Balanço 1.
É sob o signo da morte de Martin que se seguem três textos, que pretendem dar conta de três formas (haverá mais) de fazer balanços, olhares “para trás”. Não que haja qualquer desejo de morbidez sob essa acção, mas antes demonstrar a necessária tomada de distância e corte (quase) permanente de elos afectivos que impediriam uma visão mais crítica e desapaixonada desses objectos. O primeiro desses balanços é cumprido pelas “edições integrais”.
Jacques Martin est mort. E com ele, fecha-se a vida de toda uma geração de autores que compuseram a história, a forma, e a ontologia da banda desenhada que mais tarde chamaríamos “franco-belga”, criando um monstro que amalgamava dois pólos distintos de criação, com características formais diferentes, atitudes diferentes, estratégias narrativas diferentes... Martin estava lado a lado, na lenta construção da banda desenhada belga de expressão francesa das décadas do pós-guerra, a Hergé, Jacobs, e Paul Cuvelier, como uma eventual “primeira linha”. As características que os unem, e que torna possível falarmos de uma “escola”, a qual chegaria a ser conhecida como tal (“École de Bruxelles”) é um desenho realista aliado a estratégias de simplificação de certas dimensões visuais (cor, sombras, contorno fechado, legibilidade das pranchas, adequação total da narrativa e das composição das imagens, naquilo que Peeters chamaria de “pranchas retóricas”, etc.), mas também todo um conjunto de elementos narratológicos, políticos e até morais associados: herói masculino e solitário, centralidade da ideia de aventura, de simplicidade e causalidade da diegese, apologia de uma ética paternalista na relação “detentores de poder iluminados e civilizadores” e “culturas autóctones”, ausência de papéis femininos de relevância (como apontava o estudo de Ana Bravo), inexistência de directas referências a relações amorosas (ou associação delas a uma dimensão casta e/ou cómica, dando azo eventualmente a interpretações desviantes, como a “homossexualidade” de Tintin, Blake e Mortimer, Corentin, Alix e Enak, etc.) e superioridade inquestionável da pureza dos fins dos protagonistas. Se falo de “monstro” é porque se seguiriam outras “escolas” mais tardias e cujas características, visuais ou narrativas (mas também de circunstância de produção e relações afectivas), se diferenciavam-se daquelas. Em grande destaque, as “escolas” de Marcinelle/Charleroi (Franquin, Jijé, Macherot, Peyo, Jean Roba, etc.) e, depois, a francesa (Goscinny e Uderzo, Gotlib, e os que ses seguiriam influenciados por certa banda desenhada norte-americana – a Mad, acima de tudo) [para uma abordagem disto, consultem-se Os Comics em Portugal, de António Dias de Deus e Leonardo De Sá, e Reading Bande Dessinée, de Ann Miller, entre outros].
É, portanto, uma triste coincidência que essa morte e esse fechamento de um capítulo da história da banda desenhada se faça no momento em que realmente se efectua a “recuperação da memória” da própria banda desenhada (tema recorrente neste espaço, ou filtro que nos interessa explorar continuamente). Já falámos de vários momentos e gestos editoriais que recuperam e reinscrevem textos antigos, clássicos ou perdidos, centrais ou descentrados, em edições de fácil e contextualizado alcance. No caso de Alix, alguns dos álbuns têm sido alvo de novas reformatações, juntando, como neste caso, dois álbuns (os dois primeiros) e um apêndice enciclopédico sobre uma qualquer civilização visitada por aquela personagem. A História, em Martin, apesar de matéria prima e sede da sua série mais famosa, pauta-se por um encontro entre a invenção, a condensação a-histórica, e o despertar do interesse factual, científico, possível. Muitos de nós, leitores de Martin, teremos eventualmente aprendido sobre o vigor cromático daquela antiguidade através dos seus desenhos, e não pelas vetustas gravuras a preto-e-branco que se queriam passar por “retratos” fiéis desses espaços de antanho... Mármore branco, linguagem perra, línguas mortas e silêncio de estado. Martin, bem pelo contrário, não se entregando a liberdades que viriam depois (penso em Les Olives Noirs, Isaac, o Pirata, Le troisième testament, apenas a título de exemplo), deu um passo na restituição para o vivo dessas cidades e culturas.
