No romance homónimo de Collodi, publicado em 1883, as primeiras palavras que se referem à personagem que irá ser conhecida por Pinóquio são “pezzo di legno”. Só quando esse troço de lenha, absolutamente utilitário e vulgaríssimo, está para ser cortado por mestre Ciliegia (e não Gepeto), é que a sua voz plagente se faz ouvir. Só depois de Ciliegia se aterrorizar com essa voz e tentar calá-la com violência atirando o pedaço de madeira contra a parede, é que se tenta livrar dele, através de Gepeto. Este entra no atelier do colega com a intenção de esculpir un “burattino”, um bonco articulado de madeira. Mas os dois marceneiros acabam à bulha, por Ciliegia gozar com Gepeto pela peruca deste, e por, ao tentar passar-lhe o tronco, dar-lhe uma pancada violenta nas mãos.
Se demoro algum tempo a descrever os dis primeiros capítulos do romance, deve-se ao facto de, como muitos outros romances da literatura infantil ou popular, ou de épocas mais remotas que acabaram por se verem sublimadas e reduzidas à mesma natureza – falamos das aventuras de Sherlock Holmes, dos livros de Verne, do sublime Quixote, do imenso Moby Dick, de Robinson Crusoé e Gulliver, de Frankenstein e Dracula -, o Pinóquio ser um daqueles livros que é pouco lido na sua forma original mas muito conhecido na sua mais elementar estrutura e episódios, sobretudo pelas muitas versões existentes. O que tem um resultado paradoxal: por um lado, acaba por desvirtuar a verdadeira natureza literária e moral da obra - o Quixote é um dos mais experimentais e pós-modernos avant la lettre, romances da literatura ocidental, Gulliver e Crusoé são magníficas obras da mescla entre ironia e sobranceira britânicas, Pinóquio é um livro de contornos negros -, por outro, as personagens ganham uma vida que é superior à dos livros que as viram nascer, encontrando extensões múltiplas pela imaginação dos seus herdeiros.
Se falo dos “contornos negros” desta história é porque, para além dos seus elementos mais fantásticos e feéricos (em si mesmos com idênticas raízes tenebrosas, de resto), esta personagem associa-se a ideias muto profundas da existência humana, que se relacionam sobretudo com o livre arbítrio e com o acto de criação divina que o homem tenta imitar, não apenas pelo acto de reprodução (os filhos, o filho que Gepeto deseja), como pela arte e a magia. Irmanar Pinóquio com outras personagens, como o monstro de Frankenstein ou o Golem não é displicente, como não o é ler à luz do magistral Sobre o teatro de marionetas, de Heinrich von Kleist. Uma interpretação recente nesta veia foi a da série de fotografias de Jorge Molder, apresentada no Chiado.
O que importa reter dos elementos do Pinóquio original, e destas últimas interpretações, para a leitura desta nova versão em banda desenhada de Winshluss é o facto de que a sua origem é meramente utilitária, que há um encontro feliz de um desejo (de Gepeto) anterior à circunstância de encontrar o troço de lenha encantado, e que tudo o que se segue é uma variação da “comédia (ou tragédia) de erros”. E, para mais, a da total ausência de desejo, paixão, vontade, enfim, arbítrio, da parte deste Pinóquio robótico: ele é somente movimento. É como se Winshluss quisesse regressar ao sinal e moral original da história, apagando todos (ou quase todos, como veremos) os resquícios deixados pela incontornável Disney, mas mantivesse o direito de explorar a sua própria variação, por mais radical que pareça.
Publicado em episódios ao longo de vários números da Ferraille Illustré, este Pinocchio trata da história de um pequeno robot, desenvolvido por um cientista, cujo emprego seria militar (e muito violento, como se vê nesta imagem dele em plena acção automática). Mas os enganos e malentendidos começam cedo, trazendo a morte, a miséria, a radical alteração da vida das personagens que com ele se cruzam, sempre para nosso gáudio. Indicar Winshluss como herdeiro do humor negro de um Franquin (ainda que não tão directa e sucintamente contundente) é dizer pouco.
Se este Pinóquio é, como dissémos, apenas movimento, só poderemos esperar uma imensa cinética neste livro, reminiscente da ontologia primeira da banda desenhada, quando pensada na sua forma moderna por Topffer (sobretudo o seu Monsieur Pencil, totalmente amoral, completamente cinético). Aquele que esperaríamos ser a voz da consciência, o Grilo Falante, se o é, é-o de um modo muito diferente do que se esperaria. No romance original aparece somente num capítulo e, curiosamente para aqueles que apenas conhecem a versão Disney, acaba logo esborrachado pelo próprio Pinóquio, “tutt’infuriato”. É o filme animado norte-americano que o torna o detentor da moral a guardar. Winshluss retira-lhe esse papel; aliás, retira-lhe todos os papéis numa relação directa à personagem principal. O Jiminy Cafard do autor francês é simplesmente um inútil, com apetências literárias mas sem talento nem disciplina, que vive de expedientes e artimanhas, e se aproveita dos outros como pode, entregando-se porém a longas diatribes, fantasias e devaneios megalómanos. Nalguns momentos, perguntamo-nos se não é utilizado de quando em vez pra servir de auto-paródia do próprio autor. Ainda que revele, num momento ou outro, algum rasgo de inteligência (como quando lê um trecho de Dostoievski e, esmagado pela citação, destrói a máquina de escrever e desiste), ele serve sobretudo de representação dos “derrotados da vida”, a quem passa o lado a fantasiosa aventura levada a cabo ou em torno do Pinóquio, dentro de quem vive. A interpretação é clara.
Se na versão da revista as suas pranchas tinham um tratamento primário de cor, na versão do livro surge sempre em material a preto-e-branco. A sua relação com o Pinóquio robot deve-se tão-somente em que que faz da cabeça deste o seu novo lar. De resto, todas as acções são paralelas e se existem pontos de contacto, é sempre de um modo indirecto, que não afecta a não-aliança directa entre ambas as personagens.
Aliás, essa é mesmo a estratégia narrativa de Winshluss, lançando alternadamente várias sub-tramas com as muitas personagens que vão surgindo, que se podem entretecer no texto maior mas nunca de modo imediato. Um exemplo dessas relações nota-se nesta “splash page”, com o pai-inventor de Pinóquio no tonel flutuando nas águas, sobre ele o dirigível levando Pinóquio noutra direcção, e sob as águas o Montro radioactivo que o engolirá mais tarde... Outros elementos sobreviventes do filme Disney é o episódio passado na “Ilha Encantada”, espécie de mescla entre as Disneylândias e pequenos reinos autónomos tardo-feudalistas em que esperamos ainda golpes de estado sucessivos para substituir ditadores uns atrás dos outros. Mas Winshluss, como havia experimentado noutros dos seus trabalhos (Welcome to the Death Club ou Pat Boon, este último publicado entre nós pela Polvo), e aqui, com mais espaço, aproveita para beber de várias fontes e registos, géneros e estilos, para os misturar nesta composição heteróclita. É como se a personagem principal e a sua história geral servissem para poder revisitar toda uma série de pequenas obsessões: histórias de capa e espada, de terror, policiais, de ficção científica, eróticas, panfletos religiosos, versões abjectas de contos infantis famosos ou de fábulas dickensianas, críticas à guerra e às religiões e à estupidez congénita dos humanos. A própria capa parece ser um símbolo desse jogo de cruzamento de referências. E se há um final feliz, em que Pinóquio se torna também um “filho querido”, apenas se promete que o seu movimento jamais irá parar: enquanto objecto imparável, não é o fim de uma história a sua barreira imóvel.
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