As generalizações são sempre abusivas, uma vez que querem colocar todo um conjunto de referências, de pessoas, de textos, de exemplos, num único denominador comum, apagando todas as outras características que diferenciariam esses mesmos exemplos. No entanto, poderemos até certo ponto aceitar que essas mesmas generalizações podem servir de base a uma ideia de irmandade, de colação desses exemplos, tendando procurar estabelecer princípios interpretativos em comum, os quais poderão identificar tendências, talvez, ou pelo menos um tentativo grupo.
Este livro encaixa-se num quadro alargado de toda aquela ficção contemporânea norte-americana, um verdadeiro género, a que se dá o nome de “catástrofe”. É no cinema que esse género se torna mais visível, naturalmente, não só pelas possibilidades geradas pelas novas tecnologias da imagem, como pelas novas estruturas de financiamento e ainda a capitalização dos medos, tensões e o chamado “espírito do tempo” (e, claro está, uma tremenda crise da qualidade da escrita cinematográfica, endémica à mais recente Hollywood). No entanto, esses medos não são apenas explorados pela cultura popular, como se depreende do romance A Estrada, de Cormac McCarthy, o qual também proporciona um enredo pós-apocalíptico de uma América que regride à mais básica das sobrevivências, sem que se apresente razões da catástrofe ou, matéria que redimensione o papel das personagens isoladas nessa desolação. O problema desse género, à partida, é político. Por um lado, como se disse, capitaliza um medo, mas um medo provinciano, sobretudo daquelas sociedades habituadas há décadas a um determinado estado de conforto que é o seu, independentemente de qual o seu preço (para os outros, claro). Por outro lado, porque exploram, de modo medíocre e melodramático, a baixeza de que a humanidade é capaz, para depois mostrar o estado de excepção dos seus heróis (aspecto de que o curto romance de McCarthy não escapa). Finalmente, porque se tornam um terrível ecrã, que aponta a uma “hipótese”, a uma “eventualidade”, impedindo-nos de ver o quão reais essas situações são em locais da terra, aqui e agora (do Uganda à Coreia do Norte, da indústria de peixe na Tanzânia às lixeiras de Buenos Aires e as crianças-escravas-trabalhadoras-prostitutas um pouco por todo o mundo). (Mais)
Mas estas ficções, ao erguerem um cenário idêntico ao desses outros mundos fora do nosso alcance – mesmo enquanto turistas, a miséria passa por nós como água nas penas de um pato –, transplantando-o para os locais que conhecemos (recordem-se dos cartazes publicitários ao filme Eu sou a lenda, que mostrava as duas margens do Tejo destruídas), desperta uma curiosidade mórbida e um exercício de pensamento ao qual não conseguimos resistir... “que farias?”.
Ball Peen Hammer integra-se na perfeição a esse exercício. Tal como A Estrada, o foco de atenção é relativamente estreito – um quarteirão de Nova Iorque – e a contextualização (o que é que originou o estado actual de catátrofe nessa cidade?, porque razão há uma divisão clara entre um lado e outro da Clancy Street?, de que doença estranha sofrem os habitantes daquelas paragens?, que espécie de conspiração existe entre os agentes que vemos se movimentarem nas sombras?) fica por explicar.
Adam Rapp utiliza estas ideias como a estrutura de fundo, a ambientação da pequena novela que urde. Na realidade, a atenção concentrar-se-á em torno de um número muito reduzido de personagens (quatro ou cinco, conforme entedermos a sua importância), divididos em pequenos pares que se vão revezando num espaço exíguo (um único edifício), num intervalo curto de tempo, e numa muito limitada esfera de acção. O texto apresenta características quase de uma peça teatral, até mesmo pela forma como é escrito, cheio de pares pergunta-resposta, pequenas danças de histórias contadas, explicações dadas sobre ersonagens ausentes, ligações e processos nos quais as personagens estão integradas ou estarão integradas mais tarde. Mesmo quando existem cenas analépticas, não visitamos esse tempo diegeticamente, pois as imagens são-nos mostradas sob o domínio do texto narrado da personagem que as rememora. Há um movimento de contenção.
Por seu lado, os desenhos de Georges O’Connor seguem aquela linha de competência que faz pensar numa discussão já tida anteriormente, em torno de ideias de Neil Cohn (e outros), o qual aponta ao desenvolvimento de uma linguagem visual, a banda desenhada, empregue a todos os níveis e a todos os usos, desligando-se de uma absoluta necessidade de se seguir sempre uma via de excelência estética, de espectacularidade ou de reemprego da sua história, ou mesmo de factores reinventabilidade gráfica. Isto é, bem pelo contrário, o desenvolvimento de uma linguagem quase regular, que apenas prenda imageticamente o sentido que se deseja criar. Isto verifica-se num grupo de trabalhos afectos a vários territórios (uma certa banda desenhada comercial japonesa, muitos dos trabalhos de Warren Ellis na Avatar, conteúdos para certas antologias infantis, etc.). Algo de suficiente, digamos assim. É isso o que lemos no trabalho de O’Connor, uma como que anotação gráfica da vontade narrativa de Rapp.
Ball Peen Hammer cria uma trama simples entre as personagens que exibe, cada uma representantes, por assim dizer, de um naipe de categorias ou papéis morais que os seres humanos poderiam preencher numa dada circunstância. Nenhum deles se apresenta num plano moral superior, e não obstante as simpatias que possa surgir por um ou por outro (o artista pobre e sobrevivente, o escritor gay curioso e aparentemente corajoso, o miúdo sem qualquer noção do bem e do mal, a actriz iludida na condição humana), nenhum deles tem hipóteses de escapar ao inevitável esmagamento a que Rapp nos conduz. Ao contrário do livro de McCarthy, e do batalhão dos “disaster movies”, não há qualquer manifestação de uma hipotética resolução, já para não dizer redenção, em Ball Peen Hammer. Talvez essa seja a sua dimensão mais saliente e de merecimento.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
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