O objectivo de um paradoxo é provocar um ora breve ora permanente rombo na percepção comum, na opinião infundada, ou na aceitação de uma ideia sem que se procurem os fundamentos dela. Enfim, criado mesmo na hipótese de que o descubramos falso ou mesmo patético, obriga-nos porém a procurar as razões para o demolir e, ao fazer essa procura, presenteia-nos com algo que não possuíamos ao princípio, por jamais as termos procurado e auscultado, a essas razões. Os paradoxos de Zenão continuam a ser capazes de, de época em época, redespertarem o seu interesse, que cada vez menos se revelam ser meramente numéricos, físicos, ou tolamente contrários ao “senso comum”, mas reveladores de incertezas da ontologia e teleologia da existência, cuja certeza é precisa e unicamente a de serem incertas (passos que a própria ciência moderna persegue e aceita). Enfim, os paradoxos de Zenão – se bem que estejam à procura de uma fundamentação das teorias de Parménides contrárias à intuição da mudança – ainda nos obrigam a “parar para pensar” ou pelo menos a desdobrar a cada passo do pensamento e de cada passo do pensamento todas as suas potencialidades (nesse sentido parece-me que se aproxima da ideia da “dobra”, conforme a lição de Leibniz através de Deleuze).
As perguntas, portanto, são: qual será o trio neste livro de Hornschemeier?, qual será a dobra que se procura abrir e revelar?, quais os movimentos interrompidos nessa pesquisa? Poderemos encontrá-lo no plural, nas várias “camadas” em que se desdobra um elemento em três distintas faces. Tomemos o tempo, para começo. Uma forma relativamente simples de entender o tempo é, obviamente, a divisão entre o passado, o presente e o futuro, que fazem todo o sentido e nada têm de banal. É, porém, necessário procurar que máscaras é que essas facetas do tempo (algo que se sabe o que é até que nos perguntam, como diz Santo Agostinho) assumem em The Three Paradoxes. Este livro segue tão simplesmente a vida ou um episódio curto da vida de um autor de banda desenhada, chamado Paul (apontando a uma linha finíssima entre a ficção e a autobiografia), numa curta estadia em casa dos pais, antes de vir a encontrar-se com uma mulher com quem se correspondeu mas nunca se encontrou ao vivo, Juliane. Essa estadia leva-o a pequeníssimos momentos íntimos com o pai, a um passeio nocturno pela pequena cidade onde habitara, o que o leva a lembrar-se da sua infância, a um outro episódio da sua infância: mas este episódio ganha corpo gráfico no livro num tratamento diferente. É costumeiro que o “passado” seja representado na banda desenhada através de uma qualquer estratégia visível, com uma cor especial, contornos redondos das vinhetas ou algo do género; mas a transformação aqui é muito visível, já que esse episódio pretérito surge como se fosse impresso em meio-tom, o modo clássico de impressão da banda desenhada nos anos 70-80, que é quando se adivinha passar esse episódio (pelas contas das idades, as modas, breves referências). Em contraste, o presente é mostrado de um modo mais claro, distinto. O futuro, por sua vez, apenas tem direito à presença nas palavras do protagonista, naquilo que adivinha antes de conhecer Juliane e no diálogo que “treina” no carro.
Mas há outras “camadas” que se formam na história e que complicam esta interpretação. Em primeiro lugar (?) temos a própria história de Paul-o-protagonista, que enquadra todas as restantes. Ao longo de The Three Paradoxes, para além dessa linha principal, surgem outras narrativas, cada qual em estilos diferentes: primo, a banda desenhada que Paul-o-protagonista está em curso de fazer, da sua série infantil “Paul e o lápis mágico”; secundo, aquela que é sempre introduzida por uma câmara fotográfica e que representa o passado já referido, ou talvez antes uma versão em banda desenhada do passado recontado por Paul-o-protagonista, e para a qual precisa de fotografias como referência – ou seja, estaremos a observar esse passado real, uma “imaginação em banda desenhada” desse passado, ou um projecto que futuramente criará, como se se tratasse de uma prolepse?; tertio, a estranha narrativa que parece dar conta da vida de um empregado de mercado chamado Matt com uma enorme cicatriz no pescoço, aliás, a história que dá conta da origem dessa cicatriz: como se fosse uma “imaginação em banda desenhada”, de novo; e finalmente, quarto, “Zenão e os seus amigos”, uma revistinha de banda desenhada, que explicita o pensamento de Zenão num estilo reminiscente de bd infanto-juvenil, e que parece introduzida no próprio livro que estamos a ler, com uma paginação diferente de tudo o resto. Os estilos, portanto, diferenciam-se não apenas no que diz respeito ao desenho, sobretudo nas proporções anatómicas das personagens, mas também a um nível diferenciado do trabalho taylorista do mainstream norte-americano, esta história apenas a lápis azul, aquelas com colorações diferentes, etc. Estas mudanças de estilo não são novidade, nem em relação a Hornschemeier, mas uma opção pensada, como havia sucedido em Sequential e Mother, Come Home, ou noutros autores, como Ice Haven, de Clowes, muitos dos projectos de Alan Moore, o recente The Eternal Smile, de Gene Luen Yang e Derek Kirk Kim, etc. São modos visíveis de “dar a ver” essas “camadas” a que me referia anteriormente.
