29 de setembro de 2009

The Toon Treasury of Classic Children’s Comics. Spiegelman e Mouly, eds. (Abrams)


Há, neste livro, duas linhas que se juntam. Por um lado, há aquela linha a que demos o nome de “recuperação da memória” a propósito de estarmos a viver num tempo em que há uma particular atenção pela possibilidade de fazer aquilo que, na banda desenhada, passaria por “edições críticas” (ou “diplomáticas”). Se bem que sempre existiram gestos de manter acessíveis toda uma série de “clássicos”, havia como que ou um número fechado pelas editoras com capacidade de fazerem um trabalho sustentado, de qualidade material e com visibilidade, ou então uma atenção mais ampla mas com instrumentos editoriais mais limitados (neste último campo, poder-se-iam falar das edições de Manuel Caldas, entre nós, os The Nemo Booklets of Classic Comics). Mas agora, quer nos Estados Unidos quer em França (em Portugal, gestos tímidos) há toda uma massa de edições de obras completas, de arquivos, de antologias mais arqueológicas, que se unem ao “empacotamento” e à divulgação para fabricar tomos mais condignos. Por outro lado, a segunda linha é uma inversão curiosa. Já lá iremos.
Art Spiegelman e Françoise Mouly, como se sabe, são os grandes responsáveis pela revista Raw, um projecto editorial nova iorquino cuja primeira série atravessou os anos 80, e num formato gigante - e a segunda série, até ao início dos anos 90, menos portentosa, mas não menos importante -, e cujos conteúdos eram igualmente portentosos. Aliavam-se os gestos do underground, do post-punk, do new wave, do post-post e mais uma mão cheia de movimentos heterogéneos e transdisciplinares da época, os experimentalismos formais de Spiegelman, a sua lenta e dolorosamente produzida auto-e-alterbiografia Maus, traduções para inglês de autores fundamentalmente contemporâneos de outros países (Tardi, Masse, Tsuge, Mariscal, Muñoz, Swarte), repescagens de autores antigos e/ou esquecidos (Herriman, Fletcher Hanks, Doré), e uma bateria de autores que marcariam as épocas a vir (Panter, McGuire, Ware, Sala, Sikoryak): tudo isto contribuía, de uma forma indelével, para o que foi baptizado, nos Estados Unidos, como a chegada da “idade adulta” da banda desenhada (para o que concorreriam também as fantasias de ultraviolência de Frank Miller e as distopias cruas de Moore). [Curiosamente, em França a banda desenhada tornou-se “adulta” por volta dos anos 60 através da introdução do erotismo... o que nos poderia levar a uma dicotomia entre Guerra/Amor, E.U.A./Europa, se isso nos levasse a algum lugar... não leva]. A frase “Comics aren’t for kids anymore!”, numa quantidade de artigos jornalísticos ou de blurbs em livros, tornar-se-ia um pavilhão tantas vezes hasteado que o pano se começou a desfiar... A “inversão curiosa” está no facto de que Spiegelman e Mouly, sendo responsáveis pelo apoio e emergência dessa nova atitude aberta, adulta e cosmopolita perante a banda desenhada e a ilustração (Mouly enquanto directora de arte da New Yorker, grande farol da ilustração internacional), que levaria ao aparecimento de novos caminhos na criação e edição desses campos – de que a recente antologia Abstract Comics pode ser um possível corolário -, surgem agora com esta apresentação de uma antologia que reza na contracapa: “Comics: not just for grown-ups anymore!”.
Claro está que teríamos de revisitar mais uma vez a história da banda desenhada em termos globais e internacionais, em que se poderia falar da sua emergência junto a um público adulto, nascendo da caricatura política e social, do círculo de edição dos jornais ilustrados e que apenas paulatinamente foi sendo arrestada pelo mundo infantil, de que os anos 30 a 60 (dos dois lados do Atlântico) foi a, sobejamente repetida, “Idade de Ouro”. Há, portanto, um consenso em relação a esse período como uma época particularmente gloriosa em termos de presença e importância no mercado junto às crianças, levando a que todo o meio, toda a linguagem, todo este modo de expressão, passasse a ser confundido com apenas um sector dos seus leitores, de um modo pouco comum noutras áreas da criação.
Toon Treasury faz uma colheita dessa lavra imensa – como se pode depreender por esta fotografia incluída, de um típico stand de comics na altura - para re-apresentar alguns trabalhos. Nesse sentido, e ainda aliado aos gestos contemporâneos de recuperação, está próximo de antologias como a Art Out of Time, por exemplo, mas mais ainda dos esforços de editoras tais como a Dark Horse, com a colecção da Little Lulu e as séries dedicadas às personagens da Harvey Comics, ou a Drawn & Quarterly que foca sobretudo na obra de John Stanley, com vários dos seus trabalhos menos famosos entre nós. Algum do material que corresponde à colheita desta antologia teve passagem por Portugal, sobretudo pelas mãos das brasileiras Abril e Ebal, mas as únicas coincidências são precisamente as histórias da Luluzinha e companhia (poderíamos apontar o Supermouse, mas as histórias publicadas no Brasil não correspondem nem à fase nem ao estilo do que se encontra em Toon Treasury). De alguma forma, esta antologia é similar ao curioso título balbuciante A Smithsonian Book of Comic-Book Comics, publicado em 1981, que pretendia ser um retrato antológico de um certo estado da nação no que dizia respeito a esse formato em particular (ainda que Toon Treasury seja maior, isto é, mais próximo do formato original dos comics-books de então, maiores do que os actuais) – e contraponto ao monumental Smithsonian Collection of Newspaper Comics.
