22 de fevereiro de 2010

Hamlet 1977. H. R. Vaughn e François Ravard (KSTR)


Sempre que nos deparamos com uma adaptação, isto é, a utilização de uma série de elementos provindos de um objecto ou uma área e o seu reemprego noutro objecto ou noutra área, emergem questões conexas, ou especificadoras, como os conceitos da transmediatização, transescrita, transemiotização, etc. Todos estes conceitos foram já abordados por literatura especializada, desde o volume Transécriture, dos colóquios de Cérisy, aos inúmeros artigos de estudos de cinema, literatura comparada e alguns contributos na área dos estudos da banda desenhada. Uma das formas que poderemos entender essa transposição é a existência (abstracta, até mesmo fictícia) de uma espécie de “matéria narrativa”, informe, que pré-existe à sua substanciação através de uma qualquer forma de expressão, um meio, através do qual se inscreverá finalmente no mundo, passado a existir como romance, filme, peça de teatro, banda desenhada, etc., cada qual com os seus princípios organizadores, especificidades de produção e circunstancialização, e até mesmo a sua própria “inércia”, para citar Philippe Marion. De certa forma, é quase como o que os formalistas russos chamaram de “fábula” (que nada tem a ver com o seu sentido de “história moral com animais antropomorfizados”, mas tão-somente com esse rol de acontecimentos que têm lugar no universo diegético da história contada), existindo independentemente de qualquer forma de a expressar. Estas divisões e dicotomias levantam problemas complicados, mas aproveitando um exemplo de Marion e André Gaudreault (de um artigo escrito em conjunto), e providenciando um outro, procuraremos demonstrar como é que essa fabula pode existir independentemente da sua concretização mediática. O primeiro exemplo é o do Capuchinho Vermelho, cuja menção é suficiente para despertar na mente de todos os leitores uma série de elementos que compõem essa fábula, elementos que não podem ser partilhados entre nós (salve a telepatia ou a união mística), a menos que os formemos (deformemos, informemos) através de um qualquer meio – desenhos, linguagem, gestos, sons. O segundo exemplo diz respeito, algo já discutido anteriormente, àquelas personagens que ganharam como que uma vida autónoma, que conseguem viver vidas paralelas às da obra que as consolidou, elaborando nas mentes dos seus leitores-espectadores-fãs novas aventuras e cruzamentos. Nessas personagens encontraremos Dom Quixote, Robison Crusoe, Sherlock Holmes, o Conde Drácula, e, porque não?, Hamlet. Pelo menos as cenas mais famosas (com o crânio de Yorick, o monólogo, tantas vezes amalgamados numa só cena no imaginário corrente) flutuam nesse imaginário independente de meios. (Mais)

As mais das vezes, as adaptações (de filmes para bd, da bd para o cinema, da literatura para o cinema, do teatro para o cinema, do cinema para a literatura, etc.) sofrem de um qualquer grau de empobrecimento, uma vez que o esforço incide sobretudo na transposição dos elementos superficiais, ou a estória, por assim dizer, sem existir qualquer preocupação na fundação de uma linguagem verdadeiramente atreita ao meio que se está a empregar nesse momento. Pensemos nas adaptações do cinema para a banda desenhada: a esmagadora maioria desses exercícios são medíocres, para não dizer nulos, colocando as adaptações de Star Wars, os vários Batman e até Valsa com Bashir no mesmo gesto falhado. Um exercício curioso é a transformação de 2001: Odisseia no Espaço para a banda desenhada por Jack Kirby, o qual, não sendo uma obra maior da banda desenhada, é de facto uma obra de Kirby. A colecção em curso O filme da minha vida, de vários autores portugues pela Ao Norte, caminha para a fabricação de uma massa crítica digna de uma atenção mais adequada a estas questões, uma vez que todos os autores tentam uma abordagem à adaptação sui generis, que vai muito além da mera refabulação ou recontar das tramas originais. Ou da literatura para a banda desenhada. Feitas as muitas ressalvas do costume, talvez possamos “salvar” A Cidade de Vidro de Karasik e Mazzucchelli (em alguns aspectos, superior à novela original de Auster), O Diário de K. de Filipe Abranches (tornado seu verdadeiramente), a novela O Coração Delator de Poe transformado por Breccia, O Castelo de Kafka por Deprez, os diálogos ente Apollinaire e Warren Craghead III, a página singular (em termos numéricos e valorativos) de François Ayroles destilando a essência da Recherche, e poucos mais exemplos, mas as mais das vezes não há uma verdadeira transmediatização, ou atrevemo-nos a dizer, transubstanciação.

Hamlet 1977 não atinge esse grau máximo de refundição, mas também não se cinge a uma aproximação simplificadora (daquele tipo que transforma as adaptações em banda desenhada em instrumentos de sedução escolar, isco pedagógico ou sebenta de rápidos atalhos) da obra primária. A premissa é relativamente simples. Toda a trama, personagens, eventos e nódulos da peça de Shakespeare encontra uma vida na Chicago do final da década de 1970, com Hamlet como um filho alienado da sua família, barões da máfia da cidade. Uma estratégia estranha é não negar a existência de uma peça de teatro com esse título, que serviu de fonte para que o pai de Hamlet lhe arranjasse um nome, mas é um texto “obscuro”, sem a carga e presença no nosso mundo. Encontraremos modos mais ou menos curiosos da transposição dos elementos: um Globe Theater de esquina, as espadas substituídas por pistolas, as frases do bardo transformadas numa linguagem mais corrente daquela Chicago, Julie mergulha nas águas da sua banheira suicidária como Ofélia no riacho dinamarquês...

A fonte deste livro não é apenas identificável directamente como a peça de Shakespeare, mas sobretudo ao exercício de adaptação e contemporaneização a que ela foi sujeita com o filme Hamlet, de Michael Almereyda (com Ethan Hawke no papel principal), curiosamente referido muitas vezes como Hamlet 2000. São por demais os pequenos trajectos de tradução das circunstâncias da peça e deste filme, em que Elsinore é um hotel, a Dinamarca passa a ser uma empresa, a peça-dentro-da-peça é um filme, que mostram pontos em comum com aqueles desenhados em Hamlet 1977, para que não exista uma correspondência entre esses textos. Seria, porém, curioso perguntar se a mise-en-abîme da peça de teatro no interior da peça de teatro, transformada num filme dentro de um filme em Hamlet 2000 não deveria ser uma banda desenhada dentro da banda desenhada de Hamlet 1977, em vez do filme em 16 mm. Talvez os autores vissem como algo complicado colocar mafiosos norte-americanos dos anos 70 a lerem quadradinhos? Ou a banda desenhada não consiga essa auto-reflexão, na sua óptica? Claro que não, mas essas são as razões que não aproximam Hamlet 1977 da completude que se poderia almejar. Há momentos em que os desenhos de Ravard recordam a abordagem “limpa” de Matt Madden, quase num exercício de clareza total da diegese, sem que se procurem, lá está, momentos de expressividade gráfica que fossem específicos à sua transposição. São antes as ligações ao cinema as mais vincadas, repercutindo-se noutros momentos, como a cena passada num salão de espelhos, reminiscente d’A Dama de Shangai. Mas essas reflexões, apenas por sê-lo, como aquelas entre literatura, teatro, cinema e banda desenhada, nem sempre permitem que a distorção se torne em expressão efectiva.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.

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