Que notas nos sucitam a sua leitura? Em primeiro lugar, leva-nos a querer encontrar outros títulos com os quais a possamos irmanar, para que se construa uma categoria de análise. Mesmo que, como veremos, seja precisamente o problema das categorias aquilo que este título acaba por demolir.
A obra com que mais se aparentará é a interrompida série de comic books Underwater, de Chester Brown na qual acompanhávamos, a partir das suas percepções, a chegada da menina Kupifam ao mundo e o seu lento despertar para a linguagem e as categorias que ela impõem. Aliás, o próprio nome de Kupifam aponta mesmo para a percepção “distorcida” do nome da protagonista tal qual ela própria o compreende (poderia ser um banalíssimo “Catherine”, por exemplo). A chave da leitura dessa série não é tanto descodificar o sentido oculto, como se pudesse existir uma chave única, mas deixamo-nos invandir por essa bateria de percepções, aberta ao informe da ausência de categorias, e ao paulatino regramento do mundo.
Comment Betty vint au discours parece, no título, apontar ao que se implica no interior da narrativa: “Era uma vez uma pequena menina chamada Betty que, como todas as pequenas meninas, se encontrava resvés à beira da noite da linguagem, quer dizer, a linguagem antes da palavra...” é a primeira frase. Se Little Nemo previa que o sonho despertava o protagonista para um mundo fantástico e fabuloso de formas e aventuras, muitas vezes livres, e por vezes atacando a lógica da vigília, a linguagem e até a própria estrutura do veículo que o narrava (a banda desenhada), essas hitórias retornavam sempre à possibilidade da sua legibilidade. Hoje vivemos num tempo em que este veículo tem toda a possibilidade de se expressar de modos menos esquemáticos e consensuais, por isso explora-se aqui totalmente o pré-verbal.
Esta palavra não aponta somente para aquilo que é entendido como o que está antes do verbo, isto é, da palavra articula, da linguagem humana, social e consensual. Implica ao mesmo tempo toda a categorização do mundo a que ela obriga ou que ela faz emergir, uma forma de cognição, de percepção mesmo. É uma forma de conhecimento directo do mundo, inarticulável pela linguagem, mas acessível, para os adultos sãos e inscritos socialmente através de desvios (drogas, experiências extremas, alucinações, etc.). O que observamos em torno de Betty não é apenas as composições das pranchas ou as vinhetas modelando-se num plano informe. São as próprias personagens que não se fixam numa só formam, ou que se rearticulam entre si, ou se fantasmam (uma espécie de figura maternal mas ao mesmo tempo sombra): elas fundem-se e metamorfoseiam-se. Mas também os locais, que se alteram, se personificam, que permitem cartografias paralelas às lógicas da vigília, são os próprios eventos que abolem a causalidade, é a linguagem (o francês, que mantém os seus traços largos de ortografia e gramática) que se desenvolve na consciência poética do sonho, pela associação, pelo efeito sonoro, pela citação estranha familiar, pela dimensão visual da tipografia e da caligrafia...
A forma “banda desenhada” permite que viremos as páginas uma após outra e adivinhemos uma imposição de um sentido linear, de uma leitura, mas este livro obriga-nos à releitura, não obstante a existência de um princípio e de uma resolução. As matérias com que se urde a trama bebe de toda uma tradição da literatura dita infantil, que coloca a protagonista numa viagem iniciática (tal como a Capuchinho, Alice, Dorothy, a Rosa de Gertrude Stein, a Coraline, etc.). Porém, neste caso em particular, essa viagem não nos leva a lado nenhum, porque não nos estamos a deslocar geograficamente. A “lama” onde nos vamos atolando, com Betty, é a da linguagem, e é com dificuldade que atingimos o destino final: o discurso. Desconfiamos que o “discurso”, que não é conquistado por esta Betty, é aquele que temos nas mãos, e que lemos nós mesmos.
Nota: agradecimentos a Marcos Farrajota, pela troca.
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