Uma das primeiras frases do recente e magnífico As praias de Agnés, filme-testemunho, filme-memória, e tememos mesmo que filme-testamento de Agnés Varda (mas no qual não há qualquer sombra trágica, bem pelo contrário, apenas uma imensa algeria de partilha), a realizadora diz acreditar que, se pudéssemos abrir as pessoas, paisagens se revelariam. No caso dela, revelar-se-iam praias. Os leitores de Baudoin entenderão de imediato estas palavras através das imagens concretas das cabeças abertas dos protagonistas das duas Voyages. Neste último livro do autor francês, L’Arleri, há uma passagem na qual o protagonista, narrador e representante do autor, diz acreditar que “cada ser humano é como um país. Mexe-se, transforma-se, torna-se, mantendo o seu saco de instrumentos musicais que lhe foram legados pela sua história e a sua geografia”.
Mas apesar de logo a seguir se apresentar uma pequena tentativa lista de vários instrumentos, nos quais se inclui a voz, a voz humana que tanto serve de ponte como de condição de possibilidade da sua própria incomunicabilidade, como o demonstra a famosa peça-libretto de Cocteau com esse nome, Baudoin parece reduzir o seu país, o seu território, a sua voz mesmo, com este livro. A abertura das personagens parece fechar-se, lentamente, em torno de uma mesma nota, insistente. L’Arleri poderia ser descrito como uma revisitação, típica do movimento de eterno retorno em Baudoin, de certos temas que lhe são caros: temos a relação do pintor e da sua modelo, o acto de sopesar o passado, revendo nele a história pessoal da conquista humana, questões de arte do desenho, e as relações entre os homens e as mulheres. O protagonista é um velho artista, centenário, que durante uma tarde, ou várias coalescidas numa só, vai pintando um retrato, numa tela, da sua jovem modelo, juvenilíssima, quase pubente, em que a sexualidade parece estar ainda a despontar, mas é já gloriosa. Esta questão é importante, como veremos. Este velho é Baudoin, e esta identificação não faz parte da nossa interpretação, mas é fruto de exposição no próprio livro. E aquela modelo tanto poderá ser a companheira actual de Baudoin (a jovem Céline Wagner, com quem já colaborou em dois títulos), como as suas modelos todas numa só, como a ideia de mulher. Esta questão é também importante, como veremos. O velho conta à jove, enquanto pinta, ou mesmo quando mudam de papéis, a sua história, as suas conquistas amorosas, a sua busca pelo significado profundo do amor, do sexo, do que é ser-se vivo e ser-se artistas. Estas questões são igualmente importantes.
De certa forma, o que Agnés tenta com o seu filme, e qualquer autor com a sua obra, é fazer desenrolar as paisagens que levam dentro de si, dos modos como a conseguem formar. Baudoin, até à data, é o que faz, sejam essas paisagens geograficamente palpáveis – as paisagens provençais da sua infância, a montanha e o caminho do seu pai, agora seu, em Saint-Jean, as do Canadá dos seus anos de professor – sejam elas de viagens mais imaginárias ou momentâneas – as das Voyages, as de Crazyman, de Travesti – sejam ainda as que se desenrolam ao longo de todas elas e penetram na sua memória pessoal, nas suas experiêncis, nas suas actividades de artista. Em Le Portrait, um outro artista velho que ocupada o espaço de Baudoin desenhava um mural que era uma paisagem feita de pessoas, e um buraco branco mantinha-se, para ser ocupado pela “vida”. Viria a ser ocupada por uma modelo feminina, claro está, que abriria um outro buraco no artista, uma falta...
Este livro parece concentrar-se sobretudo nas questões das relações entre homens e mulheres, entre o amor possível entre os dois, entre as formas de o expressar, forma superna a da sexualidade. Mas se os gestos do artista/protagonista/Baudoin se revelam aqui capazes de alguma beleza formal, nas formas vermelhas das aguarelas que ultrapassam os contornos que haviam sido prometidos pelas linhas do pincel, pelas composições com fotografias, pelos desarranjos dos mapas dos corpos das personagens, pela quase ingénua e infantil escolha das cores, a sua política, o seu propósito temático, é algo empedernido.
Baudoin sempre teve uma faceta algo soixante-huitard em relação às questões do sexo. A sua atitude de que “amar uma mulher é amá-las a todas”, a eterna insatisfação face à conquista de uma só mulher, a desiquilibrada e sempre irrespondida questão do equilíbrio e mutualismo entre a expressão do amor através do sexo e a fidelidade sexual, ou a capacidade e possibilidade de poder amar mais do que uma pessoa, sempre se apresentou como uma característica menos forte na sua obra. Em L’Arleri é explorada de um modo totalmente descoberto, se a protecção de outros temas ou uma outra história que a tornassem numa faceta: ela é a própria superfície em que se estrutura este livro. E tudo o que daí advém: a dicotomia entre a pulsão tanática do homem versus a capacidade de amor universal, maternal da mulher; as diferenças entre as atitudes sexuais entre uns e outras; a alegria de ver as mulheres a conquistar um espaço social e económico na sociedade mas uma tristeza em vê-las a adoptar os comportamentos masculinos e não a “se tornarem mais mulheres/femininas”, e as consequentes generalizações (o “Eterno Feminino”) que a isso se associam...
O título parte do nome que o protagonista recebia enquanto jovem – projecção ou não, autoficção ou menos, do autor – , uma espécie de pardal da Provença, não só por ser um pássaro que, segundo se acreditava, fazia amor em pleno voo, e que serve de leit motiv para os encontros amorosos neste livro, mas também porque “tinha o cérebro pequeno”. Ainda que essa alcunha seja fruto de zomba, na infância, o jovem adopta-o como exercício de auto-derisão. Mas faz-nos retornar à questão do início, das cabeças fechadas, e já não abertas perante as paisagens que ainda faltam desenrolar pela vida fora. Baudoin tem hoje 67 anos, e a questão da idade tem-se notado surgir nos últimos anos, em que o autor se entrega a maiores balanços. Mas L’Arleri, se faz esses voos de retorno, faz também um voo curtinho, de saltinhos de pássaro mesmo, preso a questões que por mais que queiram dar espaço à expressividade e à liberdade feminina, acabam por se parecer mais como uma projecção de um desejo – “como gostaria que as mulheres fossem assim” – do que um real retrato. No fim do relato de quase 100 páginas (menos exactamente uma), depois do velhote artista ter vogado pelas suas memórias, e ter dado o seu lugar de pintor à sua jovem modelo, tomando o lugar dela de modelo, e depois dessa modelo ter sido capaz de o pintar, ao velho enrugado, com beleza (repescando uma perspectiva do modo como as linhas representam os rostos jovens e os velhos, em Questions de Dessin), ela declara-lhe “Agora vais escutar-me, porque também sei contar histórias”. E o livro termina. Contudo, era exactamente nesse momento, como aliás Baudoin o confessa noutros livros, noutras experiências, que essa voz verdadeiramente “outra” se iria escutar, que o voo do pardal se tornaria mais belo.
Nota: capa tirada da net.
20 de setembro de 2009
L’Arleri. Edmond Baudoin (Gallimard)
Publicada por Pedro Moura à(s) 4:10 da tarde
Etiquetas: Autobiografia, França-Bélgica
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