Nota inicial: continuação de uma discussão iniciada no post anterior.
Esta é uma das séries de maior sucesso de banda desenhada no Japão, junto a um público mais adulto, tendo sido publicada a partir de 1983 numa daquelas grandes revistas de uma circulação imensa (Big Comic Spirits, numa corruptela do inglês) e que já foi reunida em mais de 100 volumes. Tratando-se de uma premissa relativamente simples – seguimos um jovem jornalista em busca da “Ementa Perfeita” para o aniversário do jornal em que trabalha, pelo que visitamos restaurantes, mercados, aprendemos técnicas de culinária, de preparação dos alimentos, cortes (as facas são fulcrais) e arranjos, segredos de tempero, modos de decoração e preparação visual das refeições, e toda uma bateria de ínfimos pormenores associados ao prazer mais subtil da degustação total – as narrativas acabam por se desdobrar para o que é mais importante: conselhos, lições, segredos, desvendamentos. Como é que um mesmo peixe (a sua espécie) pode ter sabores diferentes graças à época, largura de um rio, tipo de água, e presença de musgos; a diferença entre uma solha de olho à esquerda e outra de olho à direita.
Como não pode deixar de ser, para tornar a narrativa mais palatável, entrosa-se esta saga culinária com a da melodramática vida do protagonista, Yamaoka Shiro, a conturbada relação com o pai, o relacionamento com aquela que se tornará sua mulher, os ses colegas, amigos, etc. A relação com o pai é pautada pelo “pavio curto” que impera sobre os dois, o que faz com que entrem em conflitos rapidamente sempre que se encontram, discussões em torno da mais profunda essência da cozinha, que ultrapassa as melhores técnicas, os melhores ingredientes, e até mesmo a espectacularidade com que se opera na cozinha (leitores de Proust maravilhar-se-ão com as estratégias da culinária para despertar viagens no tempo e na memória das personagens). E, claro, o próprio Shiro age como todos aqueles heróis típicos do “hard boiled”: fala pouco, mas quando o faz é seguro e certeiro, tenta não agir mas quando o faz é pelo bem dos outros, e sempre que dispara acerta no alvo. Todas essas metáforas eventuais funcionam na perfeição na cozinha, e é isso que é demonstrado em cada episódio, que perfazem uma história curta completa. Por essa razão, esta edição da Viz, muito acertadamente sub-intitulada A la carte, agrega os episódios não por ordem cronológica (o que torna a “novela” mais complicada de seguir, mas com as notas e a leitura lá se chega) mas por “temas culinários”. Até à data, saíram sete volumes, dedicados aos princípios básicos, sake, massas (ramen e gyoza), peixe, cozinhado e cru (sushi e sashimi), vegetais, arroz, e os pequeníssimos pratos e aperitivos servidos em bares (izakaya). Todos os volumes têm umas páginas com sequências fotográficas que ensinam uma qualquer técnica ou aspecto de relativa fácil aprendizagem, relacionada com o tema do volume.
O título Oishinbo é traduzível por “gourmet”, mas todas estas informações fazem-nos perder a referência exacta: poderá estar a referir-se ao protagonista, que seguimos, ao seu pai, que é seu rival e um dos mais respeitados gourmets do Japão, ou até estar a referir-se aos seus leitores, que acabam por se o tornar por procuração, à medida que aprendem todas estas subtilezas.
Se por um lado é um livro que se poderá juntar, obviamente, a Le Gourmet Solitaire, de Taniguchi, a sua irmandade encontrar-se-á com todos aqueles filmes que, apesar de quererem “contar uma história”, e prepararem personagens e relações e tramas e resoluções, acabam por virar o seu olho principal à própria preparação das refeições retratadas: Comer Beber Homem Mulher, de Ang Lee, A Festa de Babette, de Gabriel Axel, Como agua para chocolate, de Alfonso Arau, o mais recente Tandoori Love, de Oliver Paulus (poder-se-ia acrescentar O Cozinheiro, o Ladrão, a Sua Mulher e o Amante Dela, de Greenaway, mas o tema é menos a cozinha do que sua a composição visual e significado social; e La Grande Bouffe, de Marco Ferreri, é tudo menos sobre comida).
Apesar de, em rigor, este livro ser criado por um escritor e um desenhador de mangá, ambos profissionais, Oishinbo acaba por se inscrever naquela classe de livros previstos na discussão de Septembre en t’attendant: menos preocupados na construção de uma “obra de arte de banda desenhada” do que a veiculação de uma qualquer ideia, conteúdo, conhecimentos, etc, via a “linguagem visual da banda desenhada”. Poderíamos mesmo debater o facto de que alguma da produção mais comercial da banda desenhada japonesa não procura a instituição de um verdadeiro discurso de expressão pessoal mas sim a assunção desse meio como um instrumento quase estenográfico, meramente comunicativo, um veículo. Ou, nas palavras de Damian Duffy (v. em baixo), a forma como a sequencialidade da banda desenhada cria uma “representação abstracta simbólica” do tempo (e o que ele conduz ou transporta), criando uma narrativa, ou um meio de divulgação de conteúdos.
