Este volume reúne pequenas histórias, algumas delas de três páginas apenas, criadas e publicadas ao longo dos anos 90. Estamos, portanto, a ver trabalhos anteriores a outros títulos da autora que viria a publicar em França, anteriormente a este, que lhe faz a arqueologia própria. Em muitos dos seus contornos, as características formais que debatemos a propósito de Blue estão aqui já presentes, se bem que seja possível vislumbrar um grau ainda “tosco” na figuração das personagens, ou o emprego de fotografias ligeiramente ou mais retocadas, colagens mínimas, desvios pequenos.
As histórias são totalmente autónomas entre si, não existindo, para além dos “temas”, quaisquer elementos narratológicos em comum (personagens ou espaços, a título de exemplo). Isso não nos impede de incorrer num movimento de deslize para o interior de uma impressão que, não sendo correcta, é possível. Há um momento na leitura sucessiva destes pequenos relatos em que as fronteiras de cada um deles começa a delir-se, e passamos a confundir as personagens, as circunstâncias espácio-temporais de cada história, os humores e as morais, fazendo emergir uma espécie de base comum que devolvemos à autora. Ou seja, começamos a imaginar uma possibilidade de autobiografia. Imaginamos que as experiências eventuais da autora – confirmável apenas se o perguntássemos directamente, o que significa ser-se inanalisável (e até insustentável?) no interior do livro – foram sendo transformadas em matéria moldável em histórias, ou num prisma, o qal, dependendo da perspectiva ou ponto de partida, permitisse a criação de uma imagem ou história diversa. Ou seja, essa eventual “experiência(s)” daria origem a estas perspectivas, pequenas histórias do dia-a-dia.
Isso deve-se ao facto de existirem elementos descritivos comuns entre essas histórias: são todas centradas em adolescentes japoneses num umbral da idade adulta, experimentando os primeiros passos, presume-se, excitados, angustiantes, assustadores, desequilibrantes, em toda essa esfera. Os “sinais de adulto” são claros: as saídas à noite, a desistência da escola, viver sozinho, fumar, beber, e, acima de todas as outras temáticas, o par, nem sempre unido, nem sempre linear, entre sexo e amor.
Kiriko Nananan especializa-se, se assim se pode dizer, nas maneiras que os jovens lançam e procuram compreender o que significa o desejo, que se expressa ora sofregamente através do consumo da carne, do suor, do abandono sexual, ora através de formas elaboradas de se compreender e absorver o outro. As mais das vezes, essas tentativas são sempre goradas, e é nesse intervalo magoado que a autora constrói os seus momentos, silenciosos, mais fortes.
Algumas da shistórias são como que completas e claras (têm um “princípio, meio, fim”), outras são extremamente elípticas, em que os não-ditos desenham a regra da sua apreciação.
Por vezes, há mesmo imagens (uma vinheta, um ângulo) que não somos capazes de interpretar de modo acabado: se se trata de uma projecção de desejos das personagens, ou se é uma construção simbólica do tema da história... Isto torna-se possível não só por existirem instâncias (claríssimas) de vinhetas analépticas, por exemplo, como a própria focalização e composição das vinhetas, “apertadas”, “fragmentárias” sobre o objecto de atenção, criam as condições necessárias a esse jogo de subtileza e indeterminação.
Poder-se-ia argumentar que Nananan é um exemplo de banda desenhada “japonesa”, ou “feminina”, ou “contemporânea”, ou “jovem”, procurando com cada uma dessas qualificações encontrar um descritor suficiente, ou até procurar cruzá-las e julgar haver atingido a sua compreensão. Todavia, esse exercício apenas explicaria os elementos de circunstância e pouco mais.
No texto de apresentação da autora no livro, fala-se de que as suas histórias reformulam o sentido da expressão “à flor da pele”. É bem visto. À flor de uma pele que não apenas cobre o corpo de cada um, como surge como toda uma superfície universal que partilhamos e nos permite ler as mesmas sensações.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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