Aos poucos, Mauro Cerqueira vai desdobrando o seu acto criativo por várias frentes materiais, modos de expressão, veículos, de forma a transmitir melhor ou mais desenvoltamente o seu propósito artístico, inanalisável e indeterminado, não pela razão de não existir, ou não ser claro, mas precisamente pela sua natureza artística. Assim sendo, encontramos nas suas sucessivas acções e exposições objectos a que podemos dar o nome de vídeos, esculturas, instalações, site-specific, desenhos, grafitti, e, o que mais nos importará aqui, publicações. É indispensável não desenlaçar estes projectos editoriais dos projectos artísticos nos quais se integram, ou dos quais são complemento, continuação, metástase. Mauro Cerqueira é, em primeiro lugar, um artista, e estas publicações são parte da sua pesquisa. No entanto, poderemos indubitavelmente apreciar as publicações por si mesmas, nalgum grau de autonomia em relação ao restante dos projectos, nem que pela simples razão de nos evitarem entrar num discurso que não nos compete.
O primeiro, está a morrer e não quer ver, foi lançado numa exposição colectiva do mesmo nome no Espaço Campanhã, no Porto, cuja curadoria está a cargo de José Maia. Esta exposição tinha a ver com uma determinada perspectiva sobre a História de Portugal, quer a mais recente quer a mais glorificada, e sobretudo com a crescente apolitização da arte contemporânea (a qual, quando nela incorre, persegue princípios mais ou menos seguros, pouco incómodos ou até mesmo “seguramente incómodos”...). está a morrer e não quer ver tem um formato de jornal menor do que o tablóide, assemelhando-se por isso aos jornais gratuitos distribuídos pelo país. É impresso a uma cor apenas, preto, precisamente em “papel de jornal”, e tem dez folhas dobradas, simplesmente metidas umas dentro das outras. A primeira folha contém a capa, com uma gravura da nau São Gabriel, de Vasco da Gama, e o título em letras góticas, e a contra-capa uma citação de Herman Broch de Esch ou a Anarquia, e o cólofon. Esta é a única folha cuja impressão está na “face” das folhas; o miolo está invertido, isto é, apenas tem impressão no “verso”, ou “para dentro”: as restantes nove apresentam desenhos, os quais apenas podem ser vistos na íntegra, fora o último/do meio, se desfizermos o jornal... Todos estes desenhos mostram barcos (naus, caravelas, ou simplesmente “barcos”) em várias fases de catástrofe, engolidos pelas ondas, pelas chamas, pelos furacões e redemoinhos, maëlstroms e Caríbdis, todos sob as inefáveis formas da tinta riscada, despejada, salpicada dos desenhos brutos de Cerqueira. A catástrofe ganha ainda mais sentido, táctil, performativo, através do necessário gesto do leitor em desfazer o jornal para que possa ver os desenhos. A glória da nau de Vasco da Gama, tomada eventualmente como símbolo (pífio e cansado) de uma qualquer portugalidade evanescente, é aqui torturada pelos acasos da história (como quem diz para não esquecer que a par d’Os Lusíadas, os Descobrimentos devem ser temperados pela História Trágico-Marítima e pela Peregrinação), incorporados na prática de Cerqueira, sem virtuosismo, sem equilíbrio, sem ponderação, e talvez mesmo sem medo.
Os joelhos em sangue sobre a neve, cujo formato recordará Alma Picada (publicação ao comprido, com papel de toalhas de mão dobradas, em edições pequenas mas em que cada objecto é único, uma vez que os desenhos são repetidamente redesenhados para cada uma das páginas) está associado a uma outra exposição havida no mesmo espaço, em curso, cujo título é Lição no. 2, mas está ainda associada às peças com as quais Cerqueira participou do recente prémio EDP jovens artistas e àquelas que estão em produção para uma exposição a haver no Espaço Avenida, intitulada Entrocamento. Estes desenhos, simples, rabiscados, brutos, parecem ser apontamento ou ilustração de acções de performance, de instalações – esta imagem que mostramos ecoa a instalação e vídeo Perder as Graças -, em larga medida com características bem próximas dos projectos de Mauro Cerqueira na esfera artística em que participa. Os joelhos... termina com uma citação de O Marinheiro que perdeu as graças do mar, de Mishima (não identificado), mas desligando-se da violência que lhe é inerente (explorada de modo mais directo por Tiago Manuel na exposição que teve no CCB, e que presumimos vir a tomar a forma de uma publicação num futuro próximo) ou pelo menos adiando-a para “fora” do livro, deixando-a apenas como ambiente latente, ponto que nos obrigue nela a pensar sem que ganhe forma directa. Cria-se antes, com essa mesma citação operando sobre os desenhos, uma espécie de tensão de contornos fluidos, idêntica àquela que é descrita no trecho de Mishima, em torno de uma piscina vazia (a qual estabelece outros jogos de associação com uma cultura jovem urbana explorada bastas vezes por Cerqueira, a saber, a do skate).
É também de Broch a afirmação de que “a nossa prática actual da arte já não é um ofício divino”, a qual nos coloca numa questão: aperceber-se-á este artista, talvez, mesmo que não discursiva ou intelectualmente, dessa perda de natureza? Será mesmo essa perda, ainda que adivinhada, que o coloca num caminho da precariedade – dos materiais, da linguagem, da discursividade eventualmente positiva? É como se se apercebesse estar “cá em baixo”, “cá fora”, e olhasse para o “cima” e o “dentro” e o único modo de expressar essa perda, essa pena, fosse através da fragilidade, do acto violento, do acto destrutivo, “no future”. Os traços dos seus actos e peças para essa ideia concorrem.
Displicência, negrume, agrura, tédio, pequenas violências e ódios que se vão formando, alguns deles mesmos virados contra a própria pessoa, são as características conceptuais que parecem evolar-se de todos os estes textos, e que o colocam, ao artista, num maior grupo de autores que exploram esta espécie de descontínua insatisfação e pouco à-vontade com o resto do mundo. Tratar-se-á de uma estratégia pensada, de um traço típico de um fazer artístico, uma mania, ou uma profunda e verdadeira irritação que se forma? Serão estas publicações, negligentes para com um certo estilo, uma certa qualidade e até uma coerência (Mauro Cerqueira explora, com André Sousa, um espaço chamado Uma certa falta de coerência), desprovidas de estilo, qualidade e coerência? É óbvio que não; caso o fossem, dissipar-se-iam no nada: existindo, participarão de um estilo, de uma qualidade e de uma coerência, tudo o que apenas se torna observável na continuidade e desenvolvimento do trabalho do seu autor. A ver.
Nota: agradecimentos ao autor, pela oferta de ambas as publicações. A primeira está à venda por 3 Euros, a segunda (de apenas 50 exemplares "únicos"), por 20 Euros, ora no Espaço Campanhã (aberto por marcação) ora junto do próprio autor, contactável pelo seu blog.
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