10 de agosto de 2009

The Gleaming Armament of Marching Genitalia [MdC no. 21]. João Maio Pinto (Mmmnnnrrrg)


Dificilmente conseguiremos catalogar facilmente The Gleaming Armament of Marching Genitalia. Mais rapidamente conseguimos dizer o que não é, do que o que é. Não é um livro de banda desenhada, não é um catálogo de trabalhos, não é uma colecção de ilustrações, não é um um portfólio de desenhos. Pode até passar-se por potencial livro de colorir, de gigantesco que é, mas seguramente que serão poucos aqueles que encontrarão o humor dessa potencialidade, e deixar aos lápis de cor a complementarização do que ele já encerra... quantos tons de verde escuro será possível executar?
João Maio Pinto é uma espécie de respigador cultural, sobretudo visual, mas não só. Procura instituir uma dimensão multisensorial com os seus desenhos. A ideia de floresta não está somente presente em termos representacionais (a esmagadora maioria das imagens aqui presentes tem motivos vegetais, as mais das vezes selvagens e combinando aspectos mórbidos, tenebrosos), como em termos conceptuais, se nos recordarmos da expressão de Umberto Eco sobre os “bosques da ficção”, onde dá vontade nos perdermos. A aproximação do seu estilo visual ao de Charles Burns (sobretudo do magnífico Black Hole), é bastas vezes repetido, mas poderíamos colocá-lo lado a lado a, de modos diversos, Gary Panter, Michael Kupperman, e mesmo José Feitor num determinado modo de construção das suas imagens e histórias, que tem a ver com uma citação tão ampla e tão complexa, que os elos às fontes se rompem para criar um novo texto totalmente autónomo. Também poderíamos dizer ser respingador, já que está menos interessado na devolução de um texto acabado, sem aparas, de consumo e digestão facilitados, mas antes cuspido de modo contundente e expressivo, apesar do aparente controlo gráfico.
A citação inicia-se no próprio título, partilhado com uma canção dos The Flaming Lips, na capa que recordará um poster para um sabão dos anos 50, com uma tipografia cuidada e apelativa, com as composições internas que tanto recordarão cenas in media res (de uma história que jamais será revelada) como as composições de toda uma escola de ilustradores de capas de discos de vinil, quando havia muito espaço para trabalho manual, e sobretudo de um sinal de rock. Aqui poderíamos vogar de Roger Dean com as capas dos Yes e dos Uriah Heep a Aaron Horkey, com a capa de Altar, dos Sunn O))) & Boris, com a qual o trabalho de Maio Pinto tem grandes afinidades, apesar de ter surgido bem depois de algumas das imagens reunidas neste volume, passando pela miríade de capas de discos de heavy metal, como as dos Iron Maiden – com Derek Riggs - e dos Slayer – com Larry Carroll.
Mário Moura explorou certeiramente no seu texto a propósito do trabalho e exposição de Maio Pinto no último festival de Beja da instância daquilo a que dei, noutras ocasiões, o nome de “promessa narrativa”, isto é, a ideia fantasmática que as imagens criam para coalecerem numa história na mente dos espectadores. A parte que se segue entra em diálogo com esse texto do autor do Ressabiator. Um dos passos mais surpreendentes de Alice no País das Maravilhas é quando o texto nos diz que Alice e a sua companhia se cruzam com um grifo, e se abrem parêntisis para dizer: “se não sabes o que é um grifo, vê a imagem”. Esta relação profunda e íntriseca entre um texto que voga para fora de si mesmo, conduzindo-nos não à complementaridade da imagem mas ao modo como esta completa o texto, é rara na história da ilustração, e é o que torna o trabalho de Carroll com os seus ilustradores de uma sofisticação nem sempre apreciada, sobretudo pelos seus editores contemporâneos, inclusive os portugueses (que primam, porém, pela tradução).
Talvez um outro exemplo seja o “isto” antes do desenho do elefante engolido pela cobra em O Principezinho, de Saint-Exupéry. Mas as imagens coligidas em Marching Genitalia não provêm de quaisquer textos, dirão, o que leva à fraqueza dessa associação. No entanto, estou em crer que a questão reside numa forma que Maio Pinto consegue conquistar precisamente por apresentar trabalhos fragmentados, projectos inacabados, troços de destroços, imagens soltas, projectos de outras paragens, num objecto final como esta publicação, fazendo com que ultrapasse aqueloutra questão da “promessa narrativa” – que reside antes na transitoriedade fantasma entre um conjunto de imagens entre as quais o espectador estabelece relações de parentesco ancoradas num qualquer elemento narratológico (ou pseudo-narratológico) como um espaço ou personagem comum, um tema, etc. O que acontece é que estas imagens parecem providenciar um “isto”, uma chamada de atenção concreta para algo que as completa mas que se encontra fora das imagens. Caberá ao espectador, subitamente consciente de que é afinal um leitor, adivinhar – ou formar – essas mesmas histórias. E nada disto tem a ver com o jogo que, por exemplo, está previsto desde logo no livro de Chris Van Allsburg, The Mysteries of Harry Burdick. Neste caso (que é irmanável com a longa tradição dos emblemata), a imagem, em conjunto com o título e a legenda, leva a uma referencialidade demasiado estreita, espartilhada (mas não de somenos interesse noutros aspectos). Maio Pinto permite que a sua estratégia de respigador seja devolvida a quem o lê, reconstrução tornada possível apenas àqueles que possuam a mesma capacidade de respigar, definindo essa leitura, a todo o instante, como infinita e perenemente potencial.
Nota final: agradecimentos adicionais a Joana Batista, cuja tese de Mestrado, Implicit narrative and endless reading, ajudaram nalguns pontos de leitura.

2 comentários:

  1. belo texto Pedro, dá vontade de ver o livro (e tb de colorir!) :-D
    Isabel

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  2. Leio esse [livro] há quase 36 anos e estou sempre à espera do que vem a seguir... Tenho falhado alguns capítulos, mas os que leio valem a pena. Continuarei a ler.

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