11 de dezembro de 2008

Orang no. 7. AAVV (Reprodukt)

A dupla vida de Amanda Vähämaki, parte 1.
Sob os auspícios da leitura de um muito recente livro do filósofo Noël Carroll, On Criticism, encontro a exposição de um pensamento teórico e programático em torno da actividade crítica estética com a qual não só me identifico como procuro activamente cumprir, apesar das muitas imperfeições e falhas (parte de uma aprendizagem e desenvolvimento sempre em curso). Não me cabe a mim analisar este livro, se bem que seja um autor que conheço bem e que procuro ler assiduamente (conjuntamente com outros autores que prezo), ajudando-me a tentar perceber qual o papel da crítica, e quais as suas funções, possibilidades e intrínseco valor. Mas abordemos alguns dos seus temas, para os poder aproveitar neste espaço. Para Carroll, e tese mais importante deste novo livro – de um nível introdutório, e não tão complexo como outros da sua lavra – é que a função principal da crítica é a avaliação. Isto é, para além da “descrição, classificação [em relação, por exemplo, a uma teoria dos géneros], contextualização, elucidação [i.e., o desvendamento de signos e/ou códigos], interpretação [sob uma miríade de disciplinas possíveis] e análise [explicação das partes e do todo]”, que é cumprida pela esmagadora maioria dos discursos que se fazem passar por críticos – sejam-no ou não, e com maior ou menor proximidade -, aquilo que faz distinguir outro tipo de discursos e um discurso propriamente crítico é o exercício de um juízo de valor. Esta última expressão nada tem a ver com a ideia de pontificado, de sentença, usualmente apresentada sob a forma de um número reduzido de “estrelas” ou “bolinhas”, devendo antes seguir um seu sentido mais profundo, da procura do valor especificamente encontrado na obra de arte a criticar (a valorizar). Como escreve Carroll, “a função primária da crítica é revelar o que é bom num trabalho. Classificá-los não é a preocupação principal do crítico”. Logo, importa menos julgar uma obra de arte pelos princípios de outra, por exemplo um livro de banda desenhada do mainstream norte-americano de super-heróis, como Joker (Azzarello e Bermejo), pela pauta do espaço criado por uma obra como a de Anke Feuchtenberger (e vice-versa), do que procurar no interior de cada qual o modo como cumprem as suas promessas, alteram o espaço anteriormente disponível e que ocupam e transformam, e revelam as suas forças. É claro que é possível, numa perspectiva mais global ou num patamar comparável (o que é difícil, parece-me), colocar uma contra a outra (“Feuchtenberger é uma artista que recria todo o espaço da banda desenhada, Joker adianta pouco à sua estrutura clássica” vs. “Joker apresenta uma curiosa variação e cruzamento de géneros, apreciável por um grande público, Feuchtenberger tem uma linguagem que encurta o leitorado”), mas de pouco adiantará para ler melhor cada uma dessas obras. E ler é o que nos importa.
A dado passo, Carroll apresenta alguns dos argumentos que poderiam ser arrolados contra a sua tese central. Um deles indica que a mera selecção das obras, a opção em falar de uma determinada obra e não de outra, a escolha, é já, em si mesmo, uma tomada de posição valorativa. Se bem que esta questão seja bem mais complexa do que se poderá apresentar aqui (o autor refere-se aos comissariados artísticos, por exemplo, mas também às críticas de jornal), a verdade é que por vezes se podem seleccionar obras sobre as quais, depois, se apresenta um veredicto negativo. No entanto, e é aqui que mais próximo estamos das regras implícitas do lerbd, a minha posição é a seguinte: de todas as obras que me chegam às mãos ou que tenho o interesse suficiente e prazer em ler, nem todas me suscitam a vontade de com elas dialogar para além dessa leitura. Usualmente, e uma vez que me cinjo à apresentação de reflexões em torno de livros novos (leio e descubro textos antigos igualmente, mas não fazem parte dos objectos de análise deste espaço), prefiro dar a ler reflexões positivas, de forças que encontro nos livros lidos, do que massacrar-vos com sentenças negativas (já chega o que têm para rolar o texto no ecrã). Quando lido com um texto qualquer de banda desenhada (ou de outro tipo) que me suscita mais desagrado ou que me dá a ver mais falhanços e fraquezas do que forças, prefiro passá-lo em silêncio, pois poderia ser visto (como infelizmente a crítica é entendida pela maioria das pessoas) ora como pontificanço ora como ofensa. Isso não significa que sinta, por vezes, a necessidade de sublinhar perspectivas demasiadamente presentes, apontando posições contrárias e que tento, sempre, justificar com argumentos racionais (como sucedeu em relação a Wanya).
