22 de setembro de 2009

Abstract Comics. Andrei Molotiu, ed. (Fantagraphics)



A banda desenhada é entendida de vários modos, ora procurando a sua matéria de expressão na peculiar relação provocada entre o texto e as imagens, ora sublinhando-se a sua qualidade intrínseca da sequencialidade, ora buscando um significado inanalisável que emerge das relações “invisíveis” dos espaços intervinhetais... A questão é que, não sendo a banda desenhada uma arte determinada tecnologicamente como a fotografia ou o cinema, é porém, como elas, filha de um momento na história (mais ou menos dilatado, conforme a atenção e interesse do investigador, que pode cristalizar uma “origem” no advento da imprensa, numa particular técnica de impressão – a autografia de Töpffer - ou mesmo de distribuição – os jornais norte-americanos, etc.) que a torna associada a uma qualquer tecnologia por contiguidade. E, logo, ela nasce no seio da sua própria experimentação, não podendo reportar-se a séculos de práticas que se vejam como norma, clássicas, modelares. Vejo-a, portanto, como uma disciplina que se vai desenvolvendo com uma negociação que lhe é própria, atravessando crises particulares, encetando caminhos específicos, intentando variações mais ou menos felizes e com continuidade que lhe ampliam a circunferência. Há experiências que, tendo sido fulgurantes em termos de sucesso crítico e comercial, não tiveram continuidade real, como a obra de McCay ou de Herriman, exemplos maiores (e também poderíamos apontar a de Gustave Verbeek, cuja importância na história tem sido relativamente pertença dos especialistas, o que se corrigirá talvez com a recente edição do seu trabalho). Ou a de Martin Vaughn-James, de quem o livro The Cage abriu uma porta para algo que não pode ser caminho de outrem. Algo muito diferente, portanto, do que aconteceu à arte de um Saint-Ogan ou de um Hergé, por um lado, ou de um Canniff, por outro. Todavia, aquela falta de continuidade não pode constituir nem um problema nem sequer algo criticável, já que em qualquer campo criativo os artistas que atingem uma linguagem “demasiado” única não pode deixar herdeiros (a título de exemplo, quem poderia querer carregar um projecto como Finnegans Wake sem se ocultar na sombra de Joyce, ou explorar os caminhos de Stan Brakhage ou Michael Snow sem parecer um epígono?).
Nada disto obsta a que não encontremos, por um lado, um “experimentalismo”, que só pode surgir na continuidade de normas e modelos e cânones que se vão formando ao longo da história de um meio, de uma arte, razão pela qual me apoio na ideia da narrativa histórica, de Noël Carroll, para encontrar princípios definidores da banda desenhada – é essa narrativa que permite não só não legislar no absoluto, como recontar um determinado percurso que levou a uma particular obra de arte. Sem esse recurso contextualizador, existem obras de arte “ultrapassadas”, “não vale a pena olhar para trás”, ou continuam sem se perceber os gestos de Duchamp, Len Lye, Richter, Cage, Beuys, Snow, Brakhage, Joyce, Vaughn-James, Klimowski... o que seria ridículo. É essa narrativa histórica que nos permite ver, então, alguns autores como experimentais e outros como clássicos (mesmo que tenham inventado novas estratégias visuais, ou fundado uma “ideia”, fundaram também a sua continuidade, diluindo esse gesto único).
Por outro lado, e de um modo paradoxal, é o que também nos ajuda a criar uma “tradição”, nas palavras de Andrei Molotiu, o editor desta antologia que aqui discutimos, uma continuidade de trabalhos aparentados por uma qualquer perspectiva, mesmo que se entenda que essa continuidade não é mais do que uma ilusão, visto que os autores trabalharam relativamente separados e, muitas vezes, com desconhecimento uns dos outros. Na verdade, é aqui que funciona o conceito de Wittgenstein do “ar de família”, permitindo englobar num mesmo descritor vários elementos. O editor elegeu um punhado de princípios e, seja como for, está informado não só por ele próprio ser um cultor e estudioso deste “tipo” de banda desenhada (no seu blog, blotcomics) como também por conhecer a rede de autores que têm trabalhado este território, “rede” permitida pela internet.
