Recentemente, um dos mais influentes académicos norte-americanos contemporâneos, Charles Hatfield, autor do fundamental Alternative Comics: An Emerging Literature, colocou no seu blog um breve estado da nação dos estudos de banda desenhada no seu país, texto que seria complementado pelas considerações de um outro autor importante, Joseph Witek, que assinou o igualmente fundamental Comics as History, explorando as bases expostas por Hatfield. São textos de leitura obrigatória para aqueles que se interessam pelo desenvolvimento sustentado e balizado do estudo da banda desenhada. Contudo, não é nosso propósito responder aqui aos desafios desse texto (houvesse competência para tal), até porque ele se cinge à situação dos Estados Unidos, circunstância muito particular, com as suas regras de integração e progressão académica, edição, divulgação, etc. Importa, porém, notar como alguns dos problemas apontados por ambos os autores – o facto de que cada nova obra “fundamental” parece ter de “reinventar a roda”, e ter de criar todo um novo balanço geral para poder coligar a esfera da banda desenhada com aquela da disciplina em questão pelo novo autor, a não-consolidação de um vocabulário ou um conjunto conceptual coerente, o facto de que a profunda e real transdisciplinaridade do campo, apesar de se constituir enquanto característica positiva, surge como obstáculo de diálogo noutros sectores académicos - se expressa por uma questão relativamente visível, que é a fragmentação dos discursos desse país, não havendo propriamente uma coalescência desses discursos entre si, quer dizer, em que um novo estudo venha completar, complementar, responder ou colocar em causa um outro, criando-se uma malha relativamente apertada de referências, o que acontece de facto na Europa francófona (e, mais recentemente, graças aos trabalhos de Ann Miller e de Matthew Screech, incluindo autores anglófonos). Neste outro mundo, a diferença está em que se instituíram uma mão-cheia de autores fundamentais e influentes (Lecigne, Fresnault-Deruelle, Groensteen, Peeters, Lefèvre, Baetens, Morgan, entre outros) que se respondem uns aos outros, fazendo emergir uma verdadeira massa crítica (em nada homogénea ou cristalizada). Um estudo apresentando por Pierre Huard em três números da Critix, “Questions de Méthode” (de que espero dar notícias atempadamente), apresenta um contraponto a estes textos dos americanos – se bem que Hatfield e Witek estejam a falar dum “como” e Huard de um “que” –, apresentando-se não só como um brevíssimo historial dos discursos academizantes sobre a banda desenhada em língua francesa, mas também como a formação do seu próprio campo.
A comparação com Portugal não seria sequer possível, dada as nossas deficiências gravíssimas neste sector, não obstante as tentativas de um par de pessoas e o trabalho, muitas vezes ingrato, dos investigadores que batalham nesta área: salvas excepções, não existem publicações específicas, não existem centros de estudos organizados, não existem instituições eficientes ao seu apoio, não existe um discurso concertado, não existe gravidade, surgindo muitas vezes tentativas ad hoc (e até “haddockianas”), não existe sequer um interesse mais generalizado por esses assuntos. A questão insistente de Witek, “E depois?” é um excelente instrumento para ponderarmos sobre este assunto.
Dito isto, essa malha apertada nota-se praticamente em qualquer publicação de contornos minimanente académicos em língua francesa que se dedique à banda desenhada (nem sempre, porém). Nota-se, por exemplo, na leitura das notas de rodapé e listas bibliográficas dos artigos deste número especial da Art & Fact, aliás, “Revue des historiens de l’art, des archéologues et des musicologues de l’Université de Liège”. Apesar da aparente não-relação imediata entre essa revista e o tema deste número, os artigos aqui reunidos respondem de facto a preocupações sérias e trabalhos desenvolvidos no quadro de discursos anteriores, não havendo espaço para “redescobertas” ou “apresentações”. Como se reparará pela capa, porém, não se trata somente de uma revista dedicada à banda desenhada, mas sim a um prisma muito particular, o da norma e transgressão, suas relações, como a segunda responde à primeira, ou como a primeira se consolida em relação à segunda, que negociações existem, etc.