É difícil pensar contemporaneamente qual será o valor assumido por estes livros num período mais tardio da percepção social e do consumo cultural da banda desenhada. Apesar dos defensores ainda submersos numa visão nostálgica da sua própria infância a adolescência, a verdade é que todo esse capítulo, apesar da invenção da linguagem a que se dedicaram, não têm elementos que lhes permitam ser ainda vivos e interessantes para o público hodierno. Mesmo Tintin poderá vir a tornar-se um caso de arqueologia, mas não de “língua viva” para os leitores vindouros. É verdade que Birth of a Nation, de Griffith, também é alvo de duras críticas, mas apesar do seu doloroso conto, é ainda não apenas um factor de grande importância no olhar histórico do cinema como uma obra capaz de despertar uma maravilhada leitura (subtraindo os aspectos negativos, que são muitos). Pergunto-me se a “linha clara” de Tintin e de Alix e de Blake e Mortimer sobreviverão às gerações que procuram a restituição desse momento perdido das suas infâncias, e dos exercícios de pastiche a que dão azo (sobretudo a última série, mas também se adivinham outras). Na verdade, a inscrição de Martin nesse território não é totalmente plácido. Ele não conquistou a sua própria “linha clara” de imediato. Os primeiros álbuns, de que ambas as histórias deste volume são extraídas, apresentam o primeiro autor, ainda com alguns desequilíbrios terríveis, nomeadamente a falta de proporção entre as imensas cabeças e os corpos esquálidos, e o uso sempiterno de uma mão-cheia de rostos similares nas diversas personagens (tudo nos levaria a crer que queixos com cova eram um sinal universal nos seres humanos da época). Apenas mais tarde, por insistência (talvez coerção?) de Hergé, é que Martin se aproximou do “in-house style” do patriarca belga (sigo uma lição retirada de uma entrevista de Nuno Franco a Martin).
Talvez a sobrevivência destes livros passe pela sua reconsideração sob novas ópticas. Voltando a algo já citado anteriormente, neste caso em particular, a dimensão aparente e discutivelmente homossexual das personagens. Alix foi adoptado pela cultura homossexual com alguma celeridade. Não apenas o princípio mens sana in corpore sano parecia ser seguida pela personagem, como a relação com o seu pequeno egípcio foi desde logo colocada a essa luz. A verdade é que a ausência de papéis fortes femininos na esmagadora maioria das ficções destes autores – no universo de Tintin, de Blake & Mortimer, Corentin, etc. – não tem a ver, a meu ver, nem com a misoginia (mais uma vez, como sustenta, parcialmente, Ana Bravo) nem com pressupostos homossexuais (mesmo que se venha a descobrir algo da vida pessoal dos seus autores, o que é pouco importante e tresanda a biografismo fácil). Tem antes a ver com a inscrição numa tradição de ficção de aventuras para rapazes (maioritária e principalmente) herdada do século XIX (ou mais recuadamente ainda). Em suma, e visto de outro modo, numa mescla de psicologismo barato e observação directa, e ainda experiência, é uma típica atitude de rapazes declararem que “menina não entra”. Não me parece, contudo, que nenhuma dessas vias de análise possa vir a dar frutos substanciais, para além de uma divertida jogatina de análise. Não fazem parte, esses pressupostos, de uma concreta, analisável e palpável matéria dos seus livros. Ou melhor, é possível que essa leitura se possa fazer, mas terá sempre de se ancorar na cultura mais ampla do seu tempo, na economia de produção cultural em que se inserem, nas atitudes sócio-culturais da sua circunstância, mais do que se aterem à matéria narrativo-artística dos livros em si.
Todavia, visto por outro lado mais entregue e aberto, é talvez nessa via, reestruturante, de reescrita crítica, que eventualmente se encontrará o cerne do factor de sobrevivência deste e de outros livros. O tempo sabe.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
eram outros tempos...mas a mentalidade menina näo entra continua em vigor, é como na politica,porque eles näo gostam de competir com elas...entre outras coisas doentias e profundamente enraízadas
ResponderEliminarps. claro que säo misóginos, mas com a inocencia dos ignorantes, sempre houve mulheres mais aventureiras que os homens, e muito mais desafiadoras ,pois elas sempre tiveram mais obstáculos que eles,
ResponderEliminareles é que preferem ve-las como troféu ,servicais, submissas e idiotas,e näo digo que o laxismo das mulheres näo tenha culpa nisso...mas estamos a falar da obra deles, e nela "elas" por serem inferiores näo tem lugar