Posto isto, a razão pela qual me sinto impelido a falar de duas antologias – discutivelmente parte das melhores antologias de banda desenhada no mercado contemporâneo e internacional (assim como a Glömp, a Kutikuti, a Rosetta – lenta, lenta – a Strapazin, a Canicola, entre outras -, a saber, a alemã Orang, da Reprodukt, e a D&Q Showcase, da canadiana Drawn & Quarterly, deve-se mais à presença de trabalhos da finlandesa Amanda Vähämaki que qualquer outra coisa. O que não nos impedirá de falar dos outros artistas presentes.
Amanda Vähämaki tem todas as particularidades que concorrem para a formação de um nome fundamental da banda desenhada contemporânea, a todas as instâncias. É uma artista em permanente formação, tem um cabal domínio dos instrumentos, quer técnicos (o lápis) quer estruturais (as pranchas), da banda desenhada, e procura tanto uma clareza nos propósitos das suas histórias como desvios que a tornam mergulhada numa aura de enigma (apresenta sempre histórias legíveis, narrativas, se bem que com um ambiente e uma delimitação das informações que torna os não-ditos tão significativos quando os elementos objectivamente determinados). Estes não são elementos nem suficientes nem necessários para a construção de um nome fundamental deste território, claro, mas são-no para Vähämaki. Haverá outros territórios, outras formas de o cartografar, de o delinear e de o iluminar. Todavia, esta artista tem o seu espaço próprio formando-se.
Isso não quer dizer que não possamos colocá-la junto a outros nomes. Por exemplo, a estratégia que tem em deixar visíveis o trabalho do lápis, as rasuras, a limpeza (ou melhor, a sua ausência), a repetição de linhas não-representacionais e ilógicas (numa perspectiva de um universo gráfico icónica e logicamente mimando o mundo natural), poderão fazê-la penetrar num grupo no qual se encontrarão os nomes de Thomas Gosselin, Merav Salomon, Sfar (o dos Carnets, sobretudo), Gregor Wiggert, a última Anke Feuchtenberger... Já as suas estratégias narrativas, da criação de um universo de referências limitado num espaço curto, quase familiar, no qual as restantes referências – a inscrição no mundo empírico e histórico que partilhamos – se dissolvem, e no qual um fantástico melancólico (ambas as palavras devem ser entendidas enquanto os seus exactos conceitos aplicáveis às artes literárias) ganha corpo e interfere com o mundo ficcional, poderiam irmaná-la com o seu companheiro de armas na Canicola, Andrea Bruno, mas também Gipi, Anders Nielsen, A I Wan, etc. Poderíamos, portanto, formar várias associações, combinações, famílias (lá está, “críticas”), dependendo da perspectiva do momento ou da circunstância precisa.
A antologia alemã Orang, pela mão do seu editor, Sascha Hommer, apresentou para este número um tema, “O Fim do Mundo”, e, com esse fim, os autores convidados criaram histórias originais. Todas elas exploram um hipotético fim do mundo, mas nenhum deles opta por soluções histriónicas ou que retratem os elementos que levam a esse mesmo fim do mundo. Existem pequenos acidentes que se acumulam, crises familiares crescentes, a contemplação de abismos negros, fantasmas que se revisitam, um aumento da loucura urbana, mesmo que anunciada na televisão, o alívio que vem ao se saber que a pena de morte será finalmente cumprida. Quase todos os autores, salvo aqueles que optaram por soluções mais fantasiosas, com gigantes marchando sobre vilas ou um outro que penetra o mar, mostram o modo como personagens solitárias ou em pequeníssimos grupos, lidam com os negócios e os comportamentos a ter num momento desses. A loja vai fechar, há que deixar as coisas nalguma ordem...