É nesse prisma então que surgem estudos sobre o conceito do “herói” na dita “banda desenhada realista da idade de ouro”, por Albert Barrera-Vidal; sobre o modo como a “linha clara” de Hergé se tornou uma espécie de “grau zero” da legibilidade da banda desenhada clássica, e como as variações no seu no seu interiorHergHerg, classicizantes com Juillard e meta-referenciais com Marc-Antoine Mathieu, a fazem expandir, por Jean-Louis Tilleuil; sobre esse pólo de tensão e negociação na banda desenhada japonesa, em que as regras se quebram de modos bem diferentes daqueles do Ocidente, por Edit Culot; pelo modo como a banda desenhada de temática homosseual, nos Estados Unidos, partem de uma base de transgressão para, por vezes, criarem um paradoxal campo de conformismo, por Jean-Paul Jennequin; sobre os modos de edição na Bélgica, por Floriane Phillipe; e sobre experiências ou autores específicos que são interpretados ou estudados à luz das noções tema desta publicação: Jean-Claude Forest (por Harry Morgan), a série Donjon (Björn-Olav Dozo), o livro Buscavidas, de Trillo e Breccia (um brevíssimo mas surpreendente estudo sobre um estranho exercício de censura, por Aarnoud Rommens), o T.N.T. en Amérique de Jochen Gerner (por Gert Meesteers), o projecto Match de Catch à Vielsam, da Frémok, entre autores de banda desenhada e pacientes mentais de Hasse (por Erwin Dejasse), a revista belga do fim do século XIX Caprice-Revue como espaço de experimentação desta área então ainda em formação (por Frédéric Paques). Ainda inclui uma longa entrevista a Dominique Goblet, uma importante autora contemporânea de que já falámos aqui a propósito de Faire semblant c’est mentir, de uma sensibilidade verdadeiramente contemporânea (por Pascal Lefèvre, parte de uma entrevista vídeo que já havia apresentado num número da Relief), e um pequeno escrito de Olivier Deprez sobre as suas práticas performativas do desenho, ou de colegas como Vincent Fortemps e Thierry Van Hasselt, em projectos de colaborações transdisciplinares (envolvendo a coreografia, animação, desenho ao vivo), que levaram a livros tais como Blackbookblack, Barques e Heurex, Alright!, de cada um desses autores respectivamente, na Frémok.
Como é de esperar, alguns destes artigos são mais pertinentes e acabados do que outros, mesmo quando abordam autores aparentemente conhecidos, como Forest, ou séries que parecem não encerrar potencialidades de reescrita de todo um posicionamento estético e comercial, como Donjon, e alguns deles têm uma capacidade de actuação mais limitada, como o artigo sobre a produção japonesa: contudo, todos fazem, em conjunto, uma circunscrição acabada das duas noções intrinsecamente ligadas – norma e transgressão -, e mesmo assim permitindo a múltipla leitura dessas mesmas noções, conforme a contextualização em que são encontrados e estudados.
A edição da revista foi acompanhada ainda de dois outros projectos complementares. Um foi a edição de uma espécie de portfolio de Dominique Goblet. Contudo, não tendo comprado esse projecto, apenas podemos imaginar o prazer perdido. O outro trata-se de um pequeno livro que reune trabalhos anteriormente publicados e inéditos de Benjamin Monti, Ruminations, criando-se um objecto coerente – a própria ideia de “ruminação” aponta para um retorno a materiais anteriores para a sua reestruturação - , ainda que em torno de experimentalismos formais, narrativos e figurativos que surgem como um desafio à interpretação. Encontrando, em termos figurativos, ecos tanto de autores clássicos como Jean-Claude Servais como de mais independentes como Romain Slocombe ou Chantal Montellier, o que Monti nos oferta é uma espécie de alegoria em torno da violência e da morte, numa narrativa cujos experimentalismos indicados desenham um sentido mais elusivo do que cumulativo nos seus efeitos de recepção.
Nota final: agradecimentos a Isabel Baraona, por me ter colocado na senda desta publicação.
20 de setembro de 2009
Art & Fact no. 27 (A&F)
Para mais informações e compra, ver site da instituição.
Publicada por Pedro Moura à(s) 3:53 da tarde
Etiquetas: Academia
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