Há momentos no passeio nocturno em que Paul tira fotografias dos espaços que o rodeiam, a cidade onde cresceu, ou do pai: mas se no caso deste último não se opera qualquer transformação na superfície do que vemos, nos outros casos as fotografias introduzem narrativamente a analepse, para o passado e adolescência de Paul (ou prolepse, no caso de obra projectada no futuro, ou simplesmente imaginação potencial, que não ganha corpo no seu universo, mas sim no nosso – afinal, estamos mesmo a ver essas páginas; no entanto, enquanto autor de banda desenhada, não se perceberá – aliás, é essa indistinção que torna The Three Paradoxes mais interessante – se essa percepção é “real”, se faz parte da “memória”, ou se é antes “inventada”, “imaginada”, como um projecto de banda desenhada a fazer... A banda desenhada surge assim como método eleito e preferencial de Paul-o-protagonista de criar (“Paul e o Lápis Mágico”, trabalho em curso com o qual está obcecado ao ponto de não conseguir adormecer por pensar nele), de se recordar (o passado, a adolescência), de imaginar (“A cicatriz”), e de pensar (“Zenão e seus amigos”), não só o que nos obriga a misturar todas essas acções num só nível, numa só superfície – a do próprio livro que temos nas mãos – como ainda convertendo tudo isso em ponto de partida para a análise e apreciação do próprio acto de Paul Hornschemeier com The Three Paradoxes.
No diário de Etty Hillesum, uma intelectual judia que perdeu a vida nos campos de concentração nazi e que nos legou páginas de um pensamento livre e incomodamente fraterno, lemos (a 3 de Julho de 1942) o seguinte: “a eternidade insinua-se através das minhas mais ínfimas acções e percepções”. Quando Paul-o-protagonista vai pagar a sua despesa no mercado e se apercebe da cicatriz que atravessa o pescoço do empregado Matt, seguem-se 14 páginas de uma história – imaginária, poderíamos dizer, não fossem todas elas - que explica a origem dessa cicatriz. Mas os tempos dessa história, quer o cronológico, aquele que nós mesmos demoramos a ler e a virar as páginas, quer o histórico, o que demoram as acções e vidas daquelas personagens, não batem certo com o que adivinhamos ser um breve instante na hesitação de Paul. Essa percepção ínfima de Paul transformou-se numa “eternidade” onde se desenrolam as outras histórias. E essa pausa, essa brecha, essa dobra, é aquilo que permite a Paul discutir (e imaginar) os paradoxos de Zenão, reintroduzindo ou reafirmando a sua pertinência, mesmo na sua negação por Sócrates, na nossa própria existência, enquanto aquele espaço intervalar que sempre encontramos em tudo o que fazemos ou experienciamos é que nos permite pensar.
Paul Hornschemeier, de uma maneira quase desapaixonada, institui um desafio maior: a demonstração de como, pelo menos em relação a si mesmo, a banda desenhada surge como veículo de pensamento consciente. Isto é, todos o fazem, é claro, pelo próprio acto da sua criação, que é já um modo de expressão de um pensar (um pensar fazendo). Mas Hornschemeier traz a dimensão auto-consciente, meta-referente, para o palco principal do seu fazer, colocando em segundo plano todas as outras dimensões necessárias, transformando-as em elementos ao serviço desse pensamento sobre o próprio pensamento da banda desenhada. E é nesse contínuo acto de desdobramento e auto-referência que se vão formando os paradoxos do movimento perpétuo e da pausa inevitável que habitam o coração deste livro.
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