Introdução. No programa Verbd (ep. 1), António Dias de Deus afirma que, de um ponto de vista marxista, o qual nos obrigaria à determinação da perspectiva por factores ou critérios materialista-dialécticos, sócio-económicos – os quais se consubstanciam pelo facto da banda desenhada ser apregoada como jornais e “lida pelo maior número de pessoas e a preço barato” - a “Idade de Ouro” da banda desenhada se compreende pelos anos 1940. Consequentemente, essa ideia serve para contrastar com a produção contemporânea, entendida como “elitista”, “só para os apaixonados da banda desenhada”. Em detrimento das “massas”, as quais têm hoje muitos outros veículos de entretenimento, a leitura deste modo de expressão passa a ser apanágio de uma “classe elitista”. Estas afirmações foram feitas num determinado contexto que pautam as palavras do historiador, e não podem ser criticadas em si, redutoramente. Não obstante, numa outra ocasião já afirmei, na continuidade de outros investigadores, que creio estarmos a viver num tempo que, se economicamente não tem comparação com a glória dessas décadas recuadas em que a banda desenhada era um veículo de cultura popular muito disseminada tanto nos grandes pólos de produção ocidental (França e Bélgica na Europa e Estados Unidos da América) como em países periféricos como Portugal, em termos de libertação e amplificação da própria linguagem, estamos em claríssima expansão. José Carlos Fernandes chegou mesmo a falar da “Idade do Pechisbeque” para se referir ao tempo em que vivemos, e não sem as suas razões claramente expostas. Mas ainda assim, poderemos encontrar as facetas positivas das transformações em curso. (Mais)
Por outro lado, o investigador teórico norte-americano Neil Cohn, no seu The Visual Language Manifesto (a partir de cuja leitura elaboraremos alguns pontos neste texto), fala da necessidade da divisão das palavras para tornarmos claro o discurso que se pretende, operando assim um afastamento entre a “banda desenhada” (comics) enquanto o complexo fenómeno sócio-cultural (e económico, editorial, político, etc.), e a sua valência enquanto veículo ou instrumento de expressão, para a qual remete a um outro termo, que Cohn propõe seja o de “linguagem visual”. O seu propósito é que se separe, por um lado, aquilo que existe e é confundido pelo grande público com a sua produção mais comercial, histórica, etc., e, por outro, a arte (na sua acepção mais técnica, como poderíamos empregar “literatura”, “teatro” ou “filme” noutra circunstância). Cohn não usa a palavra “arte”, pois ele vê essa palavra como dizendo respeito a uma terceira discussão totalmente diversa da anterior. Tem a ver com um juízo de gosto, uma valorização estética que pode ou não ser atingida por este objecto em particular, mas não outro. Tal como existem muitos filmes que não atingem uma leitura ou valorização “artística”, também a banda desenhada – é sobejamente conhecido – terá produção que não atinge, nem o deseja atingir, esses círculos “artísticos”.
Ou seja, teríamos aqui um sucessivo desdobramento do complexo a que damos como “banda desenhada” numa sua dimensão sócio-económica (os objectos, os seus modos de produção e distribuição, o seu papel e presença na História, etc.), numa dimensão verdadeiramente estrutural e objectiva (a “linguagem visual”, constituída por toda uma série de características analisáveis: por exemplo, as vinhetas, a composição de página, a sequencialidade, o uso ou não do balão de fala, uma certa relação entre texto e imagem, etc.), e finalmente numa dimensão artística (apenas analisável num contexto concreto e empregando instrumentos de juízo de valor fundamentados, ainda que sempre, necessariamente, subjectivos).
Esta não é uma realidade fácil de compreender, penso, mas certos sectores procuram elaborar complementos a essa discussão e construção. Penso mesmo que encontramos uma curiosa tendência contemporânea dessa divisão, isto é, a assunção da “linguagem visual” (ou, se preferirmos, “as estratégias visuais mais reconhecidamente como de banda desenhada”) passível de ser usada com os mais variados fitos e propósitos sócio-culturais (que não apenas o do entretenimento, ou sequer da expressão mais estética), em total separação do círculo ou campo social que “o mundo da banda desenhada” cria. Quando pensamos no “campo da literatura”, sabemos que existe uma produção tão vasta que é impossível querer dominá-lo por completo, e que se o estrutura através da sua subsequente divisão noutros tantos círculos (literaturas “locais” ou “nacionais”, por géneros ou temas, públicos, etc.). A banda desenhada talvez tenha sofrido de uma certa ausência dessa amplitude, não obstante as excepções e muitas experiências havidas, mas lentamente alarga-se para esse entendimento.