Usualmente, quando se começa a procurar este tipo de trabalhos, há como que um movimento de espiral em expansão que, ao longo de todas as linhas de fuga que o “ar de família” permite, se começam a abarcar trabalhos que são aparentados com o seu vizinho, mas que à medida que o movimento se expande e os exemplos se multiplicam, já nada têm a ver com o ponto de partida. Por essa razão, Molotiu exibe, não tanto um conjunto de regras cristalizadas, mas algum método de trabalho, um princípio, para que nem tudo possa ser encontrado no interior do seu gesto editorial. Por exemplo, sempre que se verifique somente um problema de figuração, isto é, em que as personagens são representadas através de formas ora geométricas ora abstractas mas tudo o resto se mantém num programa claro de narrativa, texto, etc., não fará parte do campo abstracto (imagino que um bom exemplo sejam as variações de Tatanka, de Felipe H. Cava e Raúl, publicado entre nós na Quadrado, Vol. 3, no. 1). Ou então quando existem dissoluções de todos esses parâmetros, mas se mantém um qualquer grau de legibilidade, iconicidade, referencialidade, etc., que evitam uma sua leitura abstracta (como acontece, penso, com T.N.T. en Amérique, de Gerner).
O editor estava interessado em procurar uma diferença de natureza, e não de grau. Interessava-lhe um certo aglomerado de ausências: ausência de trama narrativa, ausência de representação nas imagens, ausência de “um espaço diegético unificado”, como disse numa entrevista. Têm de ser, portanto, independentes das projecções dos leitores-espectadores, ou das suas intenções, questão que pode assumir contornos muito complexos. Basta recordarmo-nos das quantidades de manchas de bolor ou de humidade no mundo que são “vistas” como o rosto do Cristo...
O texto de introdução é uma breve mas excelente acção de desenhar um círculo amplíssimo da “pré-história” deste campo de trabalhos. Molotiu engloba na sua introdução o trabalho de “ilustração infantil” (quão redutor parece ser esta aplicação) de El Lissitzky, Suprematicheski Skaz (traduzível, pelo que entendo, por “Sobre dois quadrados”, ou “A história de dois quadrados”, e consultável, na íntegra, julgo, aqui, apontando para a facilidade das tais projecções de características animadas (previstas ou mesmo desejadas no trabalho do construtivista). Um nome que confesso me era desconhecido até agora é o de Kurt Kranz: as suas experiências gráficas, sob a forte influência dos filmes de Walter Ruttman e Hans Richter, e de acordo com Molotiu, poderá ter influenciado Kandinsky e Klee, seus professores na Bauhaus, em alguns trabalhos pontuais destes que mostram a ideia de sequência, de divisão do plano de composição em planos menores (isto é, uma “prancha” com “vinhetas”) e tendo a ideia da metamorfose das figuras “abstractas” no seu seu interior. É bem possível que venhamos a encontrar mais material deste artista graças à força da inércia provocada pela edição deste livro, e até mesmo num eventual segundo volume de trabalhos desta natureza, que se adivinha possível, dados os esforços de concertação e produção de novos trabalhos que o livro e o blog-companheiro, no qual mais material dos autores antologiados se apresentam, desencadearão.
O primeiro trabalho da antologia propriamente dita é a famosa história de Crumb, “Abstract Expressionist Ultra Super Modernistic Comics” (senão sob a influência directa dos efeitos provocados pelo LSD, pelo menos tangencial, irónica até), a qual inclui letras, figuras não-abstractas, mas que não obstante não coalescem num sentido, digamos, consensual. E é para essa dissolução que os restantes trabalhos caminham.
Os interesses de Molotiu, enquanto professor de História de Arte, especialista em Fragonard e pintura caligráfica chinesa, artista de desenho/pintura caligráfica, de banda desenhada abstracta (além de expôr o seu trabalho e publicá-lo, uma antologia do seu trabalho saiu pela dinamarquesa Fahrenheit: Nautilus), escritor assémico, etc., convergem todos nesta antologia. Quando descreve o trabalho de Gary Panter, ele explica que quase se vê “a imagem a emergir na existência, ou a desaparecer num traço puramente gráfico, ou a formar-se numa figura”. Enfim, é esta ideia que Molotiu persegue noutros locais, e que poderemos entender como uma espécie de fundo em que todas as formas ainda não o são, de onde elas partem e para onde elas retornam, plano para o qual estes trabalhos abrem e nos permitem, mesmo que transitoriamente, como deve ser, observá-lo de modo quase directo.
Apesar de alguns dos trabalhos aqui reunidos terem o princípio da metamorfose na sua base, como o Bleu de Trondheim (neste antologia apenas um excerto de duas páginas) , por exemplo, estes trabalhos obrigam-nos a ver, mais do a ler: aponta-se para uma atenção óptica, abre-se para a ideia de contemplação (mais próxima das artes visuais clássicas). Estará a noção de “abstracção” em contrasenso com a ideia da sequencialidade, que alguém viu como em oposição a simultaneidade? O problema está novamente na tal falta de integração histórica. A simultaneidade ocorre em muitos trabalhos de banda desenhada, e algumas pranchas de Fred, de J. H. Williams em Promethea, de Verbeek, levantam essas questões no próprio seio da legibilidade sequencial... Tal como nas capicuas visuais de Escher, há uma potencialidade de delinear um percurso, mesmo que este seja infinito e todas as suas partes sejam passíveis pontos de entrada e de saída (dessa mesma leitura).
