elementos passados que podemos chamar a esta discussão contínua são os que dizem respeito à exposição e catálogo Masters of American Comics, o último livro de M.-A. Mathieu, mas também à exposição na galeria Palmira Suso de uma série (no pleno sentido da palavra) de desenhos de Tiago Manuel.
Na introdução de Laurent Le Bon a esta publicação, conservador do Pompidou e co-comissário/curador da exposição, cita-se a exposição do MoMA/Hammer Museum (Masters of American Comics) como uma acção original, no sentido em apresentar a banda desenhada – em todos os seus factores sucessivos de produção e reprodução – enquanto cidadão de pleno direito na polis da arte. A entrada da banda desenhada (e artes afins, como a ilustração, a caricatura, o cartoon, etc.) no espaço museológico poderá recuar, mas desconheço se tem aí o seu ponto originário [vejam comentário de Domingos Isabelinho abaixo do post, e imagem aqui ao lado. Talvez, no futuro, possamos entender e debater as diferenças dos fins destas exposições, para melhor entender os seus gestos articulares], até uma exposição havida no Museum of Modern Art (o MoMa) de Nova Iorque no princípio dos anos 90, intitulada High & Low. Modern Art and Popular Culture. O enorme catálogo é da responsabilidade de Kirk Varnedoe e Adam Gopnik. Essa exposição versava o diálogo bilateral entre as artes visuais ditas maiores – pintura, escultura, e depois a instalação, o vídeo, etc. – e as populares, presentes nas secções apresentadas, a saber, Graffiti, Caricature, Comics, Advertising. Segundo os comissários, a nova era aberta pelo século XX “permitiu uma liberdade sem paralelo à imaginação individual, e deu lugar a objectos de invenção difíceis, exasperantes e por vezes até mesmo hermeticamente resistentes”. Se bem que historicamente a divisão entre as artes das elites, cada vez mais intelectualizadas, associadas a um quadro de referências fora do alcance de todos, e que se prezava de significados que necessariamente apenas seriam desvendados com as chaves apropriadas, se verifique apenas na Renascença, esse divórcio apenas permitiria no século XX que essas duas esferas se começassem a olhar de um outro modo mais implicado. O factor decisivo dever-se-á não só à cultura moderna urbana (a metrópole é fulcral, tema insistente nos autores dessa larga passagem, como Masereel) como à descoberta processual do passeio que esse espaço permitia (o flâneur do século XIX à la Baudelaire seria substituído pela distracção constante do passeante de Robert Walser).
A ideia de passeio não é uma ideia diletante. É central. Num passeio somos confrontados com todos os níveis existentes de cultura, se crermos em “níveis de cultura”, mas vivem todos eles unidos num só espaço físico, do olhar. O problema de origem destas dicotomias entre cultura alta e baixa, mesmo tendo em conta que Varnedoe e Gopnik tentam ultrapassar “respostas estereotipadas”, tem a ver com o movimento de mola que se imprime à coluna vertebral de todos os “grandes artistas”. Isto é, estes são aqueles capazes de nos seus passos de titã pelas cidades dos mortais perscrutar o lixo quotidiano das massas, os produtos objectos e abjectos sem nome nem futuro, para se curvarem sobre eles, pegá-los com as mãos e logo se elevarem novamente às suas alturas, carregando esse espólio pobre. Nessa ascensão e por contacto com o artista-titã, o objecto é transformado na sua profunda natureza e torna-se ouro. Como disse, os autores de High & Low tentam ultrapassar essa visão, mas não falariam do estilo “big foot” que nasce em Gotfredson e é reciclado por Robert Crumb se não tivesse tido um avatar – profundamente transfigurado, “naturalmente” – na esfera das artes visuais, na pintura, de Philip Guston.
Le Bon cita Hergé quando este diz que “não existe artes menores”; entenda-se: sendo arte, não poderá haver discursos de menorização, nem por razões sociológicas (o problema estará nos preconceitos e ignorância de quem vê) nem por razões ontológicas (ou é ou não é). A menos que essa menorização seja interna, pela discussão de Deleuze e Guattari do binómio menor-maior, que envolve as facetas políticas, sociais e estéticas da produção humana. Todavia, é preciso dizê-lo e não ser cego a isso, no interior do território da banda desenhada essa minorização não é feita através de uma consciência forte do seu potencial, do seu espaço singular de liberdade, na plena adopção e assunção das suas especificidades, mas quase sempre num movimento de ressentimento para com as outras artes. Usualmente, ou para com a literatura ou para com a pintura (as “A”rtes). Raramente isso acontece – um exemplo apenas: Frédéric Coché com o seu Hortus Sanitatis. As mais das vezes, quando os cultores da banda desenhada se viram para os “altos círculos” das artes visuais fazem-no já com uma predisposição negativa, um preconceito seu, na melhor das hipóteses como fonte de incompreensão, na pior tomando-as como objecto de ridicularização. A publicação Arf, de Craig Yoe, é um culminar desse preconceito, no qual se multiplicam os exemplos em que os “grandes” autores de banda desenhada ou cartoon dialogaram com os “grandes” autores das artes visuais: gozações, pontos de partida para absolutos non-sense, questionamentos do gosto, inteligência e lógica de quem apreciava essas artes contemporâneas, etc. Não é por Jim Steranko ter utilizado as mesmas premissas visuais formais da Op Art e do Surrealismo nas suas histórias de Nick Fury que se torna um autor importante na maturidade visual da banda desenhada. Bem pelo contrário, apenas contribui para que ela seja um repositório de lições em segunda mão, facilitadas. Mesmo recentemente, na série Ex Machina, de Brian K. Vaughan e Tony Harris, o episódio que mostra o interior do MoMA e uma crise ética provocada por uma obra de arte contemporânea mostra apenas um relacionamento com os aspectos mais mediáticos, imediatos e superficiais que a arte contemporânea consegue na arena de atenção pública, relegando a sua força mais premente quase para fora da equação (uma espécie de eco da exposição Sensation, com os Young British Artists).