De entre as quinze peças da publicação, Moki apresenta mais uma vez uma história com figuras delicodoces, mas onde paira sempre uma qualquer sombra negra de angústia, de solidão insuportável, de amor não correspondido. O artista de Hong Kong Hok Tak Yeung apresenta uma história sobre um prisioneiro nos últimos dias da prisão, presume-se que para o cumprimento da sua pena de morte. o seu trabalho de pinceladas negras carregadíssimas e “sujas” levam a uma quase dificuldade de leitura, mas ao mesmo tempo permite-se, através dos diálogos, das pequenas coisas em que se concentra, na forma como mostra no mínimo as relações entre os presentes, uma história tocante (que faz lembrar, a um só tempo, The New Sun, de Taro Yashima e Na Prisão, de Kazuichi). Verena Braun apresenta-nos uma fábula, não, uma intromissão futura, em que alguns animais passam a ocupar alguns postos de trabalho misturados com os humanos, e estabelecendo relações pessoais e amorosas tão complicadas como as dos humanos. Christian Maiwald escreve para Martina Lazin uma visita de uma jovem a um local que abandonara há muito e onde lhe é literalmente possível aceder aos fantasmas que abandonara, acentuando a distância que existe entre amigos abandonados e amigos presentes. Tommi Musturi oferta-nos mais um episódio da criatura de um só olho, Samuel, e a sua travessia do que parece ser um mundo hermético mas multímodo, e Ron Regé Jr. um outro pedaço das suas criaturinhas Disneyescas-punk em remontagens e reciclagens sonoras sem nexo aparente, mas de enigmas cristalinos. E Arne Bellstorf, com “A inevitabilidade das coisas”, apresenta-nos uma espécie de thriller à la Hitchcock em que o McGuffin toma conta de toda a narrativa, levando-nos a torná-lo num sumário “alguém foge a alguém, que persegue esse alguém, contratando outro para tratar do serviço”. Mas nada mais é revelado, nada mais é compreendido. Fica o ambiente retro, servido com uma figuração fortemente estilizada, absolutamente regular, onde a única ideia dúbia de cor viva é nos rostos, mortiços, das personagens... Nada escapa.
Mas falemos de Vähämaki. Se em Squirels first o lápis se encontrava utilizado, a um só tempo, densa e diafanamente (por um lado, a inscrição dos traços, das sombras, das manchas, por outro, as rasuras, os “fantasmas de figuração”, ou as mesmas sombras e manchas vistas de um outro ângulo, as suas fronteiras dissipadas), na história do “fim do mundo” incluída na Orang, “Die Aufführung”, “O espectáculo”, o carvão mistura-se de um modo cabal à densidade da noite derradeira que caiu sobre o mundo, criando assim um ominoso ambiente, em que as referências de que falámos atrás, as que ligam ao nosso mundo empírico, mais resolutamente se dissolvem. Em alguns aspectos, está próximo (por afinidade, não por qualquer trânsito directo) do último livro de Feuchtenberger.
A história mostra-nos um punhado de personagens, um trio – um adulto, um velho e um jovem, como se se tratassem da versão masculina das Três Moiras, mas menos activas e menos alegóricas. O adulto retorna à aldeia de onde partira, juntando-se ao velho e, depois, o jovem juntando-se a eles, para verem o “espectáculo”. Atravessando uma noite tinta de negro, vão trocando informações e aprendemos que, do outro lado do pântano, estender-se-á um buraco negro. Tal qual. O velho chegou a perder dois dedos por lhe ter ultrapassado a fímbria. O jovem, entretanto, foi descoberto abraçando um imenso peixe branco no chão, que parece brilhar. Trata-se de um “peixe-estrela”, diz ele, porque tem medo da luz, mesmo das mais fracas. O peixe é abandonado para que ele os acompanhe a uma clareira, num terreno em declive, no centro do qual se ergue um palco. A dado momento, o espectáculo inicia-se, e a prancha passa a ser ocupada por uma imagem única: o espectáculo consiste na passagem de várias personagens, identificáveis apenas em termos gerais – o médico, a morte, a criança. Nenhum sentido é dado, e quando termina as questões que surgem são banalíssimas. Tratar-se-á de uma peça também ela alegórica? De simbolismos fáceis (Tarot, por exemplo)? De hermenêuticas absolutamente secretas? Jamais importará. O fim do mundo já está a suceder e as coisas podem apenas ser fruídas no momento em que nos chegam...
(Continua aqui.)
Nota: agradecimentos a Christian Maiwald pelos esclarecimentos e os três shots de vodka polaco.

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