Estando presentemente a elaborar um pequeno ensaio em torno da obra, já considerável, quer em termos de proficuidade quer em termos de linhas de força de significação, este texto pretende apenas tecer umas breves notas soltas, dando conta ao mesmo tempo, sobre as duas últimas publicações acessíveis: o terceiro número, de quatro, da Ufoja Lahdessa, pelo seu próprio selo editorial, de que já havíamos falado aqui, e a edição francesa de De la viande de chien au kilo, pela consagrada Frémok.
Cada vez mais, a cada nova leitura, parece ser-nos confirmado o facto de que estamos perante uma forma nova de trabalhar a autobiografia, uma forma de trabalhar a autobiografia que a mescla à ficção, à auto-ficção, ou até mesmo à fantasia, provocando aquele sentimento do estranho familiar a que aludiramos anteriormente. As informações que nos permitem pautar estes trabalhos como “autobiográficos” (sobretudo as curtas histórias de UL, com as personagens Alien e Graterwoman¸mas De la viande... não deixa de se apresentar de um modo similar) são, na verdade, externas ou intuídas, já que não ocorre aqui o que Phillipe Lejeune chamara de “pacto autobiográfico”. Mas essas informações, esses elementos, esses indícios, externos ou não, concorrerão para a ideia de que apenas considerando essa interpretação permitirá um maior grau de desvendamento - mesmo que este jamais seja total (impossível, naturalmente, como a qualquer obra de arte que o seja profunda e verdadeiramente).
Tomemos De la viande de chien au kilo. Aparentemente, trata-se tão-somente da história de uma personagem feminina, Liisa, uma cadelinha, e de toda a sua família alargada. A forma, as cores, o ritmo, poderão fazer-nos pensar que se tratará de uma pequena rábula, infantil talvez, na mesma linha de um Scarry, Renier. A sua leitura, revelando pequenos episódios de um quotidiano muito próximo do nosso, vulgar, poderá fazer-nos aproximar de Wiggert. Mas a consideração de todos os elementos num corpo coeso leva-nos um pouco mais longe. As criaturas de toda a narrativa são animais, os mais variados possíveis (numa secção especial ao fim do livro, sobre os combates de luta livre de Kalevi, primeiro marido de Liisa, ele luta com vários adversários, de passarinhos a polvos gigantes, passando por cetáceos pré-históricos, leva às mais díspares combinações de tamanhos e forças), mas é como se fossem copiados de bonequitos da Playmobil ou algo do género, não por remeterem à infância, não somente por serem uma reapropriação da cultural popular (costumeira em Turunen, como se sabe), mas por serem inexpressivos. E é essa inexpressividade destas figuras que as torna estranhamente familiares, e as torna tão precisas para a a-plasticidade da reconstrução da memória familiar. Pois estamos em crer que Turunen, nesse livro em particular, elabora aquilo que David B. havia feito em L’Ascension du Haut Mal: uma altero-biografia dos seus antecedentes.
Mas o desvio que Turunen provoca – a distância que rompe a existência de um pacto autobiográfico ou que nos permita aceder a essa realidade familiar real, a inexpressividade das suas personagens, já de si “reapropriadas” de outros universos referenciais, da cultura popular ou de sub-géneros ficcionais ou de modas – leva a um desarranjo algo incómodo.
De certa forma, Turunen recorda-nos aquilo que vemos no trabalho de outros autores de outras áreas criativas, por exemplo, a fotografia de Gregory Crewdson. É claro que em Crewdson dá-se uma encenação complexa e rica, procura-se o pormenor límpido e a profundeza de campo, uma claridade trabalhada, e nos desenhos a preto-e-branco, quase xilogravados, brutos, de Turunen não existem as mesmas regras plásticas. Mas o que encontramo em ambos é esse pequeno e inanalisável, inquantificável desvio da realidade, ainda que saibamos dizer que esse desvio se dá; são imagens que olham para ambientes e paisagens vulgares, quase medíocres, por vezes povoadas por acções vulgares, mas focado de um modo tão preciso, tão intenso, que nos tornamos maravilhados perante o seu brilhantismo.
É como se, através das suas estratégias (que esperaremos desenvolver, como dissémos ao início), Marko Turunen quisesse, e fosse capaz, de transformar o ordinário no extraordinário e depois retorná-lo ao ordinário. O trabalho dele é feito de várias camadas, mas sem que elas se relacionem de forma hierárquica. Essas camadas entrosam-se umas nas outras, elaborando uma tessitura una, complexa. Tanto se pode entendê-la de um modo como de outro, como pertencendo a este género como àquele... Em certa medida, é em si mesma um ovni de banda desenhada.
Resta-nos cartografar os seus movimentos.
Nota: agradecimentos ao autor, pelo envio e oferta dos livros. Kiitos!
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