O aspecto mais badalado do último número de uma das melhores antologias da contemporaneidade é o seu tamanho. Quando se referiu à edição da Sunday Press de Little Nemo in Slumberland (So many splendid sundays!), cujas páginas têm a mesmíssima dimensão de como haviam sido publicadas na sua primeira existência, a partir de 1905, Neil Gaiman referiu-se a este livro como aquele que poderemos escolher quando partimos para uma ilha deserta, porque pelo menos podemos utilizá-lo como uma jangada para sair dela. De facto, com dimensões em torno dos 53 x 41 cm, se as páginas de Little Nemo (e depois o Sundays with Walt & Skeezix) tinham o mesmo tamanho de quando sairam nos primeiros jornais (de Domingo), estas versões em livro, de capa dura, tornam a sua leitura contínua num acto de coragem e equilíbrio físico, ou então num exercício de abandono e retorno nostálgico, espojados no chão, implicando todo o corpo nela como não sucede nas leituras de adulto.
Não é a primeira vez que autores ou antologiadores optam por livros de grandes dimensões, e poder-se-iam arrolar exemplos tão díspares quanto o Epoxy, de Van Hamme e Cuvelier, a primeira vida da Raw, de Spiegelman e Mouly, alguns dos Acme Novelty Library, de Chris Ware, o primeiro número da Satélite Internacional, os novos Jimbo de Gary Panter, chegando ainda ao mais recente George Sprott (1893-1975), de Seth (e mais exemplos haveria). Mas, poder-se-ia argumentar, a esmagadora maioria destes autores ou experiências criaram peças específicas para serem preenchidas nessas dimensões. É óbvio que toda a minha leitura de Little Nemo foi feita em versões menores, mas apenas ao ver o tamanho real das páginas nos apercebemos de toda uma trama de pormenores e de presença visual que era impossível mimar numa dimensão mais portátil.
Isto para dizer que se esperaria que a edição de Kramer’s Ergot buscaria, com tamanhas dimensões (e tendo em conta o custo inerente a uma publicação deste tipo), trabalhos que respirassem especificamente no interior desse espaço, e não simplesmente trabalhos, quer dos autores que costuma publicar quer dos novos, simplesmente aumentados... Não tenho forma imediata de indicar um por um quais os autores que criaram histórias e trabalhos que respeitassem especificamente o tamanho da publicação, mas poder-se-á fazer uma, como dizem os americanos, “hipótese educada”.
Encontraremos, sem dúvida, trabalhos de favoritos, como Tom Gauld, Daniel Clowes (apesar da sua página precisar de ser reconstruída para ocupar páginas menores), C.F., Kim Deitch, Anders Nielsen, Ben Katchor, Adrien Tomine, Paper Rad, Helge Reumann, Ron René Jr., ou o próprio Sammy Harkham, editor da publicação. Mas todos eles apresentam trabalhos que, numa dimensão mais convencional, continuariam a sua consistência e presença. Não se trata de achar que este gigantesco espaço seria melhor utilizado por pranchas ilustrativas, ou por querer ver muitas vinhetas pequenas que levem a uma experiência pautada e longa de leitura. Existem várias soluções, todas elas válidas. Trata-se tão-somente de uma ideia vaga de tirar proveito desse espaço através de uma qualquer estratégia pertinente.
São outros, ainda que também favoritos, que tiram partido do meio metro de altura. Mat Brinkman, com uma página apenas, entre a banda desenhada e a ilustração, e com uma perninha de capa de álbum dos Iron Maiden, Xavier Robel, Souther Salazar, Jerry Moriarty (que não lia desde a Raw), Frank Santoro, Seth, que apresenta como que pequeníssimos facsímiles ficcionais dos diários e bandas desenhadas do ilustrador canadiano Thoreau McDonald, Blanquet, Kevin Huizenga, Ruppert e Mulot, com uma história passada numa imensa escadaria, e Chris Ware (a única imagem que mostramos do interior do livro), que continua a saga da sua nova personagem: o bebé que esta teve encontra-se aqui em tamanho natural, mesmo.
Dos artistas menos usuais, destaquem-se Jacob Ciocci (dos Paper Rad) e a artista canadiana Shary Boyle, a qual participa criando uma história de banda desenhada de duas páginas, mas de apenas uma prancha (isto é, cada tira deve-se ler atravessando à página do lado e só depois voltando atrás), que tem tanto de onírico como como de pesadelo, e que parece recuperar a força sexual dos contos ditos tradicionais. E ainda a contra-capa, com dois amantes pulando para o interior do que parece ser um vulcão. Tal como sucedia com a última Orang, parece aqui haver um tema recorrente nalgumas histórias, que seria entendido como “o fim do mundo”, o “apocalipse”, por mais privado que este possa ser. Há também uma notável tendência em incluir mais artistas europeus, o que leva a uma consolidação de uma certa comunidade estética mundial da banda desenhada contemporânea. No entanto, a estratégia de publicar uma obra deste tamanho e com o seu preço parece querer mover-se para um mercado mais limitado, artístico, o que seria uma excelente conquista, mas sem a esperada adaptação às ferramentas desse diálogo. Seja como for, e voltando à frase de Gaiman no início, e a Pessoa, Navegar é preciso, viver não é preciso.
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