Pierre Fresnaut-Deruelle, no seu seminal artigo “Du linéaire au tabulaire” institui como que dois pólos de leitura da banda desenhada, os quais, na verdade, são empregues sempre, de modo cumulativo, concomitante, e intercalado na leitura de qualquer trabalho. Mesmo num livro dos Estrumpfes, por exemplo, ninguém força o globo ocular a não se mover e apenas ver/ler a primeira vinheta da página da esquerda, e depois mover-se controladamente para a seguinte, e assim sucessivamente. Impossível: o acto natural é que o olho varra a dupla prancha, vogue por todo o espaço de representação num ápice (os movimentos sacádicos) e depois então se centre na unidade de leitura (a vinheta, as figuras, as letras, os signos, etc.). Nunca está o olho desligado da actividade cognitiva, mas os graus de atenção são muito diversos e complexos: podemos estar a ver sem ler (mas nunca a ler sem ver. Nota pessoal: este espaço esteve para se chamar *erbd, em que “*” seria uma letra que pudesse ser lida quer como “l” quer como “v”; mas não foi possível).
As contribuições em Abstract Comics criam uma condição de possibilidade da leitura tabular, ou sacádica, ou contemplativa, mais do que a linear: sobretudo nos trabalhos de Warren Craghead III, Andrei Molotiu, Richard Hahn, Henrik Rehr, Patrick McDonnell (conhecido dos portugueses pela série Mutts, mas que tem trabalhos mais experimentais), e outros. O trabalho de Trondheim ou de Mike Getsiv ou de Andy Bleck não, pois as figuras que os compõem têm características formais que apontam à existência de metamorfoses internas, ou seja, a continuidade de pelo menos um eixo sobre o qual essas metamorfoses operam (e sobre as quais é mais fácil fazer projecções antropomórficas). Por essas razões, Derik Badman (também na antologia) considerou o Bleu de Trodheim como um trabalho “minimalista” e não “abstracto”. Depois temos os trabalhos de Bill Shut e de Mark Staff Brandl, os quais, apesar de menos “morfológicos” que os de Trondheim et al., nos fazem imaginar numa qualquer progressão espacial, um deslocamento do eixo de visão em relação a um objecto, ou um comportamento mental do género (o trabalho time Lapse Growth, de Bill Shut, pode até fazer-nos recordar as óperas místico-siderais de Ditko e Starlin), ou os de Mark Gonyea e Alexey Skolin, em que a ideia de progessão visual é por demais clara.
A meu ver, apesar de ser possível uma visão distraída, desordenada, “livre” (a qual também é possível com qualquer obra de arte, mesmo a mais figurativa, mesmo a mais narrativa, e até mesmo englobando a pura distracção que ocorre quando lemos um romance e nos apercebemos estar a percorrer as letras mas não a ler, ou quando a nossa mente nos impede de ver um filme e nos leva a qualquer lado) em relação a algumas destas pranchas, a própria existência de uma estruturação obriga-nos a incorrer nesse mesmo princípio de organização e estruturação (aparentado, se quisermos, com a ideia de sequencialidade, de temporalidade e até de causalidade). De certo modo está próximo de uma ideia apresentada por Neil Cohn a que este dá o nome de “sistema de navegação” de uma prancha de banda desenhada, e Molotiu de “dinamismo sequencial”, o qual não se relaciona directamente com a estruturas narrativas ou os princípios sequenciais a que estamos habituados como seus descritores, mas sim a “padrões preferenciais” de leitura. Existem alguns estudos nas ciências cognitivas para descrever cada vez melhor e mais exactamente o comportamento óptico-cognitivo na leitura das pranchas de banda desenhada, mas este assunto entrelaça-se com assuntos que provêm igualmente de áreas como a estética, a psicologia visual, a semiótica... enrolando-se num só bolo que estes trabalhos vêm, a um só tempo, complicar e expandir. Logo, o gesto em si é desde logo positivo. Um dos trabalhos do próprio Molotiu incluídos é “The Panic”. O próprio título parece ser uma atitude algo zombeteira da sensação que poderá provocar naqueles que querem apenas verbalizar a sua interpretação de um modo claro e absolutamente desprovido de problemas.