Penso que encontraremos dois movimentos contrários mas não contraditórios nesta questão. Isto é, movimentos que serão eventualmente opostos nas suas estratégias e fitos absolutos (se é que os há), mas em que ambos concorrem para essa dissolução da suposta “homogeneidade” da banda desenhada (que é, também e sempre, independentemente de festivais, encontros, gostos ou até mesmo blogs como o presente, ilusória).
Em primeiro lugar, temos aquela banda desenhada que procura empregar a “linguagem visual” para os mais variados fins, que podem ganhar uma dimensão narrativa e/ou expositiva, e cujas preocupações maiores não são a “qualidade” artística (seja visual ou literária, seja implicada). Os exemplos que se esboçam nesta parcela do território são os de Alissa Torres, que aqui se discutirá, Oishinbo, de Tetsu Kariya e Akira Hanasaki, e Learning from comics on the wall, de Damian Duffy (v. texto sobre Oishinbo). Em segundo, temos aquela banda desenhada que explora não só a máxima capacidade do meio (a banda desenhada enquanto medium) para a expressão da visão ou ensejos dos autores, como procura fazer desencadear um qualquer processo de experimentação, progresso ou reinvenção do próprio meio. São muitos os exemplos neste campo, tendo nós já passado por alguns autores como os irmanados no Divide et Impera, em Abstract Comics, e numa série de três livros da Frémok que discutiremos atempadamente.
Nessa primeira parcela, surgir-nos-ão os livros que não nascem do gesto de um artista de banda desenhada, mas de alguém que sentiu a necessidade de contar algo (um “conteúdo”) e procurou um meio para o fazer, tendo escolhido o da banda desenhada, mas sem se ter entregue a questões profundas das especificidades e potencialidades desse meio, ou procurar intergrar-se numa certa tradição estética do meio, ou sequer da sua história. Apesar de estarmos em crer na profunda relação inalianável de o que se diz do como se diz na figura do seu modo, sabemos que existem intâncias onde esse divórcio pode ocorrer, ora por incompetência dos autores (sobejos casos existindo), ora por uma qualquer discrepância de qualidade de um dos seus domínios, ora por se tratar deste emprego mais prosaico da “linguagem visual” para um fito diferente daquele do “circuito” ou “meio da bd”...
Isto não quer dizer que não seja possível descobrir algum grau de beleza nestes trabalhos, simplesmente as regras de construção não são as mesmas. Podemos apreciar um filme de Pedro Costa e um anúncio de televisão; a utilização de planos de filmagem digital é uma coincidência técnica, mas o espírito que preside cada um desses projectos é abissalmente díspar, e se os mesmos instrumentos perceptivos são empregues (olhos, ouvidos, cérebro, etc.), não se poderão empregar os mesmos instrumentos de juízo estético, ou incorreremos no risco do ridículo.
Septembre en t’attendant é a tradução francesa do original norte-americano American Widow (editado pela Villard), um relato na primeira pessoa de Alissa Torres, viúva de uma das vítimas do atentado às Torres Gémeas na cidade de Nova Iorque, em 9 de Setembro de 2001. O título original, além de tornar o mais claro possível o seu objecto, coloca o livro lado a lado a muitos outros das secções de “auto-ajuda”, “testemunhos reais”, “identidade americana”, etc. A tradução francesa parece querer soltar-lhe uma outra leitura, mais poética, mais pessoal, e por essa razão a coloca lado a lado de outros livros, na colecção Écritures, sobre a qual já discorremos anteriormente (há, portanto, como que um gesto de “correcção genérica” da parte da Casterman). Que o livro é a “voz” de Alissa Torres torna-se ainda mais claro ao notarmos que o nome da artista que o desenhou, Sungyoon Choi, surge na capa americana à frente de “art by”, como que sublinhando a subsunção dela à “voz”, e é totalmente omitido na francesa (surgindo na contracapa: “mise en images par”...). Não se trata, portanto, de um projecto de dois artistas (por exemplo, David Soares e Pedro Nora, Neil Gaiman e Dave McKean, Uderzo e Goscinny, independentemente do grau de colaboração ou estratégias de produção) mas de um projecto de Alissa Torres que contou com o apoio, com a competência e veículo de Sungyoon Choi para a sua elaboração. “De x com y”, e não “ de x e y”.