O que importa, portanto, para um crescimento da banda desenhada enquanto cidadã no mundo da arte é olhar para si mesma e conhecer-se de modo profundo, procurando explorar de um modo acabado, experimental, seguro, transfigurado, etc. as suas especificidades. Hergé poderá não ser, concordarão certamente, o mais experimentalista dos autores de banda desenhada – mesmo que tenha sido ele quem estabeleceu toda uma série de elementos que seriam utilizados como moeda corrente pelos seus imediatos e menos imediatos sucessores. Não estará num mesmo campo em que inscreveríamos McKay, Herriman, Sterrett, Feininger (exploradores formalistas, se quiserem, apesar de isso ser uma redução), nem um outro onde se contaria com Masereel, Dix, Ernst, Taro Yashima (que empregaram a linguagem para outros fins para-narrativos ou de contornos políticos mais vincados). Mas não se poderá retirar a Hergé a sua força como (re)criador da legibilidade da banda desenhada. Todavia, esta exposição recai sobre a sua faceta de desenhador.
É curioso notar que as exposições de desenho têm usualmente mais fama e visitas se o seu autor for mais reconhecido numa outra área qualquer. Desenhos de Eisenstein, de Siza Vieira, de Coco Chanel, de Picasso (refiro-me a exposições reais passadas) são sempre naturalmente atraentes pela aura das artes verdadeiras em que esses autores singraram. Mais recentemente, uma exposição de desenhos, estruturados de acordo com a noção de série, de Manuel Tiago (na galeria Palmira Suso) levou a algumas considerações, mas tímidas, da parte dos críticos da especialidade. Exposições passadas de autores de banda desenhada, de ilustração ou pura e simplesmente de desenhos não tiveram a atenção que poderiam ter caso existisse uma maior democratização e uma menor condicionalização do “mercado”. (a elas voltaremos noutra ocasião).
Hergé é aqui visto, portanto, como desenhador. É claro que a sua faceta de banda desenhista, ou melhor, como desenhador que estrutura alguns dos seus desenhos de acordo com um programa narrativo não poderia senão estar presente, já que a esmagadora maioria dos desenhos que criaria a partir de certo momento seriam empregues nesse fim. Coleccionam-se aqui o mais antigo desenho sobrevivente da sua infância, ilustrações, cartoons, caricaturas, esquissos, cartazes publicitários, “parasitas gráficos” e, claro está, as pranchas originais. Relança-se assim novamente o valor da “arte original” numa arte cuja existência ontológica recai sobre a sua cópia, a sua reprodução técnica e consequente distribuição. Não digo que um exemplar único não possa constituir uma banda desenhada nem que as pranchas originais “valham” mais – enquanto texto artístico, objecto semiótico, objecto a ler – do que aquelas que alcançamos no objecto-livro. Simplesmente essa dicotomia não deixa de existir nesta arte em particular. Os cartões de uma tapeçaria ou os esquissos de um designer são meros instrumentos cuja participação na obra de arte final é externa. Os elementos reais captados no filme diluem-se no trabalho da montagem. O eventual desenho que se estipula numa tela desaparece sob as tintas. Toda a arte conceptual faz com que a ideia-matriz seja contígua ao objecto material apresentado. Na banda desenhada é a leitura (seja esta entendida da forma mais libertária que se desejar) que estabelece a sua existência e essa é assegurada normalmente através de um objecto-suporte (livro, revista, computador). Se eu ler uma banda desenhada antes dela ser publicada, nas pranchas originais, estou a ler uma banda desenhada. Mas quando ela é finalmente publicada, passo a partilhá-la num espaço maior social, necessariamente comum (é o mesmo texto) mesmo que contingente (de acordo com contextos de leitura). A possessão ou apreciação da arte original de uma banda desenhada faz convergir aspectos que têm a ver com o fetichismo, a mercantilização, o estudo técnico, o desvendar gestual. A descoberta, com este tomo, de mais de mil desenhos – originais, decerto, mas não no livro, onde estão reproduzidos – permite-nos a um só tempo aproximarmo-nos desses campos variados, e estou em crer que ajudam até certo ponto a ler melhor a obra de Hergé. Aliado a muitas citações do autor belga espalhadas pelo catálogo (que partem de entrevistas, discursos, escritos que já haviam sido coligidos na crescente bibliografia sobre o pai de Tintin), todo este material permite ampliar o campo de referências, esclarecer as escolhas e estratégias artísticas, moldar de um modo outro a criação de Hergé.
5 comentários:
A decana das exposições de tipo "high and low" é "Bande dessinée et figuration narrative"; Museu das Artes Decorativas / Palácio do Louvre (1967).
Ooops! O T.M. saiu trocado (M.T.)...
De qualquer modo, um óptimo texto.
Felicidades.
Obrigado, F.O., e as minhas desculpas por este lapso terrível (e entretanto corrigido). Pergunto-me se será o fantasma do 2º "grande português"...
Fantasma? Eu??? Não! Acredite que estou viva, e bem viva. É que sou uma leitora assídua (e atenta)deste blogue.
Um abraço.
Perdão, o fantasma era o do Manuel Tiago, aliás, Álvaro Cunhal. Esse é/seria o fantasma que me tinha levado ao lapsus scribe. Pergunto eu...
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