Numa discussão em torno precisamente deste livro, e qual a direcção a que “abstracto” nos poderia levar, a questão acaba por se centrar no “significado”, o qual, como vimos, pode ser mais projectivo do que inerente ao objecto em si. Por essa razão é que recorrer ao sistema semiótico das tríades de Peirce se torna pertinente. Este sistema é mais articulado do que o de Saussure, englobando, sempre, o interpretante, para dar conta da relação “imposta” que poderá surgir entre o símbolo e o significado. Quando olhamos para uma nuvem, esta não tem qualquer intencionalidade de comunicação (o que a coloca fora da relação simbólica de Saussure), mas a verdade é que nós vemos nela por vezes uma forma similar a um qualquer objecto (a forma de um país, um animal), projectando nela esse significado. No caso dos trabalhos desta antologia, isso pode ocorrer de modos mais ou menos conduzidos pelas próprias características objectivas que apresentam. De novo buscando o exemplo de Trondheim, ou os de Ibn al Rabin: é óbvio que eu irei projectar conceitos na minha “leitura” destas manchas; ainda que elas tenham uma forma “abstracta”, eu encontro na relação sequencial entre elas ideias de mistura, cruzamento, consumo, transformação, conflito, etc., ainda que todas elas não sejam mais que metáforas para tentar descrever o que vejo, e não descrições objectivas dessas mesmas acções representadas (se forem "acções"). Neste caso em particular, portanto, ou pelo menos no que me diz respeito enquanto leitor individual, estou a projectar características não apenas animadas - em objectos não só inanimados como sem qualquer movimento (são manchas de linhas e cor no papel, nem sequer se trata de uma animação) – como até antropomorfizadas, ou animal-morfizadas, querendo encontrar traços do comportamento animal nessas manchas.
Claro que a própria premissa da abstracção remete a todo um espectro de potencialidades não-figurativas, representantivas, formais e possibilidades de interpretação que, à partida, se tornam um obstáculo inamovível à sua tipologização. Mas se estamos a querer falar de trabalhos abstractos no campo da banda desenhda, temos igualmente de considerar quais as características da banda desenhada que se mantêm: a ideia, por mais fantasmática que seja, da sequencialidade; os balões (mesmo que nada tenham dentro, ou que apresentem elementos visuais e/ou gráficos não-simbólicos); as palavras (ainda que o editor tenha explicado que elas têm um valor visual ou pictural antes de tudo ou exclusivamente); as composições de página com múltiplas vinhetas que nos façam pensar numa estruturação relativamente clássica.
Voltando a Peirce, e ao adjectivo “assémico” que anotámos a propósito da escrita de Molotiu (e outros autores, reunidos na antologia Asemic Magazine, editada por Tim Gaze, também presente em Abstract Comics), poderemos perguntar-nos se são de facto “assémicas” estas bandas desenhadas. Em primeiro lugar, é necessário entendermos assémico como significando menos “não ter significado” do que “não possuir signos socialmente acordados” (que tenham de atravessar por um qualquer processo de assimilação social, consensual, processo de educação). No entanto, é necessário um pequeno desvio.
Estendida ao campo da biosemiótica (seguimos aqui um escrito de Thomas Sebeok), existe uma condição taxativa nestas relações que nos interessam: não pode existir semiose sem interpretabilidade. Semiose, segundo Peirce, é a acção do signo, ou o processo do signo: há uma relação (triádica) de causa-meio-efeito ou codificação-veículo-descodificação, como por exemplo (dado por Gérard Deledalle) um oficial militar dando uma ordem aos seus soldados (evento A) os quais interpretarão essa ordem (evento B) para que possam cumprir a ordem (evento C). Para Peirce a palavra “signo” não era simplesmente algo que está em lugar de algo (para alguém, sendo este último pormenor a grande distinção em relação a Saussure), mas que ganhava duas acepções, uma através da semiose, que acabámos de apresentar sumariamente, e outra através da sua noção de representamen. Esta é, segundo a definição no Century Dictionary, um “objecto que serve para representar qualquer coisa na mente”. Apesar da complexidade desta distinção, talvez o exemplo do próprio Peirce ajude a esclarecer parcialmente a questão: “quando consultamos um mapa, o próprio mapa é o Veículo [primeira perspectiva formal sobre o representamen: a substância da representação], o país representado é o Objecto Natural [segunda perspectiva: o quasi-agente da representação], e a ideia desencadeada na mente é o Interpretante [terceira perspectiva: o quasi-paciente da representação, ou a modificação intelegente da representação]”.
