10 de agosto de 2009

George Sprott. 1894-1975. Seth (Drawn & Quartely)


Na cinta que acompanhava o livro de Blutch, por ocasião do seu prémio em Angoulême, diz-se que essa obra é “magistral”. Sem querer roubar os louros e as qualidades de Blutch, a utilização dessas palavras deve ser sempre ponderada e, quando empregue, deve-se procurar a sua exactidão. Creio que os sentidos cobertos por essa palavra, seja a da mestria sobre uma técnica e/ou linguagem particular, ou a do magistério, em que se serve de exemplo perante a sociedade em que se integra, é mais plenamente cumprida pelo novo livro de Seth, George Sprott: 1894-1975.
Há na contemporaneidade – aquilo que a define para além da coincidência temporal hodierna - uma incessante busca, sobretudo, por uma natureza inquieta, desassosegada, mais inclinada para a desconstrução, da transformação do quotidiano num estranho familiar (o unheimlich de Freud). Não há aqui, nesta leitura, nenhum tipo de juízo de valor da minha parte, é tão-somente uma análise dessa natureza, mitigada, ou pelo menos suavizada, pelo entendimento amplo de que existem mais do que dois caminhos para a sofisticação. É contra esta generalidade que encontramos Seth e o seu trabalho mais pessoal... Este autor, no centro da tempestade (positiva, variada, bem-vinda) de todo este trabalho de desconstrução, de alargamento de fronteiras, de revisitações, revisionismos e questionamentos, procura antes a instalação de um conforto, de uma familiaridade total, de um retorno, através da nostalgia “desnatada”, da recuperação de um tempo perdido.
Que são as “natas” aqui? São a nostalgia negativa, a atemporalidade, a perspectiva acrítica, a cegueira para com a contemporaneidade, os juízos de valor pautados pela experiência pessoal sobre tudo aquilo que não foi absorvido por ela. As natas são aquela nostalgia que se prende com a infância de cada um, a segurança ilusória e ilusoriamente perdida, a agregação do adjectivo “bons” aos “velhos tempos”, sem uma relativização dessa moral ("A infância gosta de filmes de época", começa um poema de José Miguel Silva). É por essa razão que os nostálgicos encontram a “grande qualidade” apenas naqueles textos que lhes chegaram numa zona rica de significância de aprendizagem das suas vidas. No caso da banda desenhada, por exemplo, dependendo da geração, são as revistas Cavaleiro Andante ou a Tintin, em detrimento de tudo o mais, sobretudo de uma abertura activa, crítica e expansiva sobre o presente. Mas a nostalgia positiva é aquela que nos é permitida em termos de revivência, mesmo de algo que não pertença à nossa geração e experiência individual, como bem aponta Jeet Heer (que tem mesmo um artigo sobre Seth e notalgia): ter saudades da Dublin dos anos 20 por ler Joyce, da Lisboa novecentista por ler Eça, da Paris dos anos 20 por a ler ou ver em representações (pouco importando quão fictícias, ilusórias ou mesmo falsas essas imagens possam ser).
Seth consegue criar este espaço confortável de umas estranhas saudades por algo que não pertence à nossa experiência (é claro que é bem possível que alguns leitores, nomeadamente pessoas mais velhas, canadianas, cosmopolitas q.b., tenham tido acesso ao ambiente retratado neste livro, mas estou em crer que se tratará de um público mais reduzido do que aquele que lhe é estranho; não obstante, todos os leitores – dado que apreciem o jogo - se unem nessa sensação positiva; mais, quem conhece as idiossincracias de Seth apontaria desde logo algumas das razões que o levam a esse “refúgio”). George Sprott trata da vida de uma obscura personalidade de uma estação televisiva local no Canadá, um homem que começara por se tornar famoso graças às suas viagens e aventuras (tardias, quando a aventura do século XIX se começa a dissipar e se torna mero fumo de fantasia) pelo grande norte polar, e depois explora essas memórias sob a forma de livros, “despachos”, conferências e, finalmente, um programa televisivo em horário nobre. Mas não nos concentramos somente na parte ocupada por esse trabalho, uma vez que nos são dadas a ver outras facetas da vida desse homem, assim como as opiniões ou perspectivas daqueles que com ele privaram.
O trabalho específico sobre a qualidade de fragmentário de Seth (irmanável, mas diferente, do de um Gilbert Hernandez, de um Dash Shaw, de um Clowes) continua aqui o caminho explorado antes em Wimbledon Green, tanto quanto a construção de um belo artefacto físico. O livro, em si, é um maravilhoso objecto. O seu grande tamanho transforma o acto de leitura numa experiência diferente na medida em que, como o último Kramer’s Ergot, nos remete a uma entrega física reminiscente à da leitura das páginas de banda desenhada dos antigos jornais norte-americanos, experiência renovada pela revista do New York Times, onde este título foi publicado em episódios soltos (vejam-nos aqui), antes deste novo e enriquecido formato de livro. Essa experiência da leitura das Sunday pages também não faz parte da experiência directa da maioria dos seus leitores, mas Seth consegue fazer retornar a ela, como se nos tivesse pertencido (o que é permitido igualmente, mas por outras razões mais físicas e circunstanciais, pelas edições de Little Nemo e Gasoline Alley da Sunday Press, já aludidas).