Não há grandes surpresas no tipo de discurso que se desenvolve aqui. Trata-se de um relato de alguém sofrido por uma dor intransmissível, e cuja amplitude apenas pertence a quem a tem. As dores não são comparáveis, logo não há qualquer “compreensão” possível. Mas Torres não se entrega a uma qualquer “pornografia” da dor. Há momentos em que revela que o amor pelo seu marido colombiano, Luis Eduardo Torres, é frágil, ou corre mesmo o risco de terminar; noutros mostra alguma distância das outras “viúvas” que não têm problemas de se expor à atenção mediática em seu torno (Alissa evita-o, mas este mesmo livro é uma outra maneira de o conquistar, ainda que filtrado somente pela sua “voz” e os desenhos da sua colaboradora); é crítica o suficiente face à atitude geral das autoridades e do governo; não se entrega à auto-comiseração e apresenta mesmo episódios em que se mostra resistente, forte, autónoma e contrária à imagem que outros desejariam de si. Mas há largos momentos em que mostra os sentimentos “feios” dos outros, mesmo os seus amigos próximos, em relação à sua situação, sobretudo as compensações económicas advindas da tragédia.
Sobre toda esta camada, aquilo que faz a história e a matéria de Septembre en t’attendant, vem-me à memória um verso de Bécquer (cito de cor, com todos os perigos inerentes): “se sentes, não escrevas”. Isto é, creio profundamente na intransmissibilidade real da dor, e a utilização de quaisquer instrumentos “artísticos” para a sua transmissão acabam por apenas nos servir uma circunstância de constrangimento. A transformação de emoções profundas em arte é rara e quando ocorre é necessariamente um gesto original (no sentido de “origem”, de criar algo nesse momento e naquele local). Na banda desenhada, isso é matéria de discussão – veja-se Journal d’un album, de Dupuy e Berbérian, quando o primeiro autor, depois de uma discussão com os colegas sobre “ritmo” e “verdade” na banda desenhada, apresenta a vida e a morte da sua mãe. E pense-se em David B., Chester Brown, Jeffrey Brown, Brian Fies, Alison Bechdel, Al Davison, e tantos outros para aceder aos vários graus da emoção que tanto voga entre a comiseração e a construção da arte. Ou em Harvey Pekar, magistral com uma brevíssima história sobre o cheiro do pão acabado de fazer, sofrível e sofrido em Our Cancer Year. Um tema humanamente movente não faz uma obra de arte movente (e estas podem nascer das mãos de um crápula).
Não é a leitura de Septembre en t’attendant, porém, nenhuma espécie de obstáculo à Sísifo. Há uma progressão narrativa clara, um propósito para demarcar a sobrevivência emotiva de Alissa e do seu pequeno filho para além da morte do pai, a capacidade em visualizar a morte de Luis Eduardo em todas as suas possibilidades, aceitando-as como passíveis de serem certas, mesmo que jamais ela possa escolher a exactidão dessa morte.
Curiosamente, há uma menção, de fugida, ao cartoon de Ted Rall “Terror Widows”, que causou alguma polémica quando foi publicado, e subsequentemente retirado, do New York Times. Não há qualquer demora no trabalho de Rall (e apesar de eu o incluir aqui, ele não aparece no livro), o qual, ainda para mais, é visto da perspectiva de um dos seus (usuais) gestos hiperbólicos que tantos inimigos criam. Se é citado, isso deve-se ao facto de Rall ter levado uma desconfiança ofensiva – a de que os familiares, sobretudo as viúvas, das vítimas se aproveitaram das mortes dos seus para aceder a fundos financeiros e apoios que não teriam de outro modo – a um patamar ainda mais vasto do que aquele que a autora debatia. Mas é a única menção a um trabalho da mesma “linguagem visual” pela qual Torres optará para dar a ver a sua história e perspectiva. Não deixa de ser curioso de termos uma menção a um artista cujo estilo é relativamente tosco e até feio, as cujos propósitos políticos são vistos como radicais nalguns sectores norte-americanos. A artista, Choi, tem um desenho relativamente competente, nalguns momentos recordando Tomine (na sua fase mais verde e na figuração estática apenas), sabendo transmitir algumas metáforas visuais sentidas por Torres, elaborando as cartografias emocionais, reminiscentes, de prazeres e angústias, etc., mas nunca sem conquistar o grau de experimentalismo e/ou de progresso que tornaria esta obra num outro tipo de objecto. Aliás, tal como ocorre em A Valsa com Bashir, os autores sentiram a necessidade de complementar o relato, no fim, com imagens “reais”, fotográficas. Ou melhor, não como um complemento, mas sim uma confirmação de realidade, ou mais, da verdade do relato.
O que apenas reforça, mais uma vez, continuamente, na leitura deste livro menos como uma obra de banda desenhada do que um relato que usa a banda desenhada para se concretizar.
Nota: agradecimentos à Casterman, pela oferta do livro.
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