Tendo em conta ambas as acepções de signo para Peirce, como poderíamos começar a descrever estes “abstract comics”? Têm ou não conteúdo semântico? Sugerem ou não ter significado? Pertencem ou não a um qualquer código ou sistema socialmente aceite? E, por fim, são ou não “banda desenhada”? As respostas não são simples. Estas bandas desenhadas – parto de um pressuposto positivo - são veículos que desencadeiam nas nossas mentes uma qualquer ideia, mas não encontramos qualquer objecto natural consensual (correndo o risco de errar ou de provocar uma interpretação errónea, penso estarmos perto do que Kant chamou de “efeito dinâmico” da nossa procura do entendimento do belo, a sua “imagem flutuante”: em que percebemos um objecto mas não o seu fim/fito). Elas provocam uma semiose (são causa, e provocam efeitos pelo meio dos trabalhos), mas é como se essa interpretabilidade não pudesse ser partilhada do modo mais comum. Provocando um “qualquer significado”, não nos permitem porém aceder a “signos socialmente aceites”. São, portanto, assémicos naquele sentido “aberto” previsto pelos seus cultores. É óbvio que a associação a certos elementos “clássicos” da banda desenhada, como os balões ou a estruturação em vinhetas, nos farão pensar em termos de “comunicação” e de “progressão”.
Todas estas questão serão respondidas, ou desafiadas, melhor dizendo, por todos os trabalhos aqui reunidos. As diferentes técnicas – tinta no papel, aguarelas, lápis, lápis de cor, colagens, manipulação digital, desenho minimal, “patchwork”, traços mais “cartoony” (os de Kochalka, inevitavelmente) -, aliadas às diferentes estratégias e presenças dos elementos “da banda desenhada” nesta variação farão pensar, por um lado, num progressivo diluir de qualquer determinação formal em relação a esta arte (aproximando-a, portanto, de disciplinas artísticas mais livres, conceptuais, onde importa mais o gesto que, por exemplo, o talento, o virtuosismo, o domínio técnico), e, por outro, na emergência fantasmática de uma ideia que os une (o nome: “banda desenhada abstracta”), mas que é, em última instância, irredutível a algo analisável directamente. Não podemos esquecer também dos modos de produção de alguns destes trabalhos: Molotiu, por exemplo, recorre à destruturação progressiva de um qualquer elemento dado (um quadro de Pollock, uma vinheta de Josie and the Pussycats ou de Tony Millionaire, uma prancha d’A Pequena Lulu, uma fotografia de uma modelo, um desenho do filho, etc.), ou a um progressivo “descascar” e subsequente “reformar” até se atingirem os estados paradoxais de articulações de elementos desarticulados. Outros autores neste livro procedem da mesma forma, sendo ora relativamente fácil ora totalmente impossível percebermos quais as fontes (o que, se nos apercebemos, se torna significativo na sua apreciação/interpretação, se não nos apercebermos, não é factor dissuasor dessa mesma apreciação/interpretação). Haverá trabalhos sobre os quais tenho uma preferência diferente, como os de Molotiu, de quem aprecio mais significativamente os trabalhos a preto-e-branco (e que tive oportunidade de mostrar/editar na Divide & Impera, com Warren Craghead III), mas este é um território em contínua expansão (vejam-se os novos trabalhos animados de Molotiu no seu blog), logo, toda a nova perspectiva é-o francamente.
No entanto, gostaria de encontrar uma maior discussão – não necessariamente no seio do próprio livro, mas na sua recepção crítica – em termos de como estes trabalhos, quer os históricos quer os inéditos (alguns dos quais quase criados “de propósito” para a antologia), se vêm agregar a um conjunto mais alargado do “experimentalismo na banda desenhada” que encontramos junto a outros sectores ou estratégias de criação, como, por exemplo, exemplo esse bem visível e de recepção elevada, aqueles trabalhos que encontramos na Frémok (o conjunto dos últimos livros colaborativos e transdisciplinares de Fortemps, Hasselt e Deprez, de que falámos a propósito do artigo deste último na Art & Fact para eles apontam). Ou então que papel poderá eventualmente a banda desenhada ocupar num espaço de divulgação que não o impresso: nos "white cubes" ou mesmo nas "black boxes" dos espaços museológico-galerísticos: como se poderá contrastar entre a exposição comissariada por Molotiu, Silent Pictures, e a Vraoum!, que insiste numa forma de aproximação às "Belas Artes" que considero menos propícia ao avanço da discussão necessária, se necessária ainda (?) junto ao "grande público".
Abstract Comics não se abstrai, então, dessa discussão.