Para nos atermos à escolha de Spiegelman e Mouly, que adiantam de um modo claro as balizas do seu projecto – em termos cronológicos, de público-alvo, de géneros, e editoriais – poderíamos desejar ver uma mais ampla escolha que, não obstante o valor dos autores presentes, tivesse dado uma maior atenção a outros materiais que fossem mais difíceis de obter por via de outras fontes (basta olhar para os títulos para criar vontades). A título de exemplo, e ao círculo da Disney, e ainda que em detrimento de Barks, ter olhado a Tony Strobl, Jack Bradbury, Bill Wright, ou às histórias de Bucky Bug. Mas essas ausências não podem ser vistas como entrave, já que estas considerações não são críticas, mas generalistas... Aprende-se muito com Toon Treasury.
As histórias incluídas de Barks (uma das melhores que conheço: “Tralla La”/“Paraíso Perdido”) e de Stanley (sobretudo as com Irving Tripp, cujo estilo gráfico é o mais reconhecido do público português; aqui inclui-se “Five Little Babies”, presumo eu que igualmente reconhecida) são sobejamente conhecidas, e continuamente revisitadas em algumas colecções. Mas descobrem-se aqui outros trabalhos de Stanley, não apenas Melvin the Monster, mas um fabulosamente geométrico cão chamado Jigger; muitos trabalhos de Walt Kelly, o qual seria reconhecido pela versão “adulta” de Pogo, enquanto alegoria e sátira política, na esfera da banda desenhada de fantasia, de animais, infantil; o trabaho de George Carlson, que havia sido incluído nas antologias da Smithsonian e Art Out of Time; uma série comovente de Sheldon Mayer, Sugar and Spike; Dennis the Menace em versão banda desenhada, numa genial história sobre linguagem, de Al Wiseman e Fred Toole; Intellectual Amos, de André LeBlanc, uma personagem que parece derivar da quantidade assombrosa de “personagens-criança de cabeças carecas gigantes”, i.e., bebés actuantes, mas que envereda por territórios de didácticas estranhas; histórias de uma página só de pura parvoeira, com Burp, The Twerp, de Jack Cole (sim, o autor de Plastic Man); um não menos idiota e divertido Nutsy Squirrel, por Woody Gelman e Irving Dressler; um pessoalmente preferido: a história em banda desenhada, escrita pelo famoso Dr. Seuss e ilustrada por Phil D. Eastman, de Gerald McBoing Boing, dos famosos desenhos animados da UPA. E muitos outros.
As secções que organizam o livro poderão ser esclarecedoras: “Hey, Kids!”, mostrando sobretudo histórias em que são as crianças as protagonistas das aventuras; “Funny Animals”, que penso ser claro o suficiente; “Fantasyland”, que aponta para todo aquele universo de referências dos contos tradicionais ou de fadas; “Storytime”, em que se procura uma maior concentração da estrutura narrativa mais alargada, e conturbada; “Weird and Wacky”, reservada àquelas peças em que a liberdade figurativa e narrativa é total. No entanto, muitas das personagens citadas acima encontram-se espalhadas em várias categorias (Intellectual Amos, Donald Duck, Little Lulu), e alguma delas estão desde logo abertas à recolocação (não poderemos ver os patos de Barks como “funny animals”, de uma perspectiva?).
Alguns autores - ou mesmo histórias - conhecidos de outras esferas encontram-se nesta antologia, o que traz uma nova perspectiva sobre esses mesmos trabalhos: para além de Jack Cole, salientem-se Harvey Kurtzman, com três pranchas do Hey, Look!, uma história do Capitão Marvel de C. C. Beck e Pete Constanza, que mostra os perigos do Surrealismo, Basil Wolvertoon, com algumas das suas horrendas Foolish Faces e uma história de Powerhouse Pepper, e o vaudevilliano Milt Gross, com Patsy Pancake.
Os trabalhos reunidos aqui criam um corpo comovedor, divertido, louco, suave, como a melhor banda desenhada infantil pode eventualmente ser. Se ela é, também, uma forma de entretenimento – sendo um veículo, uma forma de arte, pode transportar o que lhe for possível – nada disto obsta à sua apreciação mais ampla. Mas nenhum destes exemplos é delicodoce e, mesmo quando parece estar a construir-se um discurso pedagógico (como nas histórisa de Intellectual Amos), o desfecho é totalmente caótico. A linha que dá continuidade a estes pequenos espectáculos gráficos e de narrativas screwball encontrar-se-ão nas histórias do “Louco”, de Maurício de Sousa, na série Sardine de l’Espace, no programa Yo Gabba Gabba!, nos desenhos animados de John Kricfalusi.
Este livro não ensina a atravessar a rua na “zebra”. Ensina-nos a cavalgá-la para caçar semáforos.

1 comentário:

  1. Antonio del Castillo9:23 da manhã

    Dear friend
    I'm trying to contact you from Dolmen Editorial in Spain. Could you send me your e-mail to dolmen@dolmeneditorial.com

    thanks in advance.

    Best regards

    Antonio del Castillo

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