Esta nota mínima serve para falar das ilustrações-apontamento de Ana Biscaia para o fino volume, nas várias acepções dessa palavra, que reunem curtos poemas dedicados aos animais, do poeta Rui Caeiro.
Se mostro aqui quer a capa quer a contra-capa com a respectiva badana, é para dar conta do cuidado arranjo, e simples, deste pequeno livro. Há uma indissociável relação entre os desenhos de Ana Biscaia e o modo como estão presentes ou são integrados nas manchas das páginas. A maior parte dessas imagens surge isoladamente em páginas à mão esquerda, estando os poemas somente nas à direita; algumas ocupam duas páginas, outras vezes páginas pares são deixadas em branco... de quando em vez, pormenores dessas ilustrações são repetidas, em fragmento, nas páginas dos poemas. Enfim, espalham-se belamente pelas páginas, como se num bestiário livre, ou como se as pequenas gaiolas que lhes pertencessem tivessem caído, e agora fogem por onde podem, por entre as letras igualmente. Não procuram, portanto, serem simplesmente ilustrar, serem somente um ponto de embelezamento do livro, mas forçar-nos a entendê-las num vivo diálogo com os textos. E a verdade é que os traços de pincel, grossos e com pouca tinta, aparentemente aumentados fotograficamente, de Ana Biscaia, engrossam-se em formas por vezes inidentificáveis, rabiscos bestiais e rápidos como as bestas que iluminam. Precisamos de ler o poema em face para nos assegurarmos que esta se trata de uma barata, aquele de um lobo, ali uma coruja, acolá um touro. Mas esta falha de imediata indentificação não é uma falha, nem sequer um problema. É como se estivéssemos perante um maelstrom informe de formas animais, a promessa delas todas concatenadas numa massa de tinta plástica no próprio acto de formação (uma imagem que bebo do que o Virgílio de Hermann Broch testemunha na sua morte...). É como se Ana Biscaia tentasse, à sua maneira, chegar também ao seu círculo taoísta, unindo formas, como Muth. E atingindo-o, à sua maneira.
A ideia de grosseria e de violência também me assoma à mente ao ver estes desenhos de Biscaia, mas mais uma vez deve isso ser entendido como uma fortaleza do modo como a autora traduz a velocidade da leitura destes pequeníssimos poemas e a potencialidade de mergulharmo-los numa mais unida e contínua percepção do que eles nos contam. Aliam-se aqui a celeridade do traço do desenho e a da leitura do poema, o que não quer dizer que não haja pensamento no primeiro e não haja peso e consequência na degustação lenta do segundo. É um estranho mas feliz casamento. Um encontro hábil mas subtil de duas caligrafias distintas.
A erudita e completa introdução de José Manuel de Vasconcelos cartografa a longa e multímoda tradição na qual os poemas de Rui Caeiro não se entregam como exploram e expandem. Falar-se-á de fábulas, de novelas e romances, desde as mil e uma do circuito infanto-juvenil às solidamente afamadas (Kafka, Juan Ramón Jiménez, Melville, Borges), e de músicas, donde o título, emprestado, a Saint- Saëns. Fala-se de Jorge Sousa Braga, também e ainda, e poder-se-ia acrescentar, por aí, as fórmulas curtas da poesia oriental, ou mais perto de nós, os versos de Robert Desnos, Chantefables et chantefleurs, com os quais mais se aparentam na forma estes poemas de Caeiro, ainda que no espírito procurem menos a trouvaille, ou o nonsense de rimas internas e cabriolas (sem qualquer julgamento contra essas estratégias, já que atingem um sentido epopaico infantil), do que uma acalmia de observação e intimidade. Importante é relembrar que os poemas de Desnos foram musicados por Lutosławski, ou melhor, transportados de vez para a esfera do musicalmente austero, na qual já participavam. Também os poemas de Rui Caeiro, como aquele famoso poema de Alexandre O’Neill sobre o g da pulga (e que infelizmente é impossível reproduzir aqui pela limitada tipografia do blog), encerram em si já uma promessa de música: “’Borboletas 2’: Vivem a vida até morrer dela/ou de algum azar/ou de algum excesso dela”.
Os poemas, esses, oscilam, de novo musicalmente, oscilam entre formigas, elefantes, e formigas e elefantes, pois alguns deles colocam-nos em pares, como nas fábulas. As mais das vezes os animais são vistos, como não podia deixar de ser, a partir dos olhos e das mãos dos homens, em comparações que mais vergonha trazem aos segundos do que aos primeiros, tal qual Luís Cília o fizera na sua canção “Ofensa à lagosta”. Quase sempre para chegar a um qualquer centro muito nosso:
“’Peixinhos de prata’: Atacam o cerne da literatura e da escrita/não com os olhos ou o parco entendimento(mas com a boca, mas com os dentes”.
Notas: agradecimentos à Ana Biscaia, por me ter colocado na senda do livro; e as minhas desculpas pelas digitalizações de baixa qualidade.
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