5 comentários:

  1. olá, Pedro.

    obrigado para sua revisão detelhada.

    você sabe os poemas visuais criados pelo movimento brasileiro do poema/processo?

    os livros Poemics & 12X9 para Álvaro de Sá incluem a língua do « metacomics », ou as bandas desenhadas abstratas.

    por exemplo, http://www.imediata.com/BVP/Alvaro_de_Sa/index.html

    (penso que o título correto é « Poemics », não « Poetics ».)

    é emocionante que a antologia de Fantagraphics está recebendo a atenção internacional.

    saudação,

    Tim Gaze

    ResponderEliminar
  2. Olá, Tim,
    Não sabia que falavas português. Obrigado pelas palavras. O Andrei pediu-me que traduzisse o artigo para inglês e é o que farei brevemente.
    Não conhecia o projecto do Álvaro de Sá, e parece-me ser uma excelente adição à procura...
    Obrigado!
    Pedro
    P.S. Tim Gaze está também presente na antologia, e é o editor da Asemic Magazine.

    ResponderEliminar
  3. Onde se pode comprar?

    ResponderEliminar
  4. Caro anónimo,
    Aconselho a perguntar em primeiro lugar nas lojas especializadas de banda desenhada em Portugal. Passando a publicidade, tente a Bdmania ou Mongorhead Comics, ambas em Lisboa, a Dr. Kartoon em Coimbra, ou a Mundo Fantasma no Porto, sendo aquelas com maior catálogo em permanência (mas há mais lojas). Caso não consiga aí, sempre tem as livrarias online, sendo a Amazon apenas a mais conhecida.
    Boa sorte,
    Pedro Moura

    ResponderEliminar
  5. Excelente artigo! Boom!

    ResponderEliminar