A estrutura do próprio livro, que advém dessa primeira vida num jornal e depois num livro em que se junta novo material, algum dele “incidental” (separadores, miras de televisão, paisagens, pequenas esculturas de papel representando os edifícios onde se dá a acção – com as quais montou exposições, como podem ver nesta fotografia [retirada da Wikipédia] - , as páginas centrais desdobráveis que se oferecem como uma espécie de poema aberto em banda desenhada, reminiscentes de algum trabalho de Porcellino, mas subsumidas à personalidade de Sprott) obriga-nos a leituras diferentes, não contraditórias mas complementares. Uma leitura, por assim dizer, microscópica (as unidades previstas pelas pranchas ou duplas pranchas individualmente, os episódios concretos) e macroscópica (a obra em geral, inclusive os termos daquilo a que se chama material extratextual, da capa às guardas – as miras referidas -, etc., o que já discutimos várias vezes como parte fundamental, no fundo, da leitura do texto, ou melhor, a sua reinscrição mais apropriadamente no texto e não na sua periferia).
Mesmo com a existência de um narrador externo à história, esta é uma figura pouco fidedigna: mais, essa voz chega mesmo a confessar-se como tal. É como se se apontasse sempre para um fenómeno, mas não se conseguisse prendê-lo a uma só interpretação, e não porque esta não seja possível, mas porque é deixando-a permanecer nessa flutuação que ela ganha os seus mais maravilhosos contornos. Aquilo que tornará mais famoso George Sprott será o programa de televisão intitulado “Northern Hi-Lights”, um jogo com a expressão “Northern Lights”, termo aplicado à aurora boreal. Esta imagem parece ser aplicável a todo o livro, o de Seth. A aurora é, explicando de um modo simples mas espero que não erróneo, luz presa na camada mais alta da atmosfera (a ionosfera). Um acidente temporal, uma pausa na sua tessitura. A sua explicação não erradica a maravilha que é, a sua definição científica não nos impede de nos perdermos na sua beleza. Tal como o estudo da estrutura de George Sprott não nos impedirá de regressar a ele as vezes necessárias para vermos a sua luz dançar de um modo diferente da anterior leitura. São essas memórias – do próprio Sprott, mas também das pessoas entrevistadas – a sobrinha que foi a última pessoa que o viu vivo, uma mulher que viu todas as suas conferências, colegas de trabalho, um coleccionador especializado, uma filha “bastarda” inuíte -, e ainda agregadas ao acesso que o narrador ou hiper-narrador permite aos sonhos, fantasias e medos de Sprott, que compõem a imensa “cortina de luzes dançantes” do livro.
Os episódios ocupam uma, duas páginas, no máximo três, ritmos interrompidos por imensas paisagens esquemáticas do grande norte canadiano, baseadas, quem sabe, no trabalho do ilustrador McDonald, sobre quem Seth trabalhara nas duas páginas da Kramer’s Ergot. Aliás, esta flutuação entre tratar de personagens reais (McDonald, mas também o seu trabalho de designer e editor em torno de artistas como Shulz, Doug Wright) e fictícias (Kalo, Wimbledon Green, George Sprott) contribui para essa ideia de nostalgia positiva, de recriação ou reinterpretação do mundo real: não se trata de criar uma ficção ou fantasia tout court, mas lançar sobre a realidade um manto de fantasia, mesmo que pouco diáfano.
As estratégias de Seth estão aqui num estádio apurado, empregando desde pranchas de uma estrutura simplícissima, linear, em que a repetição das “talking heads” e os seus discursos erradiam uma acalmia pouco comum nos nossos dias, e como que um respeito e atenção redobrado ao que estas persongens, pessoas, estão a dizer. Mas há também outro tipo de abordagens, como as de paisagens urbanas fragmentadas pela rede das vinhetas que não impedem porém uma imagem comum, e o texto fluindo por essa paisagem como as deambulações da tríade narrador-personagem-leitor (a página a que me refiro tem por título Life is but a dream [retirada daqui], e talvez seja a favorita). Estes outros tipos de “arritmia” levam-me a um outro termo de comparação que penso não ser totalmente desprovido de interesse. Uma das mais belas peças musicais de Glenn Gould, que não o seu Bach, é The Idea of North (de 1967, e chamá-la-ei de “peça musical” sem desculpas, apesar de ser oficialmente um documentário radiofónico). Trata-se de uma composição concreta que constrói uma paisagem sonora a partir da gravação de várias vozes de entrevistados que dão a conhecer as suas impressões de vida do “Grande Norte”, i.e., territórios de tundra usualmente inóspitos e duros. Enfim, temos acessos aos entrevistados e às suas “ideias do Norte”. A ressonância desta obra sobre George Sprott tem menos a ver com a estrutura narrativa, de vozes sobrepostas, uma forma contemporânea do moteto medieval, mas que mostra uma coincidência na forma da polifonia, na multiplicação das vozes para criar um cristal multifacetado que nunca é a simples soma das partes e cuja impressão necessariamente diferirá entre os leitores. É difícil seguir apenas uma das vozes na peça de Gould, mas também o é em George Sprott, pois apesar de existirem em unidades individuais (as pranchas, mormente na sua publicação original), o seu propósito é virem a ser integradas no livro em si, nessa rede de associações, num emaranhado e entreleçamento final, perdendo o valor individual, talvez, mas ganhando a vertente de... vertente propriamente dita, de uma figura maior. A qual serve para iluminar ou dar a ver George, de modos diversos. Repare-se como a decisão sobre a personalidade de Sprott muda conforme os testemunhos. Tratava-se de um homem interesseiro ou interessado? Um crápula calculista ou um amigo extremado? Um homem genuíno para com a vida ou alguém que apenas mereceria a nossa reprovação? No fundo, o que Seth pretende não é que os seus leitores tomem uma decisão, mas se apercebam da incomensurável multidimensionalidade do ser humano. Como afirmaram Gaiman e Pratchett no seu romance conjunto (Good Omens), o que define o ser humano não é o facto de se ser intrinsecamente bom ou intrinsecamente mau, mas intrinsecamente humano. E este George é-o.

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