Já noutras ocasiões falei de bandas desenhadas japonesas nas quais passamos menos tempo a contemplar as imagens e a beleza que elas criariam, servindo de plataforma à leitura rápida das suas histórias – é o que ocorre na esmagadora maioria da mangá mais comercial, em Mirai Nikki, em Death Note, em Blame!, etc. Já toda uma outra classe de autores japoneses, de Tsuge a Takeshi Nemoto, de Akino Kondoh a Suzuki Oji, de Taiyo Matsumoto a Junko Mizuno procuram uma outra forma de tornar visíveis as suas explorações visuais, literárias, formais, emocionais, etc. Os desenhos de Akira Hanasaki, por exemplo, não se substanciam numa capacidade total da representação dos alimentos ou dos pratos; são “suficientes”. Não se trata nem de uma recriação, como a que Mariscal fez para as 1080 recetas, de Simone Ortega, nem de momentos de beleza diferenciadora, como se encontra nos livros de Posy Simmonds sempre que se fala de comida... Mas são bem diversos esses desenhos do das personagens, quase reduzidas a um mínimo grau de reconhecimento esquemático. De novo, são “suficientes”, como a estenografia.
É natural que esta discussão deveria ser transposta igualmente para a produção de banda desenhada ocidental, e seguramente que isso ocorrerá atempadamente, mas é como se as próprias estratégias permitidas pelo mercado japonês – tiragens enormes, uma específica e complexa estratificação dos públicos, já de si muito amplo, o próprio modo e hábito de leitura rápida dos japoneses – influenciassem particularmente a “linguagem”, levando-a cada vez mais próxima a uma estenografia quase universal (impossível, claro, mas que se lhe aproxima em intento). Um desses exemplos, aventado no texto anterior sobre o livro de Torres, é Learning from comics on the wall, de Damian Duffy (que podem encontrar aqui): trata-se de um cruzamento entre um ensaio, a um só tempo académico, curatorial e político, e a “linguagem visual” da banda desenhada. Nesse sentido, está na continuidade de muitos projectos educativos, os volumes da colecção Para principiantes (da Dom Quixote), o livro Logicomix, etc. A importância está menos na beleza criada do que na potencialidade do aspecto comunicacional. É discutível se isso importa, se tem peso estético, se é de cruzá-los, etc. Já vimos a dificuldade em aplicar os mesmos instrumentos de juízo em construções tão diversas.
O prazer em ler Oishinbo – que se encontra alguns graus afastados do projecto de Duffy, e uns poucos do de Torres em termos dessa relação entre comunicação/estiticização - está de facto na descoberta de todos os pormenores que compõem esse complexo que é a subtil e sofisticada cozinha japonesa. O melodrama pessoal do protagonista é por vezes um empecilho a esse prazer principal, tornando-se mesmo um factor distractivo e mais repetitivo – uma espécie de “melodia” que torna toda a série agregada num corpo unificado, mas sem mais interesse do que isso (um pouco como aquelas séries televisivas temáticas – e não propriamente dramáticas - em que a telenovela das personagens é menos importante do que o “sumo” que se aprende sobre o tema central: a medicina em House, a criminologia nos vários CSIs, a física em The Big Bang Theory, etc.). O que não invalida que não nos possamos apaixonar por essas mesmas intrigas pessoais, mas secundárias. Em suma, importa mais a informação do que a formação. Ao lermos O homem sem talento, de Tsuge, poderemos até aprender algo sobre câmaras fotográficas ou o culto das pedras, mas o que importa é a construção emocional da vida daquelas personagens e as redes enleadas das suas relações. Ao lermos Oishinbo, essas relações são apenas um ruído de fundo à aprendizagem, estruturada, esquemática, quase completa, sobre a cozinha, e seus rituais, daquele país.
Nesse sentido, esta “linguagem visual”, para continuar a empregar a expressão de Neil Cohn, faz criar um sentido de clareza especial, mas que não tem a ver com a experimentação e busca artística do próprio meio. Para a prossecução de objectivos dessa natureza, importará olhar noutras direcções: por exemplo, para Sikoryak, para Abstract Comics, para o recente trio da Frémok...
Nota: agradecimentos a Ana Alves Pereira e Rui Carrilho, pelo empréstimo dos livros.
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