Podemos afirmar que a história da banda desenhada, na sua máxima amplitude, ainda está por trilhar completamente. Existem, sem quaisquer dúvidas, muitos sendeiros parciais, a cartografia dos principais marcos, o sulcar das direcções a seguir e pesquisar. Mas em termos de síntese e de fluidez (quer dizer, ainda nos faz falta um The Story of Comics, à la Gombrich), existem ainda cantos por perscrutar, nichos por trazer à luz, blocos por considerar. A história, porém, faz-se no presente.

Dividido em quatro capítulos de tamanho similar (“The Infant”, “The Boy”, “The Son of Man” e “The Messiah”), James Reid apresenta os episódios mais famosos e esquemáticos da vida de Jesus: poucos em maior pormenor, como a matança dos inocentes, sendo a sua maioria apresentados sumariamente, como os milagres dos anos da sua pregação pública. A juventude (o capítulo intitulado “The Boy”) apenas apresenta cinco imagens, com grandes saltos temporais entre si, uma vez que é uma fase da vida de Cristo sobre o qual nem há escritos nos Evangelhos nem se desenvolveriam mitos ou lendas suficientemente fortes para vir a fazer parte do imaginário com ele relacionados. As duas últimas imagens desse capítulo mostram um Jesus observando um grupo de jovens casais caminhando, e ele ficando para trás, cabisbaixo, como se soubesse ter de abandonar essa vida mundana e isso representasse algum peso e, quem sabe, arrependimento ou mesmo desejo de renúncia. É, portanto, o único momento em que Reid parece contribuir com uma ideia ou interpretação sua, mas que acaba por não se desenvolver e cuja força, assim, não pode ser avaliada. Não estamos perante uma ficção forte em torno desta personagem como em King Jesus/Rei Jesus, de Robert Graves, nem num anedotário poderoso como 2001 Après Jesus Christ, de Jean-Luc Coudray com Moebius. Não há espaço para isso.

Para além do paupérrimo contributo de Reid ao discurso teológico possível, à invenção romanciada da vida de Jesus, estilisticamente estamos perante uma obra com pouca matéria de agradibilidade. Os corpos são demasiado alongados, e o expressionismo parece mais caricato do que intenso. Alguns dos filmes bíblicos de Cecil B. DeMiller já haviam sido feitos, mas aqui ganham uma qualidade menos heróica do que de sobras de papelão.

Aliás, a sua apreciação “pela negativa” leva a um reequilíbrio curioso, ou melhor, a uma asserção cada vez mais forte “pela positiva” de outro autor. Tal como estudo da vastíssima produção de ilustração dita “vitoriana” nos obriga a uma travessia por um cerrado mato de personagens sem expressão, situações sem densidade, meros décors de correcção social, e pura e simplesmente desenhos sem qualquer traço de verdadeira vida, mas ao mesmo tempo nos permite aperceber as razões pelas quais os nomes de Gustave Doré, Richard Doyle, John Gilbert, Harrison Weir, entre outros, brilham como excepções, também a leitura de livros como os de Reid e de Ward nos fazem recalibrar o peso, cada vez mais exacto e inevitável, de Masereel.
O problema de Lynd Ward não é tanto a falta de expressividade do rosto das personagens (varrendo o “expressionismo”, portanto, para apenas a angulosidade dos ambientes, o recurso às tramas de linhas paralelas para a dinamização das acções e o melodrama das situações), como ocorre nas dezenas de negligenciáveis ilustradores vitorianos, ou até mesmo de Reid. É antes da a expressão errada, ou errónea. O melodrama, a hipérbole, o bathos, são as características – apetece quase dizer “americanismos”, se no permitirem este abuso generalista e preconceituoso, que apenas dá conta das produções culturais dadas à espectacularidade, e não daquelas que partem de uma pesquisa mais pessoal dos seus autores. Ward encontra eco numa espécie de “espírito médio”. A esmagadora maioria dos rostos das personagens que apresenta jamais mostra os olhos, ora por se apresentar numa posição que não apresenta o rosto aos leitores, ora por ocultá-los em densas sombras negras. Quando o faz, como ao banqueiro assustado, o edifício da expressão rui, pois Ward não consegue transmitir pelos seus traços o modo de comportamento mais humano previsto nos olhos (e na sua representação).

Ou seja, Ward estava na esteira de uma já longa tradição, mas apura-a enquanto forma narrativa (e modo de publicação), tornando-a mais clara, mais espectacular, quem sabe mais eficiente perante o imaginário da sua época, paulatinamente a passar a ser criado quase em exclusivo pela indústria do cinema. Beronä quer reavaliar a história da banda desenhada, considerando Ward (e Vertigo em particular) como percursor daquilo que viria a ser chamado nos Estados Unidos por “graphic novel”, formato o qual – nesse país e de acordo somente com os princípios com que lá se pautam – apenas surgiria mais tarde. Será por essa razão que a acapa deste livro é refeita para que o título e o nome do autor figurem integrados de um modo dinâmico nas estruturas dos edifícios? De certa forma, é uma recuperação e aplicação retroactiva de uma conhecida fórmula de Will Eisner (o suposto “inventor” da graphic novel, suposição sobre a qual já existe uma larga história que corrige essa ideia), para tornar ainda mais clara essa inscrição no tecido histórico. Todavia, parece-nos que é maior o esforço quanto menor a verve interna da obra... Ward não é desprovido de interesse, bem pelo contrário: deve desde já fazer parte de uma consideração maior sobre este território. Mas é curioso como a cada sua leitura se torna mais forte a presença de Masereel, incólume e crescendo.
Nota: o vídeo é de má qualidade, mas ainda demorarei a aprender a controlá-lo. Se o fim vos parecer abrupto, é porque o é: mais uma vez a interrupção deve-